terça-feira, 29 de outubro de 2019

O curioso caso da imprensa brasileira. Ou sobre a seletividade do bom senso quando o assunto é a reforma da previdência.

(...) se a imprensa tiver de se tornar algum dia realmente o "quarto poder", ela precisará ser protegida do poder governamental e da pressão social com zelo ainda maior que o poder judiciário, pois a importantíssima função política de fornecer informações é exercida, em termos estritos, exteriormente ao domínio político; não envolve, ou não deveria envolver nenhuma ação ou decisão. Arendt, Hannah, Verdade e Política, in Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Perspectiva, 2016.

O papel da imprensa é fundamental numa democracia. O jornalista profissional, nessa perspectiva, tem uma responsabilidade imensurável na garantia de um ambiente verdadeiramente democrático e na garantia da "mais essencial liberdade política, o direito à informação não-manipulada dos fatos, sem a qual a liberdade de opinião não passa de uma farsa cruel", como nos diz Arendt em A mentira na política (Perspectiva, 2017). Mas por que lembrar disso? Primeiro porque, infelizmente, por variados motivos, vivemos um período de ataques e tentativas de desmoralização da imprensa por parte de autoridades políticas, no Brasil e mundo afora. Segundo porque a imprensa e os jornalistas me parecem ter uma parcela considerável de responsabilidade pelo descrédito do qual têm sido vítimas. A cobertura feita pela imprensa brasileira sobre a reforma da previdência é um bom exemplo dessa responsabilidade. Não houve debate, foi uma narrativa única de defesa da reforma. Houve aqui e ali alguma tentativa de amenizar a narrativa apocalíptica com a qual o governo ameaçava a população, a fim de empurrar goela abaixo a reforma. Aqueles que se opunham a proposta do governo não tiveram espaço nos grandes meios de comunicação: jornais impressos, TV e revistas. Era como se não tivéssemos opção, era isso ou isso.

No início de ano, quando Paulo Guedes apresentou a PEC 06/2019, chamada, falaciosamente, de Reforma da Previdência, Reinaldo Azevedo foi um dos defensores da tal reforma. Segundo ele, em fevereiro de 2019, "a proposta da reforma da Previdência era boa". E seguia o articulista: "entendo que a reforma da Previdência, escoimados eventuais exageros, é socialmente justa e economicamente "progressista", para quem gosta dessa palavra. E não apenas porque corta mais de quem tem mais, mas porque o déficit previdenciário consome recursos que podem e devem ser aplicados no combate às tais iniquidades." Segundo Azevedo, a proposta era boa, apesar do governo ser ruim e, por isso, terminava seu artigo no seguinte tom: "Temos uma proposta boa de reforma e um governo ruim. Porque ela é boa, não deveria ser desfigurada. Porque ele é ruim, não deve ser poupado."

A tal 'proposta boa e que não deveria ser desfigurada', incluía a capitalização individual sem contribuição patronal, defendida por Paulo Guedes usando como referência a reforma feita no Chile, durante a ditadura militar. Mas durante o primeiro semestre de 2019, não tivemos um jornalista de peso, e com isso me refiro àqueles profissionais que atuam na grande mídia, incluído aí Reinaldo Azevedo, que fizesse uma leitura crítica sobre os efeitos daquela reforma no Chile. Mas eis que o segundo semestre chegou e explode no Chile manifestações cada vez mais duras e violentas, mostrando para todos a insatisfação dos chilenos, aqueles que, segundo Guedes, vivem na Suíça da América Latina.

Só então nossos jornalistas parecem ter acordado do sono profundo de Bela Adormecida que os acometia no semestre anterior. Enquanto dormiam, sonhavam com os indicadores: crescimento do PIB, renda per capita, e era tudo uma maravilha. Quando pareciam que iam acordar, falaram besteira, por má-vontade ou má-fé, tentando colocar no mesmo lugar a proposta do PDT de reforma da previdência e aquela defendida pelo Guedes (Lamentavelmente a deputada Tábata Amaral também tem recorrido a essa falácia de comparar a proposta do PDT com aquela aprovada no Congresso) ou sinalizando que no Chile havia problemas, assim, superficialmente, com meia dúzia de palavras, só para não dizer que não falei, como fez Miriam Leitão. Ainda agora tem jornalista querendo enganar incautos afirmando que na proposta do governo estavam previstos três pilares e não apenas a capitalização pura e simples. Balela! Os três pilares estão previstos na proposta do PDT, defendida por Ciro Gomes e Mauro Benevides, e eram tratados como 'oposição desvairada' quando, no primeiro semestre de 2019, denunciavam as inconsequências do modelo chileno. Ambos pareciam profetas no deserto (no caso, no youtube, nas redes sociais, universidades, sindicatos, enfim, na estrada) uma vez que não tiveram espaço para apresentar a proposta que defendiam nos grandes meios de comunicação. Enquanto isso, todo dia, Jornal Nacional, CBN e todos os outros meios, martelando que sem reforma da previdência o Brasil estaria condenado ao caos.

Mas diante do caos no Chile, qual não é a minha surpresa: 'O Chile não é a maravilha que os liberais defendem', manchete no site da CBN, da coluna da Miriam Leitão, em 22/10. Agora a colunista resolveu mostrar quais os problemas que temos no Chile: desigualdade alarmante, serviços como ensino e saúde privatizados e, ora vejam, uma aposentadoria que empobrece a população de idosos, graças a reforma da previdência feita durante a ditadura militar, que introduziu o regime de capitalização individual, sem contribuição patronal, a mesma que era a menina dos olhos do Guedes...

