"A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação." (Arendt, Hannah, A crise na Educação)
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Constituição Federal de 1988)
"quem educa é a
família. A gente ensina". "Ensina a ler, ensina um ofício", disse.... -
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"(...) quem educa é a família. A gente ensina. Ensina a ler, ensina um oficio." Abraham Weintraub, ministro da educação.
Segundo o site da Secretaria de Educação de São Paulo, o dia dos professores, 15 de outubro, faria referência ao 15 de outubro de 1827, data do Decreto Imperial que criou o Ensino Elementar no Brasil. Segundo o Decreto, "deveriam ensinar, para os meninos, a leitura, a escrita, as quatro
operações de cálculo e as noções mais gerais de geometria prática. Às
meninas, sem qualquer embasamento pedagógico, estavam excluídas as
noções de geometria. Aprenderiam, sim, as prendas (costurar, bordar,
cozinhar etc) para a economia doméstica". Em 1947 um grupo de docentes propôs a data como dia dos professores, um momento de parada para descanso e para reflexão sobre o processo educacional. Mas foi em 1963 que a data tornou-se oficialmente, dia dos professores.
Nesse 15 de outubro, me proponho a fazer uma reflexão sobre 'educação e ensino'. A discussão sobre esses termos e, mais apropriadamente, sobre 'ser educador' ou 'ser professor' não é de hoje. Lembro bem de ter ouvido algumas vezes de colegas em sala de professores: eu sou professor, estou aqui para ensinar (matemática, inglês, geografia, etc) e não para educar, isso é obrigação da família. Por outro lado, durante minhas aulas da licenciatura, e também reuniões de formação continuadas nas escolas (htpcs/atpcs), muitas vezes debatemos sobre as responsabilidades e o papel da escola e dos professores no processo de formação da criança e do adolescente. Responsabilidades que vão muito além dos conteúdos ministrados em cada disciplina. E não falta exemplo na literatura especializada do dilema - falso, na minha opinião - entre educar ou ensinar. É também possível identificar nesse debate uma postura que, ao retirar a centralidade dos conteúdos a serem ensinados, acaba dando demasiada ênfase a uma educação que, muitas vezes, se degenera em sentimentalismos vazios ou flerta com moralismo barato. É por isso que, em tempos de Escola sem Partido, Ideologia de Gênero e fundamentalismo religioso assumindo ares de política de estado, a declaração do ministro da educação de que 'quem educa é a família. A gente ensina. Ensina a ler, ensina um oficio' mostra que nós, professores, temos um grande desafio pela frente.
Como nos lembra Hannah Arendt, a educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, o que nos ajuda a entender o porquê das escolas e das políticas educacionais estarem constantemente em disputa entre os mais variados grupos da sociedade. Para Arendt, "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo". Para a autora, a natalidade, assim como a vida, a mortalidade, a pluralidade, a mundanidade e a Terra, são condições da existência humana (Cf. ARENDT, 2014, p.14). Mas nenhuma delas individualmente ou somadas nos condicionaria de modo absoluto. A natalidade, a vinda de novos seres humanos ao mundo, nos coloca diante de seres inacabados e de um mundo em renovação contínua. Na condição de inacabados, de seres em formação, e de recém-chegados, as crianças precisam ser familiarizadas com o mundo. Elas são herdeiras de um mundo que já está pronto. Mas, ao mesmo tempo, esse mundo, que precisa ser preservado e entregue aos recém-chegados como parte de sua herança, está em mudança, justamente porque o novo está sempre chegando, através da natalidade. Aos adultos cabe a tarefa dupla de proteger o mundo, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração e, ao mesmo tempo, cuidar e proteger a criança para que nada de destrutivo lhe aconteça por parte do mundo (ARENDT, 2016, p.235). Se inicialmente essa tarefa está nas mãos dos pais, que trazem seus filhos à vida e ao mundo, posteriormente também é tarefa do educador-professor e, de maneira mais ampla, é tarefa de todo adulto em relação à criança e ao jovem. A autora afirma que "o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é" (ARENDT, 2016, p.239).
