quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Vergonha alheia da Ministra da Cultura

Não é bem assim dona Marta! Não é questão de liberdade! Comprar revista porcaria com vale cultura pode ser falta de opção! Portanto, ministra, o buraco é bem mais embaixo...

A ministra da Cultura, Marta Suplicy (até hoje não entendi porque essa senhora 'virou' ministra da cultura...), disse em entrevista, a respeito do vale Cultura aprovado pela presidente Dilma Rousseff há poucos dias, que o trabalhador terá liberdade para comprar o que quiser, e se ele quiser comprar revista porcaria, ele poderá.
Sei que falar sobre cultura não é um tema tão simples. Afinal, há muito desacordo a respeito do que o termo 'cultura' abrange e, portanto, quais coisas devem ser consideradas ou não no âmbito da Cultura. Mas vamos combinar que revistinhas de fofocas e similares estão longe de agregar qualquer coisa na vida de alguém. 

Mas o problema é bem maior do que saber o que colocar e onde. O problema é que o 'trabalhador' brasileiro que será beneficiado com o vale cultura não tem/teve educação que o ensinasse apreciar a leitura de um bom livro de literatura ou uma orquestra sinfônica ou uma escultura ou uma pintura. O acesso a todos esses bens no Brasil é restrito, porque está fora das possibilidades financeiras de muitos de nós (inclusive nós professores!). No entanto, se em nenhum momento o cidadão é despertado para o valor de todas essas produções culturais, de nada adianta dar dinheiro (R$50,00 por mês) na mão do trabalhador na hipótese de que isso por si só resolverá o problema do acesso àquilo que silenciosamente/oficialmente tem-se aceito sob o título de cultura. A falta de acesso à cultura no Brasil está pra além do dinheiro.
A dita Cultura não é acessível porque é estranha à maioria dos cidadãos. E essa estranheza tem uma razão de ser. Infelizmente, muitos professores da rede pública chegam na sala de aula cegos pelo preconceito que eles têm a respeito do tipo de alunos que lá estão e, graças a esta cegueira, são incapazes de cumprirem com o seu dever de tirar os alunos do senso comum, de mostrar a eles que o mundo é bem mais vasto do que a realidade imediata que os cerca. Muitos professores dizem que não vale a pena investir nesse tipo de aluno, porque eles não vão entender nada. Levar alunos da escola pública numa visita a um museu é visto como loucura. Já ouvi professor dizendo que não se preocupa em preparar uma boa aula pra esse tipo de aluno porque é o mesmo que atirar pérola aos porcos. 
Enquanto esse tipo de professor existir nas escolas públicas e enquanto esse tipo de ideia medíocre estiver rondando nossas escolas, os cidadãos que saem das escolas vão usar o vale cultura para comprar revistinha de quinta. Mas isso não é uma questão de liberdade, ministra Marta, é questão de falta de oportunidade, falta de opção. 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sobre as coisas que não sabemos aos 15 anos

Quando a gente tem 15 anos e se apaixona, parece que o mundo vai acabar no minuto seguinte. Parece que cada minuto longe do 'amor da nossa vida' será o fim de tudo! E a gente acha mesmo que aquele namoradinho (dois ou três anos mais velho que a gente) é o homem da nossa vida! Que nossa vida não terá sentido se ele não estiver por perto!  Em raríssimos casos, que eu saiba, aquele amor dos 15 anos acaba sendo o amor da vida toda. Mas é raro! O mais comum, mas que a gente nem desconfia quando tem 15 anos e se apaixona, o que realmente acontece é que virão muitos outros 'amor da vida':  aos 16, aos 17, aos 18,  até que, talvez, a gente não acredite mais em amor pra vida toda, e seja feliz com o amor que dure até a próxima primavera.

