quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Não é comemorar o aborto, mas sim a conquista do direito das mulheres de decidir

 "Durante séculos a sociedade encerrou as mulheres, privou-as de sua liberdade e de sentido, conseguiu enlouquecê-las."Monteiro, Rosa, Nós, mulheres: Grandes vidas femininas, Todavia.

Depois de uma longa e histórica sessão do senado argentino, o país vizinho deliberou pelo direito das mulheres de decidir sobre a interrupção voluntária da gestação. A luta das mulheres argentinas certamente se torna exemplo para as demais mulheres da América Latina. Infelizmente o machismo estrutural segue firme e forte no Brasil e muitos homens e mulheres reproduzem falácias sobre o tema. Acusam as mulheres e militantes pelo direito de decisão das mulheres de assassinos, apelam para a sensibilidade religiosa, insistem em culpabilizar a mulher como se a gravidez fosse apenas sua responsabilidade. Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Tratar o aborto pelo viés moralizante - questão de certo ou errado / bem versus mal - não ajuda em nada. É preciso tratá-lo como questão de saúde pública e de justiça. E, muitas vezes, o que é urgente é colocar o debate nos termos corretos, afastando formulações que, seja por ignorância ou má-fé, acabam levando o debate para o caminho errado.

Uma questão muito simples, mas que todos que se posicionam contra o direito das mulheres de decidir ignoram ou fingem ignorar, é que a despenalização e a legalização do aborto, como previstos na Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez recém aprovada na Argentina, não irão obrigar ninguém a abortar. Ao contrário de quem está confortável em impor suas convicções às mulheres - sejam suas convicções religiosas ou simplesmente fruto do machismo que tem prazer em castigar as mulheres -  nós, que defendemos o direito de decisão das mulheres, entendemos que as mulheres precisam ser acolhidas e amparadas em suas decisões - seja para seguir com uma gestação, seja para interrompê-la. Nesse sentido, muito interessante observar que a redação final do projeto aprovado na Argentina também "garante assistência plena do Estado às gestantes de baixa renda, do pré-natal até os 3 anos da criança, fundamental para evitar que a interrupção da gravidez se dê por falta de perspectiva de sobrevivência econômica", conforme apontou Ana Prestes, em artigo publicado no portal O Cafezinho. É muito importante entender - e deixar claro - que a luta pelo direito das mulheres de decidir pressupõe outros direitos como o acesso a educação sexual de qualidade, acesso a contraceptivos e, por fim, acesso a um sistema de saúde preparado para acolher as mulheres em suas decisões.

A grande verdade é que, muitas vezes, os mesmos moralistas que condenam o aborto, estão na primeira fila para jogar pedras na mulher que é "mãe solteira", para responsabilizá-la pela má educação de seu filho ou filha. Quando questionados sobre o "aborto" largamente praticado por homens que não assumem suas responsabilidades, uma vez mais são ligeiros em dizer que as mulheres deveriam escolher melhor com quem transam sem camisinha. Defender o direito das mulheres de decidir não é lutar para que as mulheres possam cometer os mesmos erros que os homens (outra desculpa esfarrapada da qual o machismo costuma se valer). As realidades enfrentadas pelas mulheres, inclusive dentro do casamento, com maridos que se recusam a usar camisinha e jogam a responsabilidade da prevenção toda para suas esposas, são tão diversas e complexas. Mas isso não é empecilho para muitos homens e mulheres que, de bom grado, tomam para si a função de juiz e fiscal da vida alheia. 

