Quatro convicções acerca da Educação
Mais
um mês de julho, mais um início de férias. Eis que me pego perguntando por que
tenho tanta dificuldade de descansar, de parar, de aproveitar “as
férias”. Na maioria das vezes, inicio o mês de julho com uma lista de coisas a
fazer e dessa vez não foi diferente: livros para ler, textos para escrever,
projetos para o próximo semestre escolar, rever planos de aula, etc. Durante
esta tarde me pus a pensar sobre os motivos para esse comportamento. Tirando o
fato de que a maioria dessas atividades me são imensamente prazerosas, cheguei
a uma possível explicação. Por vota dos meus 13 anos, o mês de julho e também
os meses de dezembro e janeiro – meses de férias escolares – começaram a
significar período de trabalho. Comecei trabalhar no comércio, cobria férias de
funcionários de uma loja ou simplesmente era chamada para cobrir maior demanda
de período de natal. Julho, dezembro e janeiro passaram a ser sinônimo de
período de trabalho! Depois, durante a faculdade, os meses de férias coincidiam
com os períodos de entrega de relatório, portanto, mais trabalho. Talvez no meu
subconsciente essa informação tenha permanecido até hoje – quando finalmente
parece que passou ao nível da consciência – fazendo que, como observou certa
vez meu companheiro, eu tivesse um sentimento de culpa que me impedisse
de desfrutar minhas férias. Quem sabe, daqui pra frente as coisas mudem. Como
mudou minha vida, desde que eu tinha lá meus 13 anos. Já naquela época, eu
tinha sonhos de frequentar uma faculdade, de morar em outra cidade, de fazer
coisas que ninguém até então havia feito na minha família. Lembro bem que,
naquela época, eu queria ser advogada. Depois, quis ser jornalista, psicóloga,
historiadora e eis que estou aqui, professora de filosofia, de férias!
Foto gentilmente cedida pela dona Nenê |
Meus
pais estudaram muito pouco, mas foram muito além do que as gerações anteriores
de suas famílias. Meus avós, maternos e paternos, eram semianalfabetos, não
frequentaram escolas. Meu pai tem a 4ª série primária – ensino fundamental I. Minha
mãe estudou até a 7ª série (fundamental II incompleto). Meus tios e tias, mais
velhos que ela, não passaram da 4ª série, como meu pai, que é um dos filhos
mais velhos. Minha mãe só pode chegar até a 7ª série, porque com 10 anos passou
a morar na cidade, para cuidar do meu avô que fora trabalhar numa pedreira.
Enquanto minha avó permaneceu na roça, cuidando de meus tios e dos serviços da
lavoura, do leite, minha mãe, uma criança, lavava, cozinhava, cuidava de uma
casa e do meu avô, e pôde estudar. Mas quando meu avô decidiu voltar para a
roça, minha mãe foi obrigada a parar de estudar.
Minha
casa não tinha livros. Minha casa era muito simples. Felizmente não passamos
necessidade, mas tive uma infância pobre (eu tive consciência disso
precocemente, aos 10 anos eu sabia que éramos pobres, isso me gerou alguma
revolta e também vergonha da nossa condição). Eu convivia, na escola, com
pessoas que tinham uma situação muito melhor que a nossa: filhos de
professores, dos donos de comércio da cidade, filhos do prefeito. Hoje sei o
quanto essa convivência contribuiu para enriquecer minhas experiências, apesar
do sofrimento, do desconforto e revolta que por vezes experimentei. Para alguém
que nem TV tinha em casa durante parte da infância, conviver e frequentar casas
que tinham vídeo cassete, tv parabólica e muitos livros, era algo que gerava
sentimentos confusos para uma criança e depois uma adolescente. Mas graças a
esse convívio, tive acesso a coisas que, de outra maneira, não saberia da
existência. E tudo porque em Delfim Moreira só existia uma escola, pública, e
todas as crianças, fossem filhas de trabalhadores pobres ou filhos do prefeito,
ali iriam estudar. Dessa experiência vem uma das minhas convicções mais
radicais a respeito da Educação: i) a educação básica deveria ser unicamente
pública. Se não está claro, reformulo: não deveria existir escola privada de
ensino básico, deveria existir um único sistema e ele deveria ser totalmente
público.
A
escola Marquês de Sapucaí dos anos 90, hoje tenho certeza disso, era uma escola
inovadora. Tive professores maravilhosos: criativos e que gostavam de desafios.
Eram tantos projetos e atividades realizadas ao longo do ano letivo: feiras de
ciência, feiras culturais, projetos comemorativos, como dos 500 anos do
descobrimento do Brasil, as semanas comemorativas, com música, apresentações de
dança, teatro, torneios esportivos, participação em