E o que dizer da coluna do Reinaldo Azevedo na Folha no dia 25/10: "Não há mais o que privatizar por lá nem reforma da Previdência a fazer. Já foi feita. Vigora no país, desde 1981, o regime de capitalização, sem contribuição empresarial, o que é uma aberração." Sim, o Reinaldo está falando do Chile, e agora 'a capitalização sem contribuição empresarial é uma aberração'. Mas quando o Guedes apresentou sua proposta, incluindo a capitalização à la Chile, ela era boa, podia até conter eventuais exageros, mas era boa, e não deveria ser desfigurada. Reinaldo chegou a afirmar em seu programa O é da coisa, que 'até onde tinha visto, apoiava na íntegra a reforma da previdência do governo'. Ao falar da capitalização, Azevedo afirma que no Chile esse modelo está dando problemas, aposentadorias muito pequenas, e que era preciso pensar numa solução para que no Brasil isso não acontecesse. Para ele, a capitalização seria optativa, coisa que não era nada clara na proposta do governo. Muito pelo contrário, na página 55 da PEC, tópico 56, falava-se em "novo regime, que substituirá o RGPS". Se a ideia era substituir, não se tratava de algo optativo. É o que lemos na  página 54, tópico 55: "propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS" (Talvez o Reinaldo não tenha lido essas páginas quando declarou seu apoio integral à proposta...). O regime de capitalização apresentado pelo governo era, no limite, um cheque em branco, pois o texto previa uma Lei complementar de iniciativa do poder executivo que iria instituir o novo regime. Tudo que sabíamos sobre o tal novo regime, era que Guedes se orientava pelo modelo chileno. Reinaldo amenizava os problemas que poderiam decorrer da reforma e dizia que 'a sociedade' teria que discutir. Simples assim. O problema era, e ainda é: 'a sociedade'  estava/está bem informada sobre o assunto? Conforme análise que fiz em outro texto, a discussão sobre a PEC 06/2019 esteve desde o início emaranhada em falácias, e uma delas é chamar de Reforma da Previdência o que era uma proposta de Reforma da Seguridade Social.

Pois é, fico feliz em ver que as pessoas, inclusive os jornalistas, podem recuperar o bom senso e o compromisso com os fatos. A imprensa e os profissionais do jornalismo não falham apenas quando manipulam fatos - isso é muito grave! -, mas também quando omitem os fatos. Durante o primeiro semestre, o objetivo da imprensa parecia ser aprovar a reforma da previdência. Para alcançar este fim, valia fechar os olhos para as mazelas que já se faziam presentes no país ali do lado. Quando Guedes publicamente afirmava que o modelo chileno era sua inspiração, não houve compromisso da imprensa e dos jornalistas em se debruçar sobre a realidade do Chile e informar a população brasileira das consequências que aquele modelo idealizado pelo ministro trouxe para os chilenos. Felizmente, a capitalização foi barrada no Congresso. Mas tramita no Senado uma PEC paralela que prevê a volta do sistema de capitalização. Agora, diante das convulsões vividas pelo Chile, restará a Paulo Guedes e sua turma fazer como Queiroz, dar uma sumidinha, fingir que não é com eles. Essa estratégia já é bem conhecida desse governo. Mas é preocupante que a imprensa brasileira também a adote. Informar a população, principalmente sobre temas que têm potencial de impactar diretamente a vida de milhões de pessoas, é tarefa que não pode ser feita de acordo com os humores do mercado ou interesses particulares de grupos. A seletividade do bom senso não pode ser estratégia do bom jornalismo. E, nesse contexto, a mudança no tom adotado essa semana por Miriam Leitão e Reinaldo Azevedo é um exemplo de como a imprensa e os jornalistas estão falhando na sua tarefa fundamental.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O dia que o Coringa virou político (e não foi de Gothan)

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(Imagem : Divulgação Warner Bros)
1- A ficção que parece realidade

O filme Coringa (Joker- 2019), dirigido por Todd Phillips e com a impressionante atuação de Joaquin Phoenix, é mais um filme que faz a gente sair do cinema sem rumo e mudo. Para quem não gosta de filmes de super-herói ou desse universo das HQs, ainda vale a pena considerar ver Coringa. Se você é professor/educador e trabalha com adolescentes, mais um motivo para vê-lo. Se você se incomoda com a banalização da violência promovida ultimamente por autoridades públicas, outro bom motivo para ir ao cinema e conferir Coringa. Mas o meu objetivo não é fazer propaganda do filme. Então vamos ao que interessa.  (Aviso: o texto a seguir contém spoilers!)