Outra falácia, que tem virado modinha, é homens, ou em geral pessoas contrárias ao direito das mulheres, se escondendo atrás de supostas mulheres de periferia - que seriam contra o aborto - para atacar as feministas, as mulheres de classe média, que são "abortistas". Em primeiro lugar, é bem difícil encontrar por aí mulheres "defensoras do aborto". Isso acontece quando perguntas são formuladas justamente para se criar ou fortalecer essa narrativa. Sempre que alguém lhe perguntar se "você é a favor do aborto" é importante pensar em como irá responder. Caso você entenda que as mulheres devam ter assegurado o direito de decidir levar uma gestação adiante ou não, responda: eu sou a favor do direito das mulheres de decidir.  Em segundo lugar, muitas vezes na periferia - onde o número de mulheres vítimas do aborto clandestino, de clínicas irregulares ou de tentativas desesperadas de aborto em casa, é muito grande -, encontramos muitas mulheres que se dizem contra o aborto (como de resto, eu diria, a maioria das mulheres são!), ainda que já o tenham praticado. E não é porque elas são hipócritas. A pressão social e religiosa - o estigma que as mulheres que já fizeram aborto encaram numa sociedade conservadora, machista e hipócrita - muitas vezes explica porque muitas delas ao serem questionadas sobre o aborto e o direito das mulheres de decidir se declaram contrárias a eles. Mas quando perguntadas se já abortaram, essas mesmas mulheres respondem afirmativamente. Entre aquilo que sentimos ou que nos foi ensinado a pensar que é o certo e a realidade que se impõe há, muitas vezes, um abismo que apenas cada mulher, na sua individualidade, conhece e é capaz de julgar o que lhe convém.

Nós, mulheres, somos diversas, somos diferentes, temos discordâncias, enfrentamos realidades tão distintas e não podemos ser tratadas em bloco, como se as "mulheres classe média" ou "as mulheres da periferia" pensassem e agissem do mesmo jeito apenas porque são "mulheres classe média" ou "mulheres de periferia". 

Aos homens e mulheres que se dizem contrários ao aborto, fiquem em paz, ninguém irá obrigá-los a fazer um aborto, ninguém está pedindo que vocês mudem de ideia. Se sua namorada ou você engravidou por descuido - acontece nas melhores famílias - vá em frente, siga com a gestação. Vocês terão seu direito de escolha respeitado. Tudo o que queremos é que também seja garantindo o direito de escolha de outras pessoas que discordam de vocês. Pensem bem qual das posições é autoritária, qual das posições é impositiva, antes de saírem por aí atacando quem luta por direitos. E lembre-se: você concordando ou não, há mulheres fazendo aborto todo dia. A diferença é que algumas delas terão apoio e cuidado e outras não, e por isso podem ter complicações graves de saúde ou morrer. 

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Imagem divulgada nas redes sociais de @brumelianebrum

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Eu canto porque existo neste instante

Se não houvesse a música, o que seria de nós?

Nós a inventaríamos! É fato!

Impossível uma existência sem música. 

Seja alegre ou seja triste,

seja noite ou seja dia,

faça sol, faça chuva ou faça frio, 

a vida é poesia, a vida é música.

E enquanto estou neste mundo,

só é possível ser cantando. 

Quando muda eu estiver, 

que minha voz ainda possa ecoar,

e que a música, os versos, sejam testemunhas da minha breve existência. 

 


 



sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

É preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem

"É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada senão que é preciso combatê-la a seu lado. Sei, de ciência certa (sim, Rieux, sei tudo da vida, como vê), que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar na cara de outro e transmitir-lhe a infecção." Camus, Albert. A peste.

Outro dia, ouvindo Pais e filhos, da Legião Urbana, essa frase se formou na minha cabeça: é preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem. Na verdade, se formou uma tese: para haver amanhã, é preciso amar as pessoas como se ontem não tivesse existido. E eu estava pensando em muitas coisas. Estava pensando nas pequenas frustrações dos nossos relacionamentos cotidianos - pais e filhos, mães e filhas, amigos, companheiros de vida, colegas de trabalho. Como nós resistimos em perdoar as pequenas falhas dos outros, mas acima de tudo, como resistimos, muitas vezes, em perdoar nossas falhas, grandes ou pequenas. Mas desde 2018, alguns vão dizer que tudo começou antes, se tornou muito difícil, se não impossível para muitas pessoas, perdoar seus compatriotas, mas também seus tios, irmãos, primos, pais, que, de repente, ou não tão de repente assim, assumiram diante de nós posturas que consideramos inaceitáveis. E antes mesmo da chegada do vírus que fez com que muitas famílias não pudessem se reunir este ano, mesas de jantares tornaram-se lugar de saborear o amargor do distanciamento, da impossibilidade de reconhecer no outro, até ontem uma pessoa querida, alguém que respeitávamos, com quem dividíamos memórias e afetos, alguém com quem desejamos dividir o pão. 