Mas quando a gente tem 15 anos, isso é inconcebível. E se o namorico acaba, nos entregamos a lágrimas infinitas, escrevemos página e páginas de um diário real ou imaginário, ficamos de luto, ouvimos 100 vezes 'a nossa música', enfim, sentimos que nossa vida não tem sentido! Mas isso será até nos apaixonarmos novamente! Até encontrarmos um 'novo amor pra vida toda'. Mas não sabemos isso quando temos 15 anos. E somos trágicas, românticas e bobas! Mas é a vida! É preciso sofrer, chorar, se descabelar, achar que o mundo vai acabar porque o ex-namoradinho estava lindo de morrer na festa do último fim de semana! Ou porque ele arrumou outra... É necessário que isso aconteça! É necessário que mudemos o corte de cabelo, que coloquemos a roupa que nos deixa mais bonita e que possamos nos sentir um arraso, embora estejamos arrasadas por dentro. Mas tudo isso tem que acontecer quando temos 15, 16, 17, 18 anos! Porque depois seremos mulheres poderosas, com as quais, aos 15 anos, nem em sonho nos encontraríamos. 

Aos 15 anos, a gente se apaixona e vê diante da gente um príncipe encantado, mesmo que de príncipe ele não tenha nada. Mas quando o príncipe nos magoa, nos sentimos traídas! Afinal, príncipes encantados deveriam nos tratar como princesas e nos fazerem felizes e não tristes. Príncipes encantados não têm defeitos! Mas tudo isso acontece porque aos 15 anos ainda não sabemos que príncipes encantados não existem mesmo! O que existem são homens, ou meninos crescidos, que, como nós mesmas, têm um monte de defeitos! E fazem coisas incompreensíveis! E que nem todas as nossas lágrimas poderiam resolver os problemas! Porque eles, os meninos crescidos, quando têm 16, 17, 18, 23 ou muitos anos, estão, como nós, aprendendo a viver! Aprendendo com seus erros. E talvez aquele namoradinho de quando tínhamos 15 anos gostasse mesmo daquela menina boba que éramos! Talvez gostasse bastante, e talvez tenha se arrependido de tê-la perdido, mas ele não sabia demonstrar que gostava, e menos ainda que sentia falta. Mas aos 15 anos a gente não tem tempo (nem disposição) pra pensar em tudo isso! O mundo está sempre na iminência de acabar! Somos intensas! E é tudo ou nada!

Mas depois dos 15, depois dos 20, quase chegando aos 30, encontramos calma ou, pelo menos, não estamos mais sentindo que o mundo vai acabar no minuto seguinte. E quando olhamos pra trás, sorrimos ao ver aquela menina de 15 anos, desesperada, e que apesar de ter achado que o mundo ia acabar a cada fim de namoro, sobreviveu, e aos poucos foi se tornando aquela mulher de quase 30, que ainda se apaixona, que é intensa, mas que já sabe tudo que a menina de 15 não sabia.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Sobre escolas e escolhas

Eu sempre estudei em escola pública e digo isso com orgulho! Toda minha educação básica foi feita na Escola Estadual Marquês de Sapucaí, de Delfim Moreira, MG. Bons tempos aqueles! Eu tive professores que fizeram diferença na minha vida. Professores que se importavam. Professores que se respeitavam. Professores que se fizeram dignos diante dos meus olhos. Nem sempre eu fui justa com eles. Nem sempre eu soube entender suas atitudes. Mas, de algum jeito, eu sempre soube admirá-los e respeitá-los. Eles conseguiram me fazer entender a grandeza dessa profissão, hoje a minha profissão. 

Esse ano de 2012 entrei na rede estadual de São Paulo como professora efetiva de filosofia. E faço questão de dizer para os meus estudantes que eu sempre estudei em escola pública e que me formei numa das melhores universidades do país, a Unicamp. É bom notar que não digo isso a fim de afirmar nenhuma superioridade em relação a colegas formados em outras instituições, públicas ou privadas, mas apenas com o intuito de fazê-los acreditar que é possível ingressar numa boa universidade pública de ensino superior, tendo estudado sempre em escolas públicas. 