Na telona vemos o retrato de um indivíduo em sofrimento psíquico e emocional, um loser dentro de uma sociedade totalmente doente e disfuncional. Um palhaço que tenta ganhar a vida fazendo propaganda para comércios de rua. Há lixo por todos os lados, barulho, gente andando feito zumbi por uma cidade suja, escura e muito feia. O protagonista vive num prédio que mais parece um edifício abandonado. Mora com uma mãe adoentada, frágil, que passa os dias diante da TV assistindo a programas de humor e noticiários, uma alternância entre o riso provocado por piadas de qualidade duvidosa e o horror diário da cidade, enquanto espera a chegada do correio, de alguma resposta do ex-patrão para quem trabalhou no passado. Ela acredita que aquele bom homem quando souber como ela e o filho vivem, certamente virá em seu socorro. Entre o cuidado da mãe e o trabalho, o personagem frequenta sessões de terapia num cômodo claustrofóbico, com as paredes tomadas por estantes entulhadas de papéis, onde ele consegue um papel que lhe garante medicamentos de graça. O quadro é desolador. Mas Arthur Fleck quer ser comediante e numa espécie de diário anota seus rascunhos para um show de stand-up. A vida, por sua vez, insiste em bater no personagem: adolescentes roubam sua placa de anúncio, ele tenta recuperá-la e leva uma surra dos moleques que acabam por quebrar a placa. O chefe chama Arthur e diz que tem muitas reclamações dos clientes, o dono da loja reclama a placa que ele perdeu, Arthur tenta se justificar e leva bronca. Os colegas de trabalho, outros palhaços, riem e zombam de Arthur. Um deles tem a brilhante ideia de oferecer uma arma ao personagem, para que ele se defenda de bandidos e moleques que roubam tudo e fazem maldades. Entre muitas coisas ruins que lhe acontece, Arhtur é mandado embora do emprego e é avisado de que o programa de saúde que frequentava semanalmente foi cancelado: não teria mais reunião nem remédios. Na volta para casa, três homens bem vestidos (de terno e gravata) e bêbados, depois de importunarem uma jovem, partem para cima de Arthur e mais uma vez ele é espancado.

A cidade tomada pela sujeira - montanhas de sacos de lixo pelas ruas e muita pichação - e pela miséria é o cenário perfeito para que a revolta e a violência se alastrem e junto com eles o ódio aos ricos, uma pequena parcela daquela sociedade decadente que segue imune a todos os dramas vividos pela massa. Uma elite que vai ao teatro e ao cinema com suas roupas e chapéus elegantes, confiantes de que desfrutam daquilo que merecem porque se esforçaram para ter aquela vida. O sonho de Fleck é participar do famoso programa de humor da TV. Um dia, um vídeo seu, de um stand-up, vai parar na TV. Mas ele é ridicularizado e humilhado pelo apresentador. Em meio a tudo isso, cresce o motim na cidade, principalmente depois que três homens são assassinados no metrô por um sujeito vestido de palhaço. A cidade está fora de controle. Arruaceiros tomam conta de cada esquina: roubam, pilham, matam, botam fogo em tudo. E todos vestidos de palhaço. Pois, um sujeito da elite, Thomas Wayne, que pretendia estrear na política, apareceu na TV chamando toda aquela multidão de insatisfeitos e revoltados que de certa maneira, haviam comemorado o assassinato dos três homens de bem no metrô, de palhaços. 

 2- A realidade 

Foi também através das telas de TV que um sujeito medíocre e sem graça ganhou notoriedade num programa de humor. Ele não queria ser comediante, mas os comediantes do programa achavam que daria uma boa piada o discurso destemperado daquele político sem brilho e rejeitado pelos próprios colegas. Achavam que seus ataques preconceituosos e sua defesa descabida da ditadura poderiam ser motivos de risadas (e de pontos de audiência). Funcionou, muita gente teve notícia de um deputado sem noção, racista, homofóbico e machista. Mas não acharam graça. Levaram a sério. Acharam que ele representava bem suas próprias insatisfações. Suas falas grotescas e violentas encontraram eco numa população sofrida e cansada de sentir feita de palhaço por uma classe política que finge bons modos, que faz discurso politicamente correto, mas que não sente nenhum pudor em aceitar suborno, em participar de esquemas ilícitos, em se sentar na mesa dos poderosos e fazer acordos indecorosos. 

Mas o deputado-comediante era diferente. Ele era sincero, dizia exatamente o que todos queriam dizer. E foi assim, fazendo sinal de arminha com as mãos, defendendo o armamento da população, a pena de morte, negando a história e mentindo descaradamente, que esse sujeito virou presidente. Embora chamado de mito por seus seguidores, o que pode nos remeter a figura do herói tal qual nos mitos gregos, o sujeito em questão nada tem de herói. E se quisermos reduzir o mundo ao maniqueísmo das HQs, certo mesmo seria chamá-lo de vilão. No entanto, como nos mostra o filme Coringa, a personalidade do vilão pode ser muito complexa. De modo que, ao contar a história da construção dessa personalidade de vilão, cai por terra o próprio maniqueísmo herói-vilão. Diferente do que esbravejava o deputado-comediante, bandido não é uma condição de nascença. Não se nasce bandido, não se nasce vilão. Mas muitos fatores podem nos ajudar a entender como alguém se torna um vilão ou um bandido. E contar essa história, ao contrário das acusações feitas ao filme Coringa, não é justificar suas ações de vilão, nem retirar sua responsabilidade pelas ações cometidas. Mas pode ser uma maneira de evitarmos que outros vilões apareçam. Humanizar o vilão, mostrar a complexidade de ser humano, pode servir como vacina ou antídoto num mundo sujo e tão propício a espalhar sua sujeira aos quatro ventos. 