2020 foi, de longe, o ano mais difícil da minha vida, profissional e pessoal. E se normalmente essas datas, natal, ano novo, meu aniversário, me trazem um sentimento de angústia, de tristeza, este ano é isso e ao mesmo tempo um vazio que toma conta de tudo. Estamos batendo 190 mil mortos por Covid. A vacina virou mais um capítulo de novela. São milhares de desempregados. Milhares de famílias rumando para a miséria. Mas ainda tem gente que insiste em dizer que é exagero, que não é nada de mais, que a melhor vacina é o vírus. Só mesmo um verme poderia dizer uma coisa dessas. E é sobre esse verme que precisamos conversar. É por causa desse verme que muitas mesas ficaram vazias antes do vírus. Faz um tempo que estamos sendo acometidos por uma contaminação silenciosa, que pouco a pouco vem roubando a nossa humanidade. O perigo, portanto, não é uma vacina nos transformar em jacarés. O perigo é o verme da desumanização nos transformar em zumbis, em mortos-vivos, insensíveis à dor do outro, surdos aos apelos da razão, cegos pelo ressentimento. 

É difícil dizer como tudo isso começou. É bem provável que esse verme tenha existido desde sempre. O que devemos nos perguntar é que condições permitiram o seu espalhamento. Minha hipótese é que esse verme acompanha a humanidade e que exige de nós uma vigilância rigorosa e permanente. Portanto, é preciso entender quando e por que essa vigilância falhou. Também me parece necessário perguntar o que pode ter alimentando o verme e permitido que ele se apossasse tão rapidamente de entes queridos, transformando-os em criaturas irreconhecíveis que, de repente, entre uma prece e outra, passaram a espumar e esbravejar contra a vida de seus semelhantes, empunhar armas - reais ou imaginárias -, tolerar apologia a torturadores, clamar por uma ditadura, enxergar aqueles que buscam por direitos como inimigos e ameaças. 

O que mais ouvi e li em 2020 é que caímos num buraco civilizacional. E parece que cada vez que tentamos sair dele, tudo o que conseguimos é cair um pouco mais. Eu mesma já me peguei chafurdando no ódio e no ressentimento. É bem possível que o verme tenha se apoderado de mim. Ou talvez sempre tenha estado aqui, nas minhas entranhas e nas de todos nós. Um dos sintomas da doença causada por esse verme é a disposição a acreditar que o outro, o que pensa diferente de mim, está sempre errado, enquanto eu, estou sempre certo. Pior: é sentir que o outro é incapaz de alcançar a verdade que eu possuo. Restando-lhe, portanto, me ouvir e aceitar a verdade que tenho a oferecer. Eu, que li muito, estudei muito, gastei meu tempo para entender, sei do que estou falando. Olhando de fora, ainda que essa minha verdade seja mesmo fruto de conhecimento bem construído em evidências e bons métodos, quando enunciada dessa maneira, em nada difere das verdades reveladas por sacerdodes e profetas, tomados pelo mesmo sentimento de superioridade, mas porque fazem parte de um grupo seleto de escolhidos aos quais a verdade foi revelada. Também eles falam e propagam suas verdades, esperando que os demais acolham e passem a aceitá-las. 

Parece-me hoje que o verme que tanto mal nos tem feito é o verme da intolerância. É verdade que as pessoas contaminadas podem manifestar a doença de maneira diferente: alguns têm formas mais brandas; outros, infelizmente, apresentam a forma mais aguda da doença. É bem verdade que as manifestações da contaminação dependem de disposições prévias. Muitos, acometidos pela doença, pensavam que não havia nada de errado com suas atitudes, afinal, sempre pensaram no bem de todos, sempre estiveram apenas querendo salvar os outros da ignorância e das trevas em que viviam. E se eles não conseguiam fazer isso sozinhos, que mal havia em dar uma "forcinha" para tirá-los de lá. Como podem ser acusados de autoritários? Isso é pura ingratidão. Ou incapacidade dos outros, egoístas que são, de reconhecer a nobreza de nossos atos. Era assim que pensavam. Assim pensei muitas vezes. Reconheço. 

