sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

É preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem

"É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada senão que é preciso combatê-la a seu lado. Sei, de ciência certa (sim, Rieux, sei tudo da vida, como vê), que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar na cara de outro e transmitir-lhe a infecção." Camus, Albert. A peste.

Outro dia, ouvindo Pais e filhos, da Legião Urbana, essa frase se formou na minha cabeça: é preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem. Na verdade, se formou uma tese: para haver amanhã, é preciso amar as pessoas como se ontem não tivesse existido. E eu estava pensando em muitas coisas. Estava pensando nas pequenas frustrações dos nossos relacionamentos cotidianos - pais e filhos, mães e filhas, amigos, companheiros de vida, colegas de trabalho. Como nós resistimos em perdoar as pequenas falhas dos outros, mas acima de tudo, como resistimos, muitas vezes, em perdoar nossas falhas, grandes ou pequenas. Mas desde 2018, alguns vão dizer que tudo começou antes, se tornou muito difícil, se não impossível para muitas pessoas, perdoar seus compatriotas, mas também seus tios, irmãos, primos, pais, que, de repente, ou não tão de repente assim, assumiram diante de nós posturas que consideramos inaceitáveis. E antes mesmo da chegada do vírus que fez com que muitas famílias não pudessem se reunir este ano, mesas de jantares tornaram-se lugar de saborear o amargor do distanciamento, da impossibilidade de reconhecer no outro, até ontem uma pessoa querida, alguém que respeitávamos, com quem dividíamos memórias e afetos, alguém com quem desejamos dividir o pão. 

2020 foi, de longe, o ano mais difícil da minha vida, profissional e pessoal. E se normalmente essas datas, natal, ano novo, meu aniversário, me trazem um sentimento de angústia, de tristeza, este ano é isso e ao mesmo tempo um vazio que toma conta de tudo. Estamos batendo 190 mil mortos por Covid. A vacina virou mais um capítulo de novela. São milhares de desempregados. Milhares de famílias rumando para a miséria. Mas ainda tem gente que insiste em dizer que é exagero, que não é nada de mais, que a melhor vacina é o vírus. Só mesmo um verme poderia dizer uma coisa dessas. E é sobre esse verme que precisamos conversar. É por causa desse verme que muitas mesas ficaram vazias antes do vírus. Faz um tempo que estamos sendo acometidos por uma contaminação silenciosa, que pouco a pouco vem roubando a nossa humanidade. O perigo, portanto, não é uma vacina nos transformar em jacarés. O perigo é o verme da desumanização nos transformar em zumbis, em mortos-vivos, insensíveis à dor do outro, surdos aos apelos da razão, cegos pelo ressentimento. 

É difícil dizer como tudo isso começou. É bem provável que esse verme tenha existido desde sempre. O que devemos nos perguntar é que condições permitiram o seu espalhamento. Minha hipótese é que esse verme acompanha a humanidade e que exige de nós uma vigilância rigorosa e permanente. Portanto, é preciso entender quando e por que essa vigilância falhou. Também me parece necessário perguntar o que pode ter alimentando o verme e permitido que ele se apossasse tão rapidamente de entes queridos, transformando-os em criaturas irreconhecíveis que, de repente, entre uma prece e outra, passaram a espumar e esbravejar contra a vida de seus semelhantes, empunhar armas - reais ou imaginárias -, tolerar apologia a torturadores, clamar por uma ditadura, enxergar aqueles que buscam por direitos como inimigos e ameaças. 

O que mais ouvi e li em 2020 é que caímos num buraco civilizacional. E parece que cada vez que tentamos sair dele, tudo o que conseguimos é cair um pouco mais. Eu mesma já me peguei chafurdando no ódio e no ressentimento. É bem possível que o verme tenha se apoderado de mim. Ou talvez sempre tenha estado aqui, nas minhas entranhas e nas de todos nós. Um dos sintomas da doença causada por esse verme é a disposição a acreditar que o outro, o que pensa diferente de mim, está sempre errado, enquanto eu, estou sempre certo. Pior: é sentir que o outro é incapaz de alcançar a verdade que eu possuo. Restando-lhe, portanto, me ouvir e aceitar a verdade que tenho a oferecer. Eu, que li muito, estudei muito, gastei meu tempo para entender, sei do que estou falando. Olhando de fora, ainda que essa minha verdade seja mesmo fruto de conhecimento bem construído em evidências e bons métodos, quando enunciada dessa maneira, em nada difere das verdades reveladas por sacerdodes e profetas, tomados pelo mesmo sentimento de superioridade, mas porque fazem parte de um grupo seleto de escolhidos aos quais a verdade foi revelada. Também eles falam e propagam suas verdades, esperando que os demais acolham e passem a aceitá-las. 