3- A realidade que parece ficção

O deputado-comediante-sem-graça que virou presidente teve uma infância pobre numa região que, como muitas outras de seu país, era dominada por uma elite, um coronel ou coisa do tipo. Ele, quando menino, experimentou esse sentimento de revolta, tão comum a quem em sua condição se vê diante da fartura de uns poucos. Não parece fazer sentido, os perrengues diários de muitos versus a abundância e excessos de uns poucos: casas luxuosas, carros, piscinas, crianças que podem tomar sorvetes, enquanto se vive numa pequena casa de dois quartos, com mais cinco irmãos e é preciso trabalhar desde garoto para que a família tenha como sobreviver. Dá raiva mesmo. Sentimos que é injusto. Essa talvez tenha sido a primeira e mais profunda experiência do nosso personagem com o sentimento de 'ódio aos ricos'.

O deputado-comediante quando adolescente assistiu a uma caçada, de mocinhos contra bandido, e desde então, achou que o mundo era assim, divido entre bons e maus. E ele decidiu que estaria do lado dos 'bons'. Foi para o exército. A guerra entre mocinhos e bandidos, heróis e vilões, foi cultivada na sua curta inteligência. Misturando esse episódio com aquele ´ódio aos ricos' da infância, nosso personagem escolheu como seu inimigo um dos herdeiros daquela família poderosa da pequena cidade de sua meninice. E a ditadura que prendeu e matou seu inimigo, se transformou em sua grande heroína. A ditadura fez justiça contra aquela família mesquinha de ricos da sua infância pobre. 

Mas não era bem no exército que ele queria ficar - talvez lhe faltasse destreza com as armas, embora devote a elas certa fixação fálica, pois mesmo armado, certa vez foi assaltado e levaram sua moto. E foi depois de quase liderar um motim no exército por aumento de soldo e de um plano frustrado de explodir bombas em quartéis do Exército que ele se tornou político. 

Se o Exército era o lugar dos mocinhos, ao se rebelar contra o exército, nosso personagem estaria indo para o outro lado, o dos bandidos? E foi na condição de político que ele defendeu bandidos sem nenhuma cerimônia: fez apologia às milícias (e, hoje sabemos, manteve amizade próxima com milicianos, inclusive empregando familiares deles no seu gabinete). Diz o ditado que filho de peixe, peixinho é, e no caso do nosso personagem, os três filhos são políticos e também empregaram milicianos e familiares em seus gabinetes. Que fique claro, não acredito que seja uma questão de natureza ou essência. Mas não duvidamos que o exemplo e o hábito tenham forjado na prole os mesmos maus comportamentos do progenitor.

Nosso personagem, assim como o Coringa, talvez tenha uma dificuldade em discernir entre realidade e imaginação. Pior, talvez tenha sérios problemas em aceitar que a realidade não se submete à sua imaginação. Essa insubordinação o deixa muito contrariado, e é preciso atacar a realidade, violentá-la a fim que de que se adeque aos seus desejos.

O que não falta são pessoas dizendo que nosso personagem, tal qual Arthur Fleck, sofre de algum transtorno mental. Mas até hoje essas acusações são só boatos. Mas quem se dispõe a analisar as falas do nosso personagem, rapidamente encontra: sinais claros de ressentimento; uma insegurança mal disfarçada que aparece na forma de ataques a tudo e a todos; alguns temas recorrentes em seus discursos e ataques que revelam possíveis traumas de infância ou baixa autoestima; uma mania de grandeza e ao mesmo tempo de perseguição, comportamentos tipicamente paranoicos. 

Muito provavelmente nosso personagem, da mesma maneira que Arthur Fleck, precisou de ajuda e, é bem provável, também se viu abandonado e sozinho. Não sabemos bem quem foram seus algozes, mas é possível arriscar que aquela família rica da sua infância personificou o alvo do seu ódio ao mesmo tempo que figurava como culpada por sua pobreza e as mazelas que certamente viveu junto de sua família na infância. Talvez de maneira até inconsciente, seu objetivo sempre tenha sido ocupar o lugar dos seus inimigos. A sua ganância foi observada durante a passagem pelo exército. Hoje, na pequena cidade da sua infância, é o seu sobrenome que se destaca no comércio local. Hoje sua família é a dona da cidade. Chegar à presidência era tão impossível, que ainda hoje, claramente, nosso personagem não consegue lidar com a realidade e vive no eterno papel do candidato, no palanque, fazendo promessas e bravatas, instigando as massas à violência e ao caos.

Com um palhaço na presidência, lendo as notícias a gente ri, mas é de puro desespero, de nervoso. Estamos experimentando a doença de Fleck. Porque o presidente-palhaço continua sem graça, o país cada dia mais parece aquela cidade feia e suja da telona, a miséria cresce, o número de desempregados e da violência também, enquanto partes do país ardem em fogo, tal qual a cena final do filme. E quando o presidente abre a boca, como seu discurso tresloucado na ONU, o que se ouve é uma piada de mau gosto. Ninguém ri. Mas é bem possível que o mundo vire as costas para esse país. E como não se trata de um enredo de HQ, não adianta esperar um herói para nos salvar. Uma coisa é certa: só o caos é a garantia de que ele continuará reinando, e por isso também nosso personagem não pode abandonar seu papel: o de palhaço que põe fogo no circo.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Sobre ensinar e educar numa perspectiva arendtiana

