quinta-feira, 18 de julho de 2019

Amaral pode estar certa. Tábata errou e continua errando.

Enquanto cientista política formada por Harvard, ex aluna de Steven Levitsky, um dos autores de Como as democracias morrem, Amaral pode ter bons motivos para insistir na urgência de construirmos pontes para o diálogo na política. Pode ter bons motivos para dizer que a polarização é perigosa e ameaça a democracia. É provável que Amaral tenha lido O povo contra a democracia, de Yascha Mounk, outro harvardiano, e por isso tenha outros tantos bons motivos para se preocupar com as brechas que essa polarização abre para a ascensão e permanência no poder de populistas, como Bolsonaro. Afinal, como afirma Mounk, "na maioria dos países, os populistas só alcançaram o cargo máximo porque seus adversários fracassaram em concluir um pacto eleitoral" (p.12). Levitsky e Ziblatt são categóricos: "a polarização extrema é capaz de matar democracias" (p.20). 

Na condição de cientista política, Amaral faz bem em se afastar de "amarras ideológicas" para buscar compreender o cenário brasileiro. Na condição de cientista, a busca por neutralidade é saudável e até recomendável. Como cientista política, Amaral está bem acompanhada ao afirmar que parte da esquerda se afastou da sociedade e que seria importante resgatar esse diálogo. Para Mounk, o abismo crescente entre classe política e sociedade, entre representantes e representados, é um dos elementos chave para entendermos a ascensão de populistas mundo afora (p.287-288). 

No entanto, na condição de deputada eleita por um partido de esquerda (ou centro-esquerda, não vou entrar no mérito dessa discussão), Tábata errou ao votar a favor da PEC 06/2019. Errou ao contrariar a decisão do seu partido. E seu maior erro foi justamente ignorar seus eleitores. Eu faço parte desses eleitores ignorados e venho observando, pelas reações em redes sociais, que não estou sozinha em minha discordância com o voto da deputada. Tábata ludibriou seus eleitores com um discurso ambíguo - agora tenho certeza disso. Durante o processo de discussão da PEC 06/2019 - erroneamente chamada de Reforma da Previdência (conforme discuto aqui), a deputada afirmou diversas vezes ser favorável a uma reforma, mas não àquela apresentada pelo governo. Esse discurso me pareceu coerente, uma vez que o PDT foi o único partido a apresentar uma proposta séria de Reforma da Previdência no período eleitoral, proposta esta que se converteu em um substitutivo apresentado pelo partido na Comissão Especial da Reforma da Previdência. O PDT não negou a necessidade de uma reforma. No entanto, desde março o partido fechou questão contra a PEC 06/2019 na sua XXV Convenção Nacional. O Carlos Lupi, presidente do PDT, foi muito claro na ocasião: "nós temos que discutir com o povo brasileiro, o que o Ciro fez na campanha e nós temos que aprofundar e aprimorar, a nossa reforma da previdência. Mas dar legitimidade a essa, é rasgar a nossa história" (fala completa aqui). 

As justificativas apresentadas por Tábata para seu "voto de consciência" não são coerentes. No mínimo mostra que ela não prestou atenção nas incansáveis análises feitas por Ciro Gomes durante os últimos meses. Ignorou as análises técnicas feitas pelo seu partido. Onde estava Tábata durante as discussões feitas pelo partido? Se ela não concordava, por que não falou? Por que não se manifestou? Por que não foi mais clara com seus eleitores? Por que não contribuiu com a divulgação de dados e informações que pudessem justificar seu posicionamento? Por que fazer isso apenas algumas horas antes da votação? 