Os outros, por sua vez, também contaminados pelo verme, sentindo-se acuados, ressentidos pelo olhar reprovador que insistia em condenar suas crenças, seus medos, suas desconfianças, foram se achando, se juntando, cada vez mais buscando os que lhes pareciam iguais, que não julgavam suas escolhas, que não ridicularizavam seus gostos, que como eles se sentiam cada vez mais humilhados. E nesse movimento, pessoas que tinham pouca ou nenhuma afinidade, de repente foram sendo empurradas para um mesmo bloco. Foram se misturando, foram forjando entre si afinidades, nem que fosse só uma vaga sensação de que não havia para eles espaço naquele mundo cheio de autoridades e especialistas que apareciam com dedo em riste para dizer como deviam pensar, como deviam agir...

E de repente já não parecia haver mais possibilidade de diálogo. Era como se falássemos línguas estrangeiras. Era como se vivêssemos em mundos estranhos. Mas a verdade é que nos afundávamos no mesmo pântano. E nos arrastávamos mutuamente. Ainda nos arrastamos...

A verdade é que estamos todos contaminados pelo verme. Estamos nos tornando zumbis aos olhos dos dos outros e ao mesmo tempo enxergando os outros como zumbis. E cada vez que lembramos o que fizeram - na eleição passada, na década passada, ontem, hoje um pouco mais cedo - parece que construímos muros, fechamos portas, matamos qualquer chance de haver amanhã. Eu nunca tive ilusões com natal, ano novo, mudanças que acontecerão porque mudamos o calendário. Mas sempre fiz minhas listas de início de ano, de bons propósitos, de metas, de coisas que estão nas minhas mãos fazer diferente durante os 365 dias que tenho pela frente. E dessa vez, consciente de que também eu fui contaminada pelo verme da intolerância, a meta será "amar as pessoas como se não houvesse ontem".  Tentar esquecer, para que seja possível imaginar. Tentar perdoar mais ainda as minhas falhas, para que seja possível perdoar as falhas alheias. De resto, 2021 chega com a mesma cara: temos um vírus circulando, uma pandemia ceifando vidas, impondo mudanças, distâncias, perdas, medos. E para conseguir parar o vírus, precisamos antes domar o verme e nos livrar da doença que está nos desumanizando. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Dica de leitura: A vida mentirosa dos adultos (Elena Ferrante)

 "Aquela manhã, pensei de repente em algo que me pareceu insuportável e ao mesmo tempo divertido: nem eu nem Vittoria nem me pai podíamos eliminar nossas raízes comuns e, portanto, acabávamos amando e odiando, dependendo do caso, sempre nós mesmos." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.360).

Tem leituras que nos levam para mundos distintos daquele que habitamos e que, de outro modo, jamais conheceríamos. Outras nos fazem mergulhar em nosso próprio mundo, mas vendo tudo, inclusive a nós mesmos, a partir de pontos de vistas até então ignorados ou que não nos eram acessíveis. E foi isso que A vida mentirosa dos adultos fez comigo. Foi uma leitura, em muitos momentos, psicanalítica, com direito a todo desconforto que se olhar no espelho, principalmente num espelho interno, nos causa.  

Elena Ferrante já me havia sido recomendada por algumas amigas que foram arrebatadas pela tetralogia A amiga genial. Estava na minha lista para ler, lista que só faz crescer, numa velocidade muito maior da que consigo ler. Mas foi graças ao Literateia que, finalmente, li Elena Ferrante. Meu contato com ela foi sem mediações, sem informações sobre a autora, sem outras obras para comparar. E o encontro não poderia ter sido melhor. 

"É uma cegueira repentina, você não sabe mais manter a distância, acaba colidindo. Só algumas pessoas ou todas, após certo patamar, ficavam cegas de raiva? E éramos mais verdadeiros quando enxergávamos tudo nitidamente ou quando os sentimentos mais robustos e densos - o ódio, o amor - nos cegavam? (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.343).