"A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação." (Arendt, Hannah, A crise na Educação)
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Constituição Federal de 1988)
"quem educa é a família. A gente ensina". "Ensina a ler, ensina um ofício", disse.... - Veja mais em https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/09/26/ministro-da-educacao-critica-a-palavra-educacao-quem-educa-e-familia.htm?cmpid=copiaecola
 "(...) quem educa é a família. A gente ensina. Ensina a ler, ensina um oficio." Abraham Weintraub, ministro da educação.
Segundo o site da Secretaria de Educação de São Paulo, o dia dos professores, 15 de outubro, faria referência ao 15 de outubro de 1827, data do Decreto Imperial que criou o Ensino Elementar no Brasil. Segundo o Decreto, "deveriam ensinar, para os meninos, a leitura, a escrita, as quatro operações de cálculo e as noções mais gerais de geometria prática. Às meninas, sem qualquer embasamento pedagógico, estavam excluídas as noções de geometria. Aprenderiam, sim, as prendas (costurar, bordar, cozinhar etc) para a economia doméstica". Em 1947 um grupo de docentes propôs a data como dia dos professores, um momento de parada para descanso e para reflexão sobre o processo educacional.  Mas foi em 1963 que a data tornou-se oficialmente, dia dos professores. 

Nesse 15 de outubro, me proponho a fazer uma reflexão sobre 'educação e ensino'.  A discussão sobre esses termos e, mais apropriadamente, sobre 'ser educador' ou 'ser professor' não é de hoje. Lembro bem de ter ouvido algumas vezes de colegas em sala de professores: eu sou professor, estou aqui para ensinar (matemática, inglês, geografia, etc) e não para educar, isso é obrigação da família. Por outro lado, durante minhas aulas da licenciatura, e também reuniões de formação continuadas nas escolas (htpcs/atpcs), muitas vezes debatemos sobre as responsabilidades e o papel da escola e dos professores no processo de formação da criança e do adolescente. Responsabilidades que vão muito além dos conteúdos ministrados em cada disciplina. E não falta exemplo na literatura especializada do dilema - falso, na minha opinião - entre educar ou ensinar. É também possível identificar nesse debate uma postura que, ao retirar a centralidade dos conteúdos a serem ensinados, acaba dando demasiada ênfase a uma educação que, muitas vezes, se degenera em sentimentalismos vazios ou flerta com moralismo barato. É por isso que, em tempos de Escola sem Partido, Ideologia de Gênero e fundamentalismo religioso assumindo ares de política de estado, a declaração do ministro da educação de que 'quem educa é a família. A gente ensina. Ensina a ler, ensina um oficio' mostra que nós, professores, temos um grande desafio pela frente.

Como nos lembra Hannah Arendt, a educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, o que nos ajuda a entender  o porquê das escolas e das políticas educacionais estarem constantemente em disputa entre os mais variados grupos da sociedade. Para Arendt, "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo". Para a autora, a natalidade, assim como a vida, a mortalidade, a pluralidade, a mundanidade e a Terra, são condições da existência humana (Cf. ARENDT, 2014, p.14). Mas nenhuma delas individualmente ou somadas nos condicionaria de modo absoluto. A natalidade, a vinda de novos seres humanos ao mundo, nos coloca diante de seres inacabados e de um mundo em renovação contínua. Na condição de inacabados, de seres em formação, e de recém-chegados, as crianças precisam ser familiarizadas com o mundo. Elas são herdeiras de um mundo que já está pronto. Mas, ao mesmo tempo, esse mundo, que precisa ser preservado e entregue aos recém-chegados como parte de sua herança, está em mudança, justamente porque o novo está sempre chegando, através da natalidade. Aos adultos cabe a tarefa dupla de proteger o mundo, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração e, ao mesmo tempo, cuidar e proteger a criança para que nada de destrutivo lhe aconteça por parte do mundo (ARENDT, 2016, p.235). Se inicialmente essa tarefa está nas mãos dos pais, que trazem seus filhos à vida e ao mundo, posteriormente também é tarefa do educador-professor e, de maneira mais ampla, é tarefa de todo adulto em relação à criança e ao jovem. A autora afirma que "o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é" (ARENDT, 2016, p.239).

Também aprendemos com Hannah Arendt que "na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade." No entanto, destaca a autora, "a autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa". E, ela segue, "embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade". Assumir essa responsabilidade e, portanto, esse lugar de autoridade é um ato de amor pelo mundo e pela criança (Cf. ARENDT, 2016, p. 247). E é justamente nesse ponto que Arendt parece encontrar as explicações mais gerais para a crise na educação que dá título ao seu artigo e que era vivenciada pelos EUA no final dos anos 1950, mas que também se fazia presente em outras partes do globo. A crise na educação era, na verdade, uma crise da autoridade, iniciada na esfera pública, na política, durante a idade moderna e que, no mundo contemporâneo, teria se espalhado para a esfera privada, afetando instituições como a escola e a família (Cf. ARENDT, 2016, p.240). Essa crise da autoridade se materializa na recusa, por parte dos adultos, de assumir aquela responsabilidade pelo mundo. Ao rejeitarem assumir a responsabilidade pelo mundo, os adultos denunciam seu descontentamento com o mundo, sua insatisfação com o estado de coisas, mas também uma incapacidade de aceitar que, de algum modo, também são responsáveis pelo que o mundo é agora e, diante dele e das crianças, lavam suas mãos.