Apresentar emendas ao texto base da PEC 06/2019 para mim fazia parte do diálogo. Tentar construir consensos a respeito de injustiças mais gritantes, como as mudanças do BPC, a aposentadoria dos rurais, das mulheres, dos professores, dentro de bancadas com partidos que são da base do governo, como a bancada das mulheres ou a bancada da educação, isso para mim fazia parte do processo de diálogo. Mas em nenhum momento passava pela minha cabeça um voto a favor do texto base. É verdade que o texto votado sofreu mudanças no Congresso, que o relatório do deputado Samuel Moreira diverge do texto original do governo. Mas é inegável o DNA do governo e do Paulo Guedes nessa PEC. Um DNA de quem só enxerga números, obcecado com a economia de 1 trilhão; um DNA de desmonte da Seguridade Social e demais políticas sociais, como a do abono salarial. Em essência o texto base aprovado no Congresso, com o voto favorável de Tábata e outros deputados do PDT, mancha a história do partido e seu compromisso com os trabalhadores. É grave, muito grave o que esses 8 deputados fizeram. Mas agora isso é um problema para o PDT (e para o PSB que teve 11 deputados contrariando a orientação do partido). Uma decisão muito delicada, na minha opinião, que pode beneficiar outros partidos, ao promover o aumento de suas bancadas com a filiação dos expulsos, caso se decida pela expulsão. 

Mas Tábata continua errando. Seu artigo de hoje na Folha de São Paulo fala de ousadia, mas parece que estamos diante de uma jovem inteligente e talentosa que está deslumbrada com o recente sucesso que sua atuação no  Congresso alcançou nas mídias sociais e na imprensa em geral. É bem verdade que ela mereceu esse sucesso. Fez a lição de casa direitinho e derrubou um ministro incompetente e despreparado. Mas agora, a jovem deputada se acha no direito de enfrentar o partido que a acolheu, reclama por mais democracia interna, reclama de perseguição política, ataques a sua honra, falta de diálogo. Minha dúvida: por que essas diferenças com o partido não apareceram há meses atrás? Onde estava Tábata quando o PDT estava discutindo a proposta do governo? Por que ela não reclamou da falta de democracia interna em março, durante a Convenção Nacional do PDT? Estaria a Tábata reunida com seus outros partidos? O Acredito? Ou o RenovaBR? Ou ainda, estaria ela reunida com empresários como Paulo Lemann enquanto o PDT discutia os problemas da proposta do governo?

Relutei muito em aceitar essa possibilidade, já aventada por amigos durante as eleições. Eu pensei que era a velha esquerda tentando desacreditar uma nova forma de fazer política que se apresentava. As divergências teóricas entre Tábata e a esquerda brasileira nunca me passaram despercebidas. A formação em Harvard a colocaria, de partida, mais à direita dos partidos tradicionalmente de esquerda no Brasil. Uma Democrata, ao estilo estadunidense. Mas acho que me enganei feio. Não se tratava só de uma questão teórica. Pode até ser que Amaral, a cientista política, de fato esteja onde eu pensei que ela estivesse. Mas Tábata, a deputada, está navegando por outras águas. Ao eleger os 'partidos' como seu alvo nesse último artigo, Tábata corre o risco de contribuir para que o descrédito com eles só aumente e com isso o descrédito da população com a democracia representativa. E nesse sentido, Tábata se afasta de Amaral, e abre ainda mais as brechas para populistas e oportunistas que se aproveitam muito bem desse descrédito da população com o nosso sistema político. Diminuir a influência do dinheiro no sistema político é um dos remédios apontados por Mounk para salvamos a democracia (p.288). Temo que a influência do dinheiro - e não falo de voto comprado no Congresso nem de nenhuma outra forma de corrupção - tenha falado mais alto em Tábata. O triste "episódio Tábata Amaral" é um alerta para pensarmos a influência de Fundações e Instituições, aparentemente cheias de boas intenções e nobres causas, financiadas por grandes empresários, nesse tabuleiro, já complexo, da política brasileira. Não duvido que Tábata tenha votado com convicção. A questão é: como essa convicção foi construída? Qual o papel da Fundação Lemann na construção dessa convicção? Qual a influência da Fundação Lemann nos ideais de iniciativas como o Movimento Acredito?