A vida mentirosa, do título, pode bem ser uma referência à suposta distinção entre as pessoas cultas, bem educadas, intelectuais que habitam a cidade alta, como os pais de Giovanna e os pais de Angela e Ida, e as pessoas sem educação, pobres, feias, da cidade baixa, como Vittoria, Margherita, Corrado e Rosario. Afinal, ao seguirmos os passos de Giovanna e nos aventurarmos pelas ruas cada vez mais mais feias, sujas e mal encaradas da Nápoles do bairro industrial, ao descobrirmos com Giovanna as origens e os membros da família de seu pai, professor de história e filosofia, intelectual sempre imerso em profundas discussões acerca de grandes questões, somos lançados também nas entranhas daquilo que nos faz humanos, encarando desejos, traições, medos, ressentimentos, ciúmes e mesquinharias das mais variadas, todas nuas, despidas de qualquer maquiagem ou retoque, seja o domínio do italiano culto, seja das vestimentas elegantes e finas, das joias, ou das fachadas requintadas dos prédios que superficialmente demarcavam a separação entre aquelas pessoas, entre Andrea e Vittoria, o pai e a tia de Giovanna.

"O que se passava, afinal, no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduzia a animais dentre os menos confiáveis, piores do que os répteis?" (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.169).

A história é narrada por uma adolescente - ou melhor, por uma jovem saindo da adolescência e entrando na vida adulta - que nos conduz pelos anos de sua adolescência. Exatamente quantos anos a narradora tem quando nos conduz pelos fatos que marcaram sua adolescência não é possível precisar, mas certamente temos um olhar retrospectivo, uma tentativa de compreender e dar sentido às experiências vividas; talvez uma tentativa de encontrar a sua própria versão para os fatos: a separação dos pais, a amizade e as traições entre seus pais e os pais de suas amigas, a origem da pulseira que ela ganhou de sua tia Vittoria, a relação conturbada entre seu pai e sua tia.

"Na opinião dele, só quem está sempre com um livro na mão merece habitar a Terra, para ele, se você não estudou, não é ninguém. Ele me dizia: que bailarina,Vittoria, você nem sabe o que é uma bailarina, volte a estudar e cale a boca." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos,Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.68).

As relações entre Andrea e Vittoria podem ser lidas como mais uma de muitas relações conflituosas entre irmãos que, ao escolher caminhos diferentes, abrem verdadeiros abismos entre si. Mas podem também refletir escolhas de uma nação que, a partir de um certo momento, cria para si uma identidade, uma imagem, dentro da qual não cabem aqueles que não aceitaram renegar suas origens, que fazem questão de manter velhas tradições, que por teimosia se negam a se adequar, que não querem abrir mão daquilo que são para se enfiarem dentro de um traje ou de uma máscara que os tornariam aceitáveis. 

A vida mentirosa dos adultos é um prato cheio para lidarmos com profundas questões humanas, demasiadamente humanas. Nos gera desconfortos ao insinuar que a autoimagem que vamos construindo de nós ao longo da vida possui rachaduras, pequenas fissuras; que aquilo que os outros veem quando nos olham não é exatamente o que gostaríamos que eles enxergassem. Pior ainda: que essa autoimagem pode ser diretamente modificada pelo outro, alguns outros que, de forma consciente ou não, permitimos que tenham poderes de transformar a maneira como nós mesmos nos enxergamos. 

"Tenho o número de telefone dele, vou ligar e dizer: você me acha mesmo bonita? Cuidado com o que você diz, meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia; não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito. Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.392).

A leitura de A vida mentirosa dos adultos teve seus momentos de dores, de vergonha, de medo. Também eu estou cansada de ser exposta às palavras dos outros - outros muito pontuais, com relação aos quais preciso entender/estabelecer qual é o meu lugar, mas não o lugar que eles me levaram a ocupar ao longo dos anos. Mas também é preciso rever minhas palavras em relação a outros que talvez, como Giovanna, tenham suas feições modificadas pelo que eu falo. Entender que a versão que fazemos de nós, mas também as versões que fazemos dos outros, assim como as versões que os outros têm de si mesmos e de nós podem conter verdades e mentiras, ambas honestamente sentidas como verdades, é um grande desafio. Para além das intenções de enganar, as mentiras muitas vezes são as únicas possibilidades de manter uma unidade para o eu que foi forjado ao longo da vida - seja de um indivíduo ou de uma nação. Mas não precisa ser assim, no entanto, a jornada que nos leva a nossa imagem sem máscaras pode ser muito difícil e pode nos levar a rupturas duras e, aos olhos dos outros, incompreensíveis, em busca de uma vida autêntica. 

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