Com todos os problemas e as dificuldades que os professores enfrentam hoje, eu ainda tenho a pretensão de fazer a diferença na vida de algumas pessoas, assim como os meus professores fizeram na minha vida. Estou longe de acreditar que a filosofia por si só é capaz de mudar a educação, como alguns alardeiam por aí. A disciplina que escolhi tem sim um papel privilegiado dentre as demais ao permitir mais espaço para a conscientização do estudante de seu papel enquanto cidadão ou para provocá-lo a respeito de problemas de ordem ética ou epistemológica e tantos outros. No entanto, os professores que mais marcaram minha vida não o fizeram por causa da disciplina que ensinavam, mas pela atitude como professor, pela honestidade com que se apresentavam diante de mim, pela paixão que conseguiram transmitir naquilo que faziam, pelo respeito e compromisso, pelo entusiasmo, apoio e incentivo que me foram dados. Independente da disciplina, da matéria que lecionavam, eu tive professores que abriram meus olhos, ampliaram meus horizontes e me fizeram acreditar em grandes sonhos e, juntamente com isso, se esforçaram por colaborar com a realização desses sonhos. 
Tenho alguns colegas hoje que também me servem de inspiração. Pessoas que, apesar de todos os empecilhos, de toda desvalorização e precarização da carreira de professor, não fazem disso desculpa para serem medíocres. 
Eu ainda tenho dúvidas quanto ao meu futuro profissional. Ainda tem escolhas para serem feitas. Mas, neste momento, estou consciente do compromisso que assumi com os meus estudantes. Espero conseguir fazê-los perceber o que eles têm de melhor e o quanto são capazes de mudar suas próprias histórias. 


*Quando eu escrevi esse texto, no início de 2012, eu estava num momento Pollyanna. Não sei quanto tempo ele vai durar, mas espero que o suficiente para ter mais um bom ano!

domingo, 6 de janeiro de 2013

Pedaços de vida (alheia) - Versão Beta


Era uma tarde quente de verão. Quente mesmo só o clima de verão, pois há muito que entre eles o clima tinha esfriado. Sentados, um do lado do outro, cada um olhando pra um lado. Quando foi mesmo que eles acharam que formavam um casal perfeito? Cinco anos... Como suportaram passar todo esse tempo juntos?
Era difícil acreditar que algum dia tiveram algo em comum. Houve um tempo em que olhavam para a mesma direção? Falavam, se atropelavam, e não diziam nada. Era o constrangimento típico de quem já não tinha nada para dizer um ao outro. E mesmo sem nada em comum, eram tantas coisas de um se misturando na vida do outro.
Os livros dela, na estante dele. As roupas dele, no guarda-roupas dela. Será que algum dia aquela história tinha ido além de dividir o mesmo teto?
E foi assim, dizendo tantas coisas que não significavam mais nada, que perceberam entre ruídos e sorrisos nervosos que deviam seguir cada um seu rumo. Era ponto final, não havia lugar para pausa, já era tarde quando enfim tiveram coragem para dizer. Ela juntou suas coisas e depois de muito tempo sentiu-se inteira novamente. Ele ficou com o resto e com as expectativas de quem iria preencher os espaços, agora livre, da casa. 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Cabaret

Yann Tiersen - Guilty

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As luzes começavam a ser acesas. A música na vitrola, como todas as noites, aos poucos invadia os quartos. Não eram luxuosos. Mas tinham lá seu glamour. Anne estava sentada diante do espelho. Secava as últimas lágrimas que lhe molhavam a face. Alguém bateu na porta e pediu que se apressasse, pois já os primeiros clientes chegariam. Ela tentava terminar aquela maquiagem que lhe dava cara de bonequinha. Olhos bem contornados, o batom vermelho, brincos, pulseiras e colares cobrindo o que a pouca roupa deixava de fora.

Anne suspirava. Será que ele virá hoje? pensava entre melancólica e ansiosa. Se não viesse seria mais uma noite no bar. Henri já sabia que só trabalharia depois de muitas doses de wisky. O velho, claro, aquele velho não a deixaria em paz! Era preciso fugir daquelas mãos peludas e enrugadas e tão assanhadas. Mas era certo que ele estaria lá. Respirava com dificuldade, hoje, mais do que todos os outros dias, sentia que aquela fantasia lhe sufocava. E se ele não vier hoje? Voltará algum dia? Cumpriria sua promessa? Ou teria brincado com ela?