Pode ser que a formação de Amaral esteja diretamente conectada com os caminhos trilhados por Tábata. No entanto, isso não me parece suficiente para negar a possibilidade de outras formas de agir por parte da esquerda, do campo progressista. Continuo acreditando na importância do diálogo como caminho para vencer os riscos do populismo à democracia. Mas, ao contrário de Amaral, entendo que esse diálogo deveria ser, prioritariamente, dentro do campo progressista. Por outro lado, ao contrário de parte da esquerda, acredito que é preciso dialogar com a direita sim. Mas esse governo não é a direita. É a extrema direita. O DNA dessa reforma, aprovada com o voto de Tábata Amaral, é da extrema direita. Amaral pode estar certa, quando ecoa os argumentos de Levtisky em favor do diálogo e da coalizão para além dos nossos aliados naturais (p.207), mas o Brasil não é os EUA. E embora Bolsonaro se esforce em ser um arremedo de Trump, o cenário político brasileiro tem contornos próprios que a jovem deputada parece ignorar nesse momento. A reforma que ora se encaminha vai aprofundar desigualdades. Esse cenário no curto e no médio prazo tende a aumentar a insatisfação da população com a política e torná-la ainda mais suscetível ao discurso  redentor e às soluções simplistas. Em breve a população verá que essa reforma não trará empregos como seus defensores alardeavam. E o que virá depois? A retórica bolsonarista tentará canalizar a revolta da população contra algum inimigo: o congresso? o STF?  Talvez o mais provável mesmo seja que Tábata Amaral não tenha lido Yascha Mounk. Acredito que essa leitura lhe cairia bem. Tanto Como as democracias morrem como O povo contra a democracia me parecem leituras obrigatórias para aqueles que estão preocupados com a sobrevivência da democracia num momento de ascensão populista pelo mundo. Ambos oferecem chaves de leitura muito interessantes para o mundo contemporâneo. Mas como já disse, o Brasil não é os EUA. Como política, como deputada, Tábata poderia ter prestado um pouco mais de atenção em Ciro Gomes, para entender um pouco melhor o cenário brasileiro, as peculiaridades da política local. Talvez esse tenha sido o meu erro: apostar que no PDT, junto de Ciro Gomes, ela pudesse ampliar seu olhar para além da pauta da educação - tão cara a mim - enxergando um cenário mais complexo. Talvez essa possibilidade nunca tenha existido. Pode ser que eu tenha errado na minha aposta, me negando a enxergar o que já estava claro para outros, só por querer acreditar (veja a ironia) que havia alternativas para o campo progressista.

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Algumas sugestões de vídeos interessantes a respeito do "episódio Tábata Amaral"

Henry Bugalho
Eduardo Moreira

 Obras citadas:
Levitsky, Steven, Ziblatt, Daniel, Como as democracias morrem, tradução Renato Aguiar, Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Mounk, Yascha, O povo contra a democracia, tradução Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg, São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


terça-feira, 16 de julho de 2019

A escola, a capacidade de se sonhar e a urgência de políticas públicas eficientes na Educação

Quatro convicções acerca da Educação

Mais um mês de julho, mais um início de férias. Eis que me pego perguntando por que tenho tanta dificuldade de descansar, de parar, de aproveitar “as férias”. Na maioria das vezes, inicio o mês de julho com uma lista de coisas a fazer e dessa vez não foi diferente: livros para ler, textos para escrever, projetos para o próximo semestre escolar, rever planos de aula, etc. Durante esta tarde me pus a pensar sobre os motivos para esse comportamento. Tirando o fato de que a maioria dessas atividades me são imensamente prazerosas, cheguei a uma possível explicação. Por vota dos meus 13 anos, o mês de julho e também os meses de dezembro e janeiro – meses de férias escolares – começaram a significar período de trabalho. Comecei trabalhar no comércio, cobria férias de funcionários de uma loja ou simplesmente era chamada para cobrir maior demanda de período de natal. Julho, dezembro e janeiro passaram a ser sinônimo de período de trabalho! Depois, durante a faculdade, os meses de férias coincidiam com os períodos de entrega de relatório, portanto, mais trabalho. Talvez no meu subconsciente essa informação tenha permanecido até hoje – quando finalmente parece que passou ao nível da consciência – fazendo que, como observou certa vez meu companheiro, eu tivesse um sentimento de culpa que me impedisse de desfrutar minhas férias. Quem sabe, daqui pra frente as coisas mudem. Como mudou minha vida, desde que eu tinha lá meus 13 anos. Já naquela época, eu tinha sonhos de frequentar uma faculdade, de morar em outra cidade, de fazer coisas que ninguém até então havia feito na minha família. Lembro bem que, naquela época, eu queria ser advogada. Depois, quis ser jornalista, psicóloga, historiadora e eis que estou aqui, professora de filosofia, de férias! 