A partir das ideias de Hannah Arendt sobre educação, parece que o dilema 'professor ou educador' não faz muito sentido. Dentro da escola, o profissional da educação seria tanto educador - na condição de adulto diante de crianças e jovens - como aquele que ensina, portanto, professor - condição que depende de suas qualificações específicas. Arendt é bastante assertiva ao diferenciar "educação" de "aprendizagem". Enquanto a educação precisa ter um final previsível, a aprendizagem se estenderia por toda a vida. O final da educação, mas não da aprendizagem, se daria ao término da educação básica ou do nosso ensino médio, próximo dos 18 anos. Nesse sentido, o principal objetivo da educação é 'introduzir o jovem no mundo como um todo' e, desse modo, 'a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é". Para Arendt, "não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem ser educado"  (ARENDT, 2016, p.246-247).


Considerando essa distinção da filósofa entre 'educação' e 'aprendizagem' poderíamos dizer que, em partes, estamos de acordo com a afirmação inicialmente citada de Weintraub, dado que ela foi feita num evento com representantes do ensino superior. Esse segmento já não diria respeito, na perspectiva de Arendt, à educação, mas seria do campo da aprendizagem e do ensino. No entanto, o erro do ministro é dizer que quem educa é a família e que a escola (básica) ensina a ler ou ensina um ofício. Certamente é responsabilidade da família educar, assim como o é, segundo a Constituição Federal, responsabilidade do Estado e da sociedade. A educação, no sentido arendtiano, é um processo de humanização, um processo através do qual nos tornamos integrantes desse mundo compartilhado, desse mundo do qual somos, ao mesmo tempo, herdeiros e agentes de transformação. Esse mundo que é marcado pela pluralidade e que não é, nem pode ser, entendido como extensão da minha família. A escola, como intermediária ou espaço de transição entre as esferas privada e pública tem o papel de introduzir a criança e o jovem na pluralidade própria da esfera pública, portanto, ir além do mundo-família. A escola básica, os professores e todos os adultos ali presentes, introduzem a criança e o jovem numa dimensão do mundo que é, portanto, mais ampla que a família. 

Assim como Weintraub, há um grupo crescente na sociedade brasileira - mas também mundo afora - que pretende reduzir a política e a vida pública às regras da vida privada, da sua família. Como observa Hannah Arednt em O que é política?, organizar a sociedade sobre a família significa extinguir a diversidade própria da política e tentar suprimir a pluralidade dos homens em favor do homem, no singular (Cf. ARENDT, 2017, p.22). Um homem-narcísico que busca reproduzir no mundo sua própria imagem. Esse homem-narcísico fala como se representasse todos, a sua família torna-se o modelo de família de todas as famílias, a sua verdade é apresentada como sendo a verdade de todos, os seus valores, o seu deus, a sua fé, etc. E quando o outro aparece, é na figura de inimigo a ser combatido. A família-do-outro não é reconhecida como família, o deus-do-outro não é reconhecido como deus, a fé-do-outro não tem espaço no mundo. A escola, nessa perspectiva, ou irá ensinar um conjunto de saberes técnicos e neutros ou será denunciada como doutrinadora. A escola não pode estar em desacordo com a família, assim como a sociedade em geral deverá espelhar os valores e crenças da família. Percebam que é sempre no singular: em defesa da família; os valores e religião da família; 'quem educa é a família'. Estamos presenciando tentativas de anular toda e qualquer pluralidade, tentativas de anular a política, entendida como Hannah Arendt a entendia, como convivência entre diferentes.

Embora pese sobre Arendt a acusação de que ela teria estabelecido uma ruptura entre política e educação (tema que merece ser explorado em outro texto), me arrisco a dizer que tal ruptura pode ser muito bem justificada, mas que também não é definitiva. Justificada na medida em que funciona como vacina tanto para aqueles que querem transpor as regras da política para as relações escolares, entre as crianças e jovens, desrespeitando as singularidades dessa etapa da vida, como para aqueles que, no âmbito público, pretendem transpor as regras da relação adulto-criança para o campo da política. Concordo com Arendt que é um erro, durante o processo de educação, tratar crianças como adultos, do mesmo modo que é um erro tratar adultos como criança no contexto político. O que presenciamos hoje, e o ministro da educação tem se mostrado um representante dessa encenação, é uma dupla tentativa de destruir a política seja por suprimir a pluralidade (de ideias, de opiniões) seja por, com a desculpa de retirar a política da escola, transformar a vida pública num espaço de educação de adultos. Adultos reduzidos à condição de crianças que necessitam de tutor e guia. O que não falta é candidato ao posto, anunciando a sua verdade libertadora.

Para os professores nesse 15 de outubro, meu convite é o convite de Kant: sapere aude (ouse saber)! E que saibamos também tornar esse convite atrativo aos olhos e ouvidos de nossos alunos. Que eles não aceitem de bom grado os tutores que venham se colocar diante deles. Que não se sintam confortáveis na condição de menores. E, juntamente com Hannah Arendt, que tenhamos coragem de assumir nossa responsabilidade pelo mundo e nosso amor pelas crianças e jovens a fim formá-los para a liberdade e para a pluralidade de um mundo partilhado e em constante renovação. Que as crianças e jovens de hoje tenham em suas mãos a oportunidade de iniciar algo novo, de renovar esse mundo comum. Mas que não sejamos nós a querer lhes roubar essa oportunidade. Nossos sonhos já nascem velhos para as novas gerações. Que elas possam sonhar seus próprios sonhos! Ser professor, ser educador, para mim, é se responsabilizar por garantir que as novas gerações possam sonhar e possam agir como renovadores desse mundo comum.
"quem educa é a família. A gente ensina". "Ensina a ler, ensina um ofício", disse.... - Veja mais em https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/09/26/ministro-da-educacao-critica-a-palavra-educacao-quem-educa-e-familia.htm?cmpid=copiaecola
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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Os perigos do Brasil se transformar num estado teocrático. Ou: Sobre a necessidade de entendermos o conservadorismo da sociedade brasileira