Como nos lembra Hannah Arendt, a educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, o que nos ajuda a entender o porquê das escolas e das políticas educacionais estarem constantemente em disputa entre os mais variados grupos da sociedade. Para Arendt, "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo". Para a autora, a natalidade, assim como a vida, a mortalidade, a pluralidade, a mundanidade e a Terra, são condições da existência humana (Cf. ARENDT, 2014, p.14). Mas nenhuma delas individualmente ou somadas nos condicionaria de modo absoluto. A natalidade, a vinda de novos seres humanos ao mundo, nos coloca diante de seres inacabados e de um mundo em renovação contínua. Na condição de inacabados, de seres em formação, e de recém-chegados, as crianças precisam ser familiarizadas com o mundo. Elas são herdeiras de um mundo que já está pronto. Mas, ao mesmo tempo, esse mundo, que precisa ser preservado e entregue aos recém-chegados como parte de sua herança, está em mudança, justamente porque o novo está sempre chegando, através da natalidade. Aos adultos cabe a tarefa dupla de proteger o mundo, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração e, ao mesmo tempo, cuidar e proteger a criança para que nada de destrutivo lhe aconteça por parte do mundo (ARENDT, 2016, p.235). Se inicialmente essa tarefa está nas mãos dos pais, que trazem seus filhos à vida e ao mundo, posteriormente também é tarefa do educador-professor e, de maneira mais ampla, é tarefa de todo adulto em relação à criança e ao jovem. A autora afirma que "o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é" (ARENDT, 2016, p.239).
Também aprendemos com Hannah Arendt que "na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade." No entanto, destaca a autora, "a autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa". E, ela segue, "embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só autoridade". Assumir essa responsabilidade e, portanto, esse lugar de autoridade é um ato de amor pelo mundo e pela criança (Cf. ARENDT, 2016, p. 247). E é justamente nesse ponto que Arendt parece encontrar as explicações mais gerais para a crise na educação que dá título ao seu artigo e que era vivenciada pelos EUA no final dos anos 1950, mas que também se fazia presente em outras partes do globo. A crise na educação era, na verdade, uma crise da autoridade, iniciada na esfera pública, na política, durante a idade moderna e que, no mundo contemporâneo, teria se espalhado para a esfera privada, afetando instituições como a escola e a família (Cf. ARENDT, 2016, p.240). Essa crise da autoridade se materializa na recusa, por parte dos adultos, de assumir aquela responsabilidade pelo mundo. Ao rejeitarem assumir a responsabilidade pelo mundo, os adultos denunciam seu descontentamento com o mundo, sua insatisfação com o estado de coisas, mas também uma incapacidade de aceitar que, de algum modo, também são responsáveis pelo que o mundo é agora e, diante dele e das crianças, lavam suas mãos.
A partir das ideias de Hannah Arendt sobre educação, parece que o dilema 'professor ou educador' não faz muito sentido. Dentro da escola, o profissional da educação seria tanto educador - na condição de adulto diante de crianças e jovens - como aquele que ensina, portanto, professor - condição que depende de suas qualificações específicas. Arendt é bastante assertiva ao diferenciar "educação" de "aprendizagem". Enquanto a educação precisa ter um final previsível, a aprendizagem se estenderia por toda a vida. O final da educação, mas não da aprendizagem, se daria ao término da educação básica ou do nosso ensino médio, próximo dos 18 anos. Nesse sentido, o principal objetivo da educação é 'introduzir o jovem no mundo como um todo' e, desse modo, 'a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é". Para Arendt, "não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem ser educado" (ARENDT, 2016, p.246-247).
Considerando essa distinção da filósofa entre 'educação' e 'aprendizagem' poderíamos dizer que, em partes, estamos de acordo com a afirmação inicialmente citada de Weintraub, dado que ela foi feita num evento com representantes do ensino superior. Esse segmento já não diria respeito, na perspectiva de Arendt, à educação, mas seria do campo da aprendizagem e do ensino. No entanto, o erro do ministro é dizer que quem educa é a família e que a escola (básica) ensina a ler ou ensina um ofício. Certamente é responsabilidade da família educar, assim como o é, segundo a Constituição Federal, responsabilidade do Estado e da sociedade. A educação, no sentido arendtiano, é um processo de humanização, um processo através do qual nos tornamos integrantes desse mundo compartilhado, desse mundo do qual somos, ao mesmo tempo, herdeiros e agentes de transformação. Esse mundo que é marcado pela pluralidade e que não é, nem pode ser, entendido como extensão da minha família. A escola, como intermediária ou espaço de transição entre as esferas privada e pública tem o papel de introduzir a criança e o jovem na pluralidade própria da esfera pública, portanto, ir além do mundo-família. A escola básica, os professores e todos os adultos ali presentes, introduzem a criança e o jovem numa dimensão do mundo que é, portanto, mais ampla que a família.