Foto gentilmente cedida pela dona Nenê
De onde vieram os sonhos?  Como eles puderam se tornar realidade? E o quanto isso mudou minha vida? É sobre isso que gostaria de escrever hoje. Foi na Escola Estadual Marques de Sapucaí, em Delfim Moreira, que descobri a existência das Universidades Públicas. Mais precisamente, nas aulas de matemática, ministradas pelo professor João Viana, que desde a 6ª série nos falava dessas instituições (EFEI – hoje UNIFEI, ITA, USP e tantas outras). Ao longo da nossa trajetória escolar – João Viana acompanhou minha turma da 6ª série até a formatura no Ensino Médio – foram muitos os exercícios desafios dessas instituições inseridos em nossas provas, listas de exercícios, pontos extras durante as aulas. E não eram só os exercícios. Eles eram acompanhados de discursos de um velho professor – que havia dado aulas para minha mãe – rígido e apaixonado pelo que fazia, que sempre falava da imensa satisfação que sentia quando um de seus alunos passava no vestibular. Certa vez, já estava no Ensino Médio, durante a aula, um ex-aluno apareceu na porta da sala de aula, todo sujo de ovo e trigo para dizer que havia sido aprovado na EFEI, no curso de engenharia elétrica. A alegria do João não podia ser mais sincera. Eu alimentei o sonho de um dia fazer o mesmo: ir até o professor contar que havia sido aprovada no vestibular. E pude fazê-lo anos mais tarde, quando ele já estava aposentado. Infelizmente, no dia que sai meu resultado de aprovação na Unicamp, ele estava internado, mas fiz questão de ligar para sua casa e pedir para sua esposa que lhe contasse a novidade. Mas esse sonho só se tornou realidade, porque além do professor João eu tive muitos outros professores e professoras que, de maneiras distintas, me ensinaram a sonhar com uma realidade que, por muitos motivos, teria sido impossível sem eles. Preciso recuar um pouco. 