As outras meninas diziam que Anne era inocente demais. Zombavam do romantismo que ela cultivava secretamente. Diziam que para meninas como elas não havia romantismo. Madame Suzy lhe dava tapinhas na bunda e dizia que com aquele corpo poderia ter os mais caros amantes. Mas de que lhe serviriam aqueles caros amantes? Caros, velhos, tão babões... Todas as noites, já madrugada longa, quando o dia começa dar as caras no céu, Anne toma um banho demorado. Ensaboa todo o corpo, e se esfrega com força, para tirar o resto de todos eles. Repetia aquele ritual acreditando que um dia encontraria um homem que lhe tiraria do Casarão e cujo cheiro ela nunca mais desejaria tirar de seu corpo.

******
O rapaz que chegava acompanhado pelo pai, ou tio, ou seja lá quem fosse, era bem vestido e muito jovem. O olhar desesperado e curioso com o qual percorreu o salão foi suficiente para dizer que era a primeira vez dele. Quando era assim, as meninas sabiam que deviam esperar a escolha da Madame. Logo ela foi conversar com os dois homens. Com um sinal de cabeça chamou Anne. Não era só porque Anne era a mais bela de suas meninas, nem porque era das mais jovens. A Madame sabia dos romantismos de Anne. Aqueles ares de donzela que ela tinha poderiam deixar o jovem mais à vontade.

Anne o conduziu pelas mãos escada acima. Antes de abrir a porta do quarto o jovem perguntou seu nome. Sabia que devia dizer-lhe aquele com o qual a Madame havia lhe batizado: Bella, mas quando abriu a boca, ouviu sua voz dizendo Anne. Já naquele momento sentiu o coração disparando. Ficou momentaneamente aturdida, sentiu o rosto corando. Rapidamente virou as costas para ele e abriu a porta. A cama estava toda arrumada. Uma colcha branca com bordados vermelhos se estendia até o chão. A meia luz do quarto não permitia ver com detalhes o rosto dele. Ouvia sua respiração acelerada, segurou-lhe novamente as mãos, já agora muito frias e levemente trêmulas.
Quando sentou-se na beira da cama ele disse, de jeito despropositado, como quem quer adiar a ação. Meu nome é Fernando. Anne repetiu o nome baixinho. Sentiu uma ternura repentina por ele e quis confortá-lo em seus braços. Sem dizer nada, foi desabotoando a camisa e acariciando aquele peito jovem. O coração dele fazia mais barulho do que o trem que passava duas quadras do Casarão. Não demorou muito e ele parecia tão à vontade, como se tivesse frequetado aquele quarto desde muito tempo. Ele a despiu como um homem apaixonado e a tocou com toda a experiência que só o desejo concede. Ela se entregou como se fosse a primeira vez...

Exausto, com os olhos brilhando, a cabeça girando, e o coração em chamas, ele disse que voltaria e que ela seria só dele pelo resto dos seus dias.

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Quantos dias tinham se passado desde aquela noite? Por que a demora? Teria desistido?
Outra vez alguém bate na porta, mas dessa vez abre a porta. É a Madame. Diz, como sempre, que ela está linda, um encanto. Toma as mãos de Anne, que se levanta. Os costumeiros tapinhas na bunda: Querida, tão Bella, sabes que pode ter os melhores amantes! Vamos, vamos, o salão começa ficar cheio.