Assim como Weintraub, há um grupo crescente na sociedade brasileira - mas também mundo afora - que pretende reduzir a política e a vida pública às regras da vida privada, da sua família. Como observa Hannah Arednt em O que é política?, organizar a sociedade sobre a família significa extinguir a diversidade própria da política e tentar suprimir a pluralidade dos homens em favor do homem, no singular (Cf. ARENDT, 2017, p.22). Um homem-narcísico que busca reproduzir no mundo sua própria imagem. Esse homem-narcísico fala como se representasse todos, a sua família torna-se o modelo de família de todas as famílias, a sua verdade é apresentada como sendo a verdade de todos, os seus valores, o seu deus, a sua fé, etc. E quando o outro aparece, é na figura de inimigo a ser combatido. A família-do-outro não é reconhecida como família, o deus-do-outro não é reconhecido como deus, a fé-do-outro não tem espaço no mundo. A escola, nessa perspectiva, ou irá ensinar um conjunto de saberes técnicos e neutros ou será denunciada como doutrinadora. A escola não pode estar em desacordo com a família, assim como a sociedade em geral deverá espelhar os valores e crenças da família. Percebam que é sempre no singular: em defesa da família; os valores e religião da família; 'quem educa é a família'. Estamos presenciando tentativas de anular toda e qualquer pluralidade, tentativas de anular a política, entendida como Hannah Arendt a entendia, como convivência entre diferentes.
Embora pese sobre Arendt a acusação de que ela teria estabelecido uma ruptura entre política e educação (tema que merece ser explorado em outro texto), me arrisco a dizer que tal ruptura pode ser muito bem justificada, mas que também não é definitiva. Justificada na medida em que funciona como vacina tanto para aqueles que querem transpor as regras da política para as relações escolares, entre as crianças e jovens, desrespeitando as singularidades dessa etapa da vida, como para aqueles que, no âmbito público, pretendem transpor as regras da relação adulto-criança para o campo da política. Concordo com Arendt que é um erro, durante o processo de educação, tratar crianças como adultos, do mesmo modo que é um erro tratar adultos como criança no contexto político. O que presenciamos hoje, e o ministro da educação tem se mostrado um representante dessa encenação, é uma dupla tentativa de destruir a política seja por suprimir a pluralidade (de ideias, de opiniões) seja por, com a desculpa de retirar a política da escola, transformar a vida pública num espaço de educação de adultos. Adultos reduzidos à condição de crianças que necessitam de tutor e guia. O que não falta é candidato ao posto, anunciando a sua verdade libertadora.
Para os professores nesse 15 de outubro, meu convite é o convite de Kant: sapere aude (ouse saber)! E que saibamos também tornar esse convite atrativo aos olhos e ouvidos de nossos alunos. Que eles não aceitem de bom grado os tutores que venham se colocar diante deles. Que não se sintam confortáveis na condição de menores. E, juntamente com Hannah Arendt, que tenhamos coragem de assumir nossa responsabilidade pelo mundo e nosso amor pelas crianças e jovens a fim formá-los para a liberdade e para a pluralidade de um mundo partilhado e em constante renovação. Que as crianças e jovens de hoje tenham em suas mãos a oportunidade de iniciar algo novo, de renovar esse mundo comum. Mas que não sejamos nós a querer lhes roubar essa oportunidade. Nossos sonhos já nascem velhos para as novas gerações. Que elas possam sonhar seus próprios sonhos! Ser professor, ser educador, para mim, é se responsabilizar por garantir que as novas gerações possam sonhar e possam agir como renovadores desse mundo comum.
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