Meus pais estudaram muito pouco, mas foram muito além do que as gerações anteriores de suas famílias. Meus avós, maternos e paternos, eram semianalfabetos, não frequentaram escolas. Meu pai tem a 4ª série primária – ensino fundamental I. Minha mãe estudou até a 7ª série (fundamental II incompleto). Meus tios e tias, mais velhos que ela, não passaram da 4ª série, como meu pai, que é um dos filhos mais velhos. Minha mãe só pode chegar até a 7ª série, porque com 10 anos passou a morar na cidade, para cuidar do meu avô que fora trabalhar numa pedreira. Enquanto minha avó permaneceu na roça, cuidando de meus tios e dos serviços da lavoura, do leite, minha mãe, uma criança, lavava, cozinhava, cuidava de uma casa e do meu avô, e pôde estudar. Mas quando meu avô decidiu voltar para a roça, minha mãe foi obrigada a parar de estudar.
Minha casa não tinha livros. Minha casa era muito simples. Felizmente não passamos necessidade, mas tive uma infância pobre (eu tive consciência disso precocemente, aos 10 anos eu sabia que éramos pobres, isso me gerou alguma revolta e também vergonha da nossa condição). Eu convivia, na escola, com pessoas que tinham uma situação muito melhor que a nossa: filhos de professores, dos donos de comércio da cidade, filhos do prefeito. Hoje sei o quanto essa convivência contribuiu para enriquecer minhas experiências, apesar do sofrimento, do desconforto e revolta que por vezes experimentei. Para alguém que nem TV tinha em casa durante parte da infância, conviver e frequentar casas que tinham vídeo cassete, tv parabólica e muitos livros, era algo que gerava sentimentos confusos para uma criança e depois uma adolescente. Mas graças a esse convívio, tive acesso a coisas que, de outra maneira, não saberia da existência. E tudo porque em Delfim Moreira só existia uma escola, pública, e todas as crianças, fossem filhas de trabalhadores pobres ou filhos do prefeito, ali iriam estudar. Dessa experiência vem uma das minhas convicções mais radicais a respeito da Educação: i) a educação básica deveria ser unicamente pública. Se não está claro, reformulo: não deveria existir escola privada de ensino básico, deveria existir um único sistema e ele deveria ser totalmente público.
A escola Marquês de Sapucaí dos anos 90, hoje tenho certeza disso, era uma escola inovadora. Tive professores maravilhosos: criativos e que gostavam de desafios. Eram tantos projetos e atividades realizadas ao longo do ano letivo: feiras de ciência, feiras culturais, projetos comemorativos, como dos 500 anos do descobrimento do Brasil, as semanas comemorativas, com música, apresentações de dança, teatro, torneios esportivos, participação em concursos de redação. Tenho muitas lembranças boas da minha vida escolar. E tudo isso era feito ao mesmo tempo que tínhamos aulas bem tradicionais – lousa e giz, listas de exercícios, provas, aulas expositivas – tudo junto e misturado. Dessa experiência vem outra das minhas convicções sobre Educação: ii) a disputa entre escola tradicional x novas metodologias é um falso problema. O maior erro que se pode cometer em Educação é querer estabelecer um caminho único quando a questão é metodologia. Uma educação de sucesso muitas vezes é resultado de mesclas; há espaço para professores com aulas expositivas, com projetos e tantas outras possibilidades de metodologias ativas, com listas de exercícios e provas ou com avaliações orais. Quanto mais diversificada, maior o ganho para o aluno. João Viana era um professor tradicional; Elenice Lorena também; Ana Paiva, Stela Mara gostavam de projetos, de feiras, teatro. E eu aprendi com todos (e são tantos professores, se não os cito nominalmente a todos é porque não haveria espaço. Mas meus professores terão sempre minha gratidão, meu respeito e a maior de todas as homenagens: me tornei uma de vocês!).
             A jovem deputada federal Tábata Amaral (que tem uma história de vida inspiradora e com a qual muito me identifico) outro dia publicou em sua coluna no Nexo Jornal um texto com título polêmico: A escola pública é cemitério de sonhos no Brasil. Muito gente, inclusive professores, ficou brava com a deputada. Uma pena. O texto vai no coração de um dos nossos maiores problemas: os jovens que frequentam as escolas públicas, em sua maioria, não aprendem a sonhar, a se sonhar. Em 2012, depois de passar num concurso público, iniciei meu trabalho como professora de filosofia na rede pública estadual de São Paulo em Campinas. Foi um baque. Meu ideal de escola era a Marquês de Sapucaí dos anos 90. Mesmo depois de fazer estágio, eu permanecia apegada àquela ideia de escola. Mas Campinas não é Delfim Moreira e a escola pública hoje está cada vez mais distante daquela escola da minha memória. Escola pública em Campinas – hoje sei que essa é a realidade da maioria do país – não tem aquela heterogeneidade que eu experimentei. O filho do prefeito não passa nem perto do portão de uma escola estadual. Os filhos dos professores, com raras exceções, também não. Há um distanciamento muito grande entre professores e alunos. Explico: distanciamento social; os alunos muitas vezes são vistos como “um tipo de gente” com o qual se perde tempo, pois “eles não têm jeito”, “não querem saber de nada” e, com sorte, “serão caixas de supermercado”.