Anne atravessa o corredor de quartos. Ouve o alvoroço rotineiro, risos e brincadeiras. Algumas meninas tinham começado cedo a noite. Ao descer a escada sente-se tonta. As luzes e aquela música põem seu estômago em movimentos incontroláveis. Segura firme no corrimão da escada. Fecha os olhos. Respira fundo, é preciso descer. Entre giros e enjoos, chega no canto esquerdo do salão. Várias caras tão conhecidas. Aqueles risos e sorrisos. Olha para todos os lados. Ali, no canto direito, ao lado da porta, parecia ser... Não, foi engano. Esse aparece todas as semanas, e sempre procura Marly. Recém casado, herdeiro de grande fortuna, um dos queridinhos da Madame. Já disseram até que era filho dela. Que teria sido adotado pelo pai verdadeiro. Homem de grandes posses, financiador do Casarão por muitos anos, primeiro amante da Madame, quando ainda era Cecília. Mas eram histórias...

Henri serviu o primeiro drink. Era já uma resposta. O coração apertou e doeu e sentiu-se confusa daquele jeito como quando disse seu nome na porta do quarto. Bebeu de uma vez só. E pediu outro. Carola também se encostou no bar. Acariciou o ombro de Anne e sorriu aquele sorriso de cumplicidade. Carola bem que tentava entender aquele mundo secreto de Anne.

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Passaram-se meses. Ela perdeu a esperança. Jogou aquelas lembranças quase doces em qualquer canto escuro e deu por encerrada aquela quase história de amor.
Mas um dia, quando ela já não mais esperava, quando quase havia desistido de sonhar com o homem que lhe tiraria do Casarão, ele retornou.
Não tinha mais aquele olhar desesperado e curioso, e parecia ter envelhecido em meses uma 6 dúzia de anos.
O reencontro nem de longe fora parecido com qualquer dos muitos devaneios de Anne. Ela não o reconheceu quando ele tocou seu braço.Virou-se como viraria para qualquer cliente, fingindo satisfação por ser requisitada. Ele ficou por um instante mudo e sem reação. Ela se roçou em seu corpo; Deslizou de leve a mão direita sobre seu peito. Mas, quando ele abriu a boca e pronunciou seu nome: Anne. Foi ela quem petrificou. Sentiu-se gelar. Quase perdeu os sentidos. Sussurrou depois de segundos o nome dele sem ainda acreditar.
Subiu a escada apoiada em seu braço. Abriu a porta do quarto e entraram num silêncio que parecia sem fim.
Casado - era tudo que ela ouvira. Tentava se concentrar nas palavras que ele vomitava apressadamente. A mulher doente, quase morrendo. Um amor de infância, uma promessa de família. Mudança, outra cidade, queria  levá-la junto, para que fizesse companhia a jovem esposa que em breve iria falecer.
Ela não aguentou. Desmaiou.

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Acordou ainda acreditando não estar de fato desperta. Ele estava ali, sentado ao seu lado, com as mãos no rosto e parecia esconder um choro dolorido. A longa espera que deveria lhe trazer alegria trouxe confusão e amargura. Casado? Não, ela não podia aceitar a proposta de Fernando. Viver sob o mesmo teto que ele sem no entanto poder tê-lo? Por que ele propunha tanto sofrimento? Não seria ela digna de nenhuma consideração por parte dele? Sabia bem qual era seu lugar aos olhos da sociedade. Mas assim, sob o mesmo teto? Junto de uma esposa enferma? Era demasiada humilhante tal proposta.
Ele tentava se explicar, justificar sua decisão atropelada e a proposta agora feita a ela. Mas não havia meios de convencê-la a acompanhá-lo. Além do mais, quando a jovem esposa morreria? E se não morresse? Como ela ficaria? Ao mesmo tempo que ousava formular tais perguntas, Anne se sentia já profundamente culpada por desejar a morte de alguém que nem mesmo conhecia.
Depois de uma longa espera, nem um beijo.  E a despedida foi breve, sem esperança para ambos naquele momento. Mas Fernando disse que não desistiria dela. Que voltaria, assim que estivesse livre, voltaria para buscá-la.

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Anne não teve forças para descer aquela noite e nem nas noites seguintes. Sob protestos e ameaças da Madame ela apenas calava e definhava dia após dia. Uma febre terrível apossou-se dela e dia e noite em delírio doloroso ela chamava por Fernando.