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imagem disponível em pixabay.com
“A função da verdadeira religião consiste em algo completamente distinto. Ela não é instituída a fim de erigir pompa exterior, nem para obter domínio eclesiástico ou para exercer força coerciva, mas para regular a vida dos homens segundo as regras da virtude e da piedade. (...) A crer no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem aquela fé que age, não pela força, mas pelo amor. Diante disso, apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens sob o pretexto da religião: acaso o fazem por amizade e bondade?” Locke, John, Carta sobre a Tolerância, Petrópolis: Vozes, 2019.


Vamos começar pelo básico: o que seria um estado teocrático? A palavra teocrático, de origem grega, é composta por duas palavras. theos – deus, divindade e kratein- poder, governo, o que nos daria algo como governo divino  ou governo da divindade. Esse seria o caso do Egito antigo, por exemplo, no qual os faraós eram eles próprios reconhecidos como divindades. No entanto, o que é mais comum acontecer é um governo religioso. Nesse caso, um estado teocrático é aquele no qual o estado é governado por leis inspiradas num texto divino ou leis divinas, ou ainda, no qual a autoridade máxima do estado é uma também a autoridade religiosa, como é o caso do Papa, no Estado do Vaticano. Normalmente, num estado teocrático, apenas uma religião é aceita, a saber, aquela que está no poder. Muitas vezes outras religiões ou manifestações de crenças são proibidas, sendo as pessoas que professam essas crenças perseguidas, presas e até mesmo mortas. Sempre que pensamos em teocracia nos lembramos da Idade Média e da Igreja Católica. No entanto, atualmente existem vários exemplos de estados teocráticos pelo mundo, o Vaticano é um deles, mas há também Afeganistão, Arábia Saudita, Irã.
O Brasil, desde a Constituição de 1988, é um Estado Laico - ou deveria ser. Mas o que é isso, um Estado Laico? Laicidade é um termo que ganhou força nos séculos XVII-XVIII, quando filósofos e intelectuais passaram a defender a separação entre estado e igreja. Como afirmava Locke, não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, pois Deus não delegou a autoridade a um homem sobre outro para compelir outros homens a aceitar sua religião. Além do mais, segue Locke, o poder do magistrado civil consiste totalmente em força exterior, enquanto a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito. Para Locke, o poder do magistrado não poderia se estender a prescrição de artigos de fé ou formas de culto, pela força das leis.  Além da separação entre estado e igreja, os filósofos da época defendiam a liberdade de crença. Uma vez que o estado não deveria assumir uma religião oficial nem estabelecer vínculos que favorecessem essa ou aquela religião específica, o papel do estado seria garantir a liberdade dos indivíduos de professarem qualquer fé ou mesmo fé nenhuma. Nesse sentido, a defesa de um Estado Laico é, antes de qualquer coisa, a defesa da tolerância e do respeito à diversidade religiosa.  E como já dizia Locke, "a tolerância para com os defensores de opiniões distintas acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho de Jesus Cristo e com a genuína razão humana que parece monstruoso que haja homens tão cegos que não percebam a necessidade e vantagem dela sob uma luz tão clara."
No entanto, é sabido que no Brasil a separação entre estado e igreja nunca funcionou muito bem. A interferência de igrejas e grupos religiosos nas discussões de temas mais polêmicos sempre se fez presente. Durante muitos anos, a igreja católica ocupou quase sozinha esse espaço. Nas últimas décadas, o crescimento de vertentes neopentecostais no país trouxe mudanças também para o cenário político. Hoje no Congresso Nacional, uma das bancadas mais barulhentas é a chamada bancada da bíblia, formada em sua maioria por pastores neopentecostais, mas que também conta com membros de outras denominações cristãs, inclusive a ala mais conservadora da igreja católica. 
Nesse cenário, também é de conhecimento geral o poder que a Igreja Universal do Reino de Deus tem hoje no país. A figura de Edir Macedo, dono da Record, que elegeu seu sobrinho, Marcelo Crivella prefeito da cidade do Rio de Janeiro nas últimas eleições municipais e que, na última eleição presidencial, declarou apoio a Jair Bolsonaro, é bastante conhecida entre cristãos e não cristãos. Macedo não só declarou apoio, como abriu as portas da Record para o então candidato, num tratamento totalmente desigual entre os presidenciáveis, uma vez que nenhum outro candidato teve 30 minutos no canal do bispo durante a campanha. E não parou por aí: o bispo teria dado ordens expressas aos jornalistas do canal R7 - também propriedade dele - para fazerem notícias que favorecessem o candidato, o que gerou mal estar entre os profissionais, rendeu denúncias de coerção e também ameaças do bispo contra outros portais de notícias. Não é novidade para ninguém que o Edir Macedo tem um plano de poder, e não se trata só de livro do mesmo nome, mas de um projeto mesmo, de que os evangélicos tomem o poder. Macedo é hoje um nome de peso, influência e poder - que deve crescer, principalmente pelo espaço que deverá ganhar no governo de Bolsonaro, como mídia oficial - mas não podemos esquecer que Bolsonaro esteve cercado de outros pastores: Silas Malafaia, Marco Feliciano, Magno Malta, alguns deles políticos de carreira. Magno Malta, por exemplo, foi um ferrenho militante do Movimento Escola Sem Partido, inclusive foi quem apresentou o PL Escola sem Partido no Senado. Sobre esse projeto já escrevi aqui