            Antes de concluírem que os professores da escola pública são pessoas abomináveis, preciso dizer que a realidade é muito mais complexa e que não é tão fácil assim. Tive um choque inicial que me faz carregar a tinta desse quadro – hoje estou consciente disso. Quando comecei a lecionar, era jovem demais (como muitas vezes colegas me disseram em tom de reprovação em relação as minhas atitudes de revolta e insatisfação com a maneira como as coisas funcionavam – ou não funcionavam, na maioria das vezes). Era otimista e inconformada. Acreditava que as coisas podiam e deveriam ser diferentes. Muitas vezes fiz julgamentos duros em relação aos meus colegas. Depois de um tempo, pude entender melhor, não aceitar, nem compactuar com atitudes que continuo entendo como erradas. Vinte anos, trinta anos sendo maltratado, com salários baixos, com condições de trabalho ruins, sem reconhecimento da sociedade, sendo apenas cobrado por resultados e atacado como único responsável por um alardeado ‘fracasso’ da Educação brasileiro, o resultado não poderia ser outro. Cinco anos na rede estadual me convenceu de que a escola pública é um cemitério de sonhos não só para alunos, mas também para os professores. Há exceções! Há muitos exemplos de professores e alunos que apesar da realidade massacrante fazem coisas maravilhosas e sonham e realizam sonhos. No entanto, essas conquistas, que têm muito mérito, são feitas a custas de muitos esforços, hercúleos, eu diria. Que não podem ser usados como regra. Tábata Amaral, eu mesma, e tantos outros, inclusive ex-alunos meus, somos exceções. E seria muita irresponsabilidade não lembrarmos isso quando querem nos usar como exemplos de que basta se esforçar. Dessa experiência extrai outras duas convicções sobre a Educação: iii) não podemos naturalizar os esforços louváveis que tantos professores e professoras fazem hoje, apesar das condições a que estão submetidos, para realizarem trabalhos de excelência e fazer a diferença na vida de tantos jovens; de forma resumida, o magistério não pode ser encarado como uma profissão de fé ou exercício vocacional;  e iv) não é justo exigirmos que tantos jovens, porque nasceram em famílias pobres, em famílias não letradas, sem acesso à bens culturais, tenham que se esforçar cem, duzentas, mil vezes mais do que outros para ter direito a sonhar e a realizar sonhos. Em outras palavras, a alardeada meritocracia só faz sentido quando, de fato, as pessoas têm oportunidades iguais.
            Um debate sério sobre Educação, um compromisso verdadeiro com a qualidade da Educação brasileira hoje passa muito longe dos espantalhos criados por esse governo, principalmente, pelo atual ministro da educação. Em primeiro lugar, é preciso encarar a urgência de se dar dignidade aos professores; discutir plano de carreira, salário e qualificação não pode ser tabu. Em segundo lugar, as disputas metodológicas não podem se dar na direção do ou isto ou aquilo; demonizar a escola tradicional, as aulas expositivas, como se fez no âmbito das discussões da reforma do ensino médio e da BNCC, não irá resolver nossos problemas. Em terceiro lugar, palavras como gestão e eficiência não podem ser rotuladas como sendo de um espectro político (coisas da direita, como parece ser o caso atualmente); defendo o aumento dos investimentos em Educação, mas defendo também a racionalidade dos usos desses investimentos, a criação de mecanismos de acompanhamento das equipes gestoras, inclusive com maior autonomia financeira e administrativa para diretores de escola.
Para finalizar, retomo minhas convicções sobre a Educação apresentadas nesse já longuíssimo texto: i) a educação básica deveria ser unicamente pública; ii) a disputa entre escola tradicional x novas metodologias é um falso problema; iii) o magistério não pode ser encarado como uma profissão de fé ou exercício vocacional; iv) a alardeada meritocracia só faz sentido quando, de fato, as pessoas têm oportunidades iguais.
É julho. Metade de um ano muito difícil para a Educação já se foi. Mas não temos tempo a perder, nem tempo para lamentar. É preciso seguir firme em nossas convicções em prol de uma Educação Pública de qualidade para todos. Seja na sala de aula, no dia a dia da escola, ou no Congresso, na Assembleia, com aqueles que se apresentam como nossos aliados no trabalho incessante pela construção de outra realidade. É julho, é férias, e para mim é tempo de estudar mais, ler mais e me preparar melhor para os desafios do próximo semestre. 

Texto originalmente publicado no Diário do Engenho

Esse texto foi escrito antes da votação da reforma da previdência, portanto, antes da deputada Tábata Amaral votar a favor da mesma, contrariando seu partido, o PDT, e contrariando também a minha compreensão do assunto. Em breve esse blog terá um texto sobre a questão. 

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