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A liberdade de Fernando estava condicionada a morte de Clarice. Também ele sofria dia após dia. Sofria sentindo-se o pior dos seres humanos. A jovem esposa, a quem ele jamais quis mal, ao contrário, quando crianças eram tão queridos um do outro, passavam muitas horas juntos, milagrosamente parecia diariamente se agarrar mais forte a frágil vida que lhe restava. Ele, que não podia lhe desejar mal, também não podia se alegrar com aquela repentina demonstração de melhora. Casará-se apenas por ser este o desejo da jovem amiga de infância - era assim que ele a via - e que fora condenada pelos médicos. Casou-se por pena, era essa a verdade. E qual não era seu arrependimento agora. E se ela de fato se recuperasse? Teria coragem de deixá-la para buscar sua própria felicidade? Quanto tempo Anne o esperaria? Não faria a Clarice mal maior agora, deixando-a? Seria ela, ainda que recuperada, capaz de suportar tal golpe? O que tinha feito de sua vida?

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A carta da Madame o pegou de surpresa. Seus dias de angustia haviam chegado a um ponto insuportável. Não conseguia esconder de ninguém, nem mesmo da pobre Clarice, o quão consternado sua recuperação o deixava. Ela, que pensava ser correspondida em seu afeto verdadeiro por ele, não conseguia entender aquela tristeza em seus olhos. Quanto mais ela melhorava, quanto mais forte ficava, mais decido ele estava a contar-lhe toda a verdade e colocar um ponto final naquela história que não devia ter começado.
Mas eis que a carta de Madame Suzy lhe chega às mãos. Ele, entre angustiado e esperançoso - teria Anne mudado de ideia? - abre o envelope e começa a devorar as letras bem feitas da Madame. Mas a cada palavra sua face se contorcia em profundo desespero. Lia, relia, não podia acreditar. Morte? Anne, morta? Não, seria uma mentira. Ela teria ido embora com algum cliente e não o desejava ver nunca mais. Não, morta não podia ser. E de tristeza? Clarice, não Anne fora desenganada pelos médicos. Clarice, não Anne devia morrer!
Não, como ele era capaz de pensar tal coisa? Pobre Clarice, não era sua culpa. Se alguém tinha culpa, esse alguém era ele, Fernando. Foi fraco ao se render àquele sentimento de pena. Foi fraco ao procurar Anne e fazer-lhe aquela proposta tão humilhante. Ele era o culpado pela tristeza de Anne, pela morte de Anne. Devia pagar por tudo isso.

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Ainda com a carta da Madame nas mãos, Fernando dirigiu-se à biblioteca. Numa das gavetas da mesa pegou uma caixa de madeira e de lá um revolver. Sem pensar, movido pela paixão que o consumia, como parecia ter sido todos os atos que culminaram naquele momento - a promessa à Anne naquela primeira noite, o casamento com Clarice, a volta ao Cabaret e a proposta feita a Anne - atirou em sua  própria cabeça.

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Pedaços de vida (alheia) - Versão Alfa

Era uma tarde quente de verão. Quente também estavam os corações. E descompassados, amedrontados. Sentados, um do lado do outro, cada um olhando pra um lado. Há quanto tempo estavam assim? Cinco anos, não são 5 dias, nem 5 meses. Mas em que momento deixaram de olhar para a mesma direção? Estavam mudos, e diziam tantas coisas. Era medo, era costume, era um não saber ser sem o outro. Mas, ao mesmo tempo, cada um era do seu jeito, sem encontrar espaço suficiente na vida do outro.
Os livros dela, as roupas dele, dividindo o mesmo teto. E parece que nem sabiam mais quando passaram apenas a dividir o mesmo teto. 
E foi assim, sem ter muito o que dizer, que decidiram entre soluços e silêncios que deviam seguir cada um seu rumo. Se era ponto final, se apenas uma pausa, era cedo pra dizer. Ela juntou suas coisas e os pedaços dela mesma e botou num saco e foi. Ele ficou com o resto e o vazio da falta dela. 

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