Mas o que tudo isso tem a ver com um estado teocrático? Tudo, basta dar uma olhada nas justificativas do PL Escola Sem Partido - que não se enganem, a maior motivação do projeto passa longe da questão político-partidária. A real motivação desse projeto está na proibição (sim, é um projeto de censura!) de certos temas em sala de aula; temas que são considerados uma afronta aos valores cristãos e à família, tais como feminismo e machismo, violência doméstica, identidade de gênero, racismo entre tantos outros preconceitos estruturais que se perpetuam na sociedade brasileira.  Tudo isso foi intencionalmente mascarado sob o rótulo de "ideologia de gênero" ou sob a acusação genérica de "doutrinação ideológica" e viraram os espantalhos contra os quais "os cidadãos de bem" estão lutando e defendendo acima de tudo, inclusive acima do conhecimento científico - como a defesa de ensino do criacionismo nas escolas ou da famigerada cura gay.  
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é o exemplo maior da paranoia em curso no país. De Jesus na goiabeira a especialistas que mandam masturbar criancinhas, Damares já afirmou: "o Brasil é laico, mas eu sou terrivelmente cristã". O problema é que a interpretação da ministra para a própria afirmação é tal que ela julga estar acima da Constituição Federal e, uma vez que ela é ministra, o estado laico que se dane. Os absurdos ditos pela senhora Damares são já incontáveis. Recentemente ela participou da Cúpula da Demografia, na Hungria (o país do líder populista de extrema-direita Vicktor Orbán), e engrossou o coro contra migrantes, contra pluralidade, em favor dos valores cristãos e da família ocidental (seja lá o que isso signifique). A ministra que tanto diz defender as famílias e as crianças, assim como Crivella (tão preocupado com a infância) se calaram diante do assassinato da menina Ágatha, de 8 anos, com um tiro de fuzil no Rio de Janeiro. O governador assassino do Rio de Janeiro, católico que contou com amplo apoio do setor evangélico na eleição passada, também se cala diante das mortes de crianças resultantes das ações desastrosas da sua política de morte no estado. 
Como inteligência e criatividade não são bem os pontos fortes desse governo (com exceção de Damares, pois esta parece ter uma mente muito fértil), Bolsonaro plagiou sua ministra dizendo que indicaria para o STF um 'ministro terrivelmente cristão". O mesmo Bolsonaro disse em comício: "Essa historinha de Estado Laico, não. É Estado Cristão". Em outro momento o presidente afirmou: "O Estado é Laico, mas eu sou cristão" e só faltou dizer "e como o Estado agora sou Eu, o Estado é Cristão"...
Nos últimos meses, impulsionada pelas falas desastrosas do presidente, ministros e demais membros e apoiadores desse governo, a intolerância religiosa no país tem crescido e se manifestado, principalmente, em ataques a templos de religiões de matriz africana. Esse tipo de ataque não é novidade, mas parece que agora foi dada autorização para esse tipo de atitude e tantas outras que atentam contra os direitos humanos.
A retórica desses grupos fundamentalistas é intencionalmente feita para confundir. Adoram gritar que "Estado Laico não é ateu" como se alguém estivesse defendendo isso. E esquecem que 'não ser ateu' não é igual a 'ser cristão'! Nunca foi tão importante a clareza de conceitos como nesse momento distópico que vivemos. Também nunca foi tão necessário como agora uma certa esperteza por parte daqueles que entendem a importância de defender uma sociedade mais plural, justa, tolerante e menos desigual. 
A melhor estratégia nesse momento não parece ser aquela que abre espaços para os discursos moralistas de Bolsonaro, Damares, Crivella e afins. Antes de qualquer coisa, é preciso olhar para o Brasil real, o país que tem uma população de 86,8% de autodeclarados cristãos, sendo 64,6 católicos e 22,2% de evangélicos (dados do Censo 2010). Segundo projeções, em menos de três décadas, o número de católicos e evangélicos no país estará empatado. A última estratégia de certos setores neopentecostais é a aproximação com o Estado de Israel e com o Judaísmo, assumindo o discurso de 'povo eleito', para os evangélicos, e, em pouco tempo, devem proclamar o Brasil 'a terra prometida' desse povo. Verdade seja dita que o que acontece é uma usurpação de símbolos da tradição judaica em nome de um projeto de poder bastante escancarado. 
O momento é tenso e desanimador, pois vemos conquistas pequenas e feitas a duras penas correndo o risco de simplesmente desaparecerem. O tema é espinhoso e sempre que alguém tenta propor uma análise mais distanciada, levando em consideração o cenário geral, logo surgem os ataques e críticas. Será preciso coragem para enfrentarmos alguns debates cruciais do ponto de vista da estratégia política a respeito de alguns temas caros ao campo progressista, e o lugar das pautas identitárias no debate político é um deles. Sei que não será uma conversa fácil, mas parece bastante claro que, se nós, que realmente estamos comprometidos com um país mais plural, nos negarmos a dialogar levando em consideração os fatos e os números, corremos o risco de entregarmos o Brasil definitivamente nas mãos de maus pastores.

Originalmente publicado no Diário do Engenho

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