Parece-me hoje que o verme que tanto mal nos tem feito é o verme da intolerância. É verdade que as pessoas contaminadas podem manifestar a doença de maneira diferente: alguns têm formas mais brandas; outros, infelizmente, apresentam a forma mais aguda da doença. É bem verdade que as manifestações da contaminação dependem de disposições prévias. Muitos, acometidos pela doença, pensavam que não havia nada de errado com suas atitudes, afinal, sempre pensaram no bem de todos, sempre estiveram apenas querendo salvar os outros da ignorância e das trevas em que viviam. E se eles não conseguiam fazer isso sozinhos, que mal havia em dar uma "forcinha" para tirá-los de lá. Como podem ser acusados de autoritários? Isso é pura ingratidão. Ou incapacidade dos outros, egoístas que são, de reconhecer a nobreza de nossos atos. Era assim que pensavam. Assim pensei muitas vezes. Reconheço. 

Os outros, por sua vez, também contaminados pelo verme, sentindo-se acuados, ressentidos pelo olhar reprovador que insistia em condenar suas crenças, seus medos, suas desconfianças, foram se achando, se juntando, cada vez mais buscando os que lhes pareciam iguais, que não julgavam suas escolhas, que não ridicularizavam seus gostos, que como eles se sentiam cada vez mais humilhados. E nesse movimento, pessoas que tinham pouca ou nenhuma afinidade, de repente foram sendo empurradas para um mesmo bloco. Foram se misturando, foram forjando entre si afinidades, nem que fosse só uma vaga sensação de que não havia para eles espaço naquele mundo cheio de autoridades e especialistas que apareciam com dedo em riste para dizer como deviam pensar, como deviam agir...

E de repente já não parecia haver mais possibilidade de diálogo. Era como se falássemos línguas estrangeiras. Era como se vivêssemos em mundos estranhos. Mas a verdade é que nos afundávamos no mesmo pântano. E nos arrastávamos mutuamente. Ainda nos arrastamos...

A verdade é que estamos todos contaminados pelo verme. Estamos nos tornando zumbis aos olhos dos dos outros e ao mesmo tempo enxergando os outros como zumbis. E cada vez que lembramos o que fizeram - na eleição passada, na década passada, ontem, hoje um pouco mais cedo - parece que construímos muros, fechamos portas, matamos qualquer chance de haver amanhã. Eu nunca tive ilusões com natal, ano novo, mudanças que acontecerão porque mudamos o calendário. Mas sempre fiz minhas listas de início de ano, de bons propósitos, de metas, de coisas que estão nas minhas mãos fazer diferente durante os 365 dias que tenho pela frente. E dessa vez, consciente de que também eu fui contaminada pelo verme da intolerância, a meta será "amar as pessoas como se não houvesse ontem".  Tentar esquecer, para que seja possível imaginar. Tentar perdoar mais ainda as minhas falhas, para que seja possível perdoar as falhas alheias. De resto, 2021 chega com a mesma cara: temos um vírus circulando, uma pandemia ceifando vidas, impondo mudanças, distâncias, perdas, medos. E para conseguir parar o vírus, precisamos antes domar o verme e nos livrar da doença que está nos desumanizando. 

3 comentários:

Tatiana disse...

Dizer o que diante de um texto tão completo. Como domar o verme e acordar seus seguidores é só o que venho me perguntando há algum tempo.

Maria Amélia disse...

Que o amor nos salve a todos ! Que o Amor nutra seu ❤ coração e seja fonte de coragem para a nova semeadura! Feliz 2021!

Erika disse...

"Minha hipótese é que esse verme acompanha a humanidade e que exige de nós uma vigilância rigorosa e permanente."
Essa hipótese é muito válida e bíblica inclusive, ("o mundo jaz no poder do maligno" JOão 5:19).
A maldade está em todos, uns conseguem domá-la outros nem fazem questão.

Mas é difícil acreditar mesmo que pessoas amadas e sensatas possam achar que há algo de bom em todos esses discursos de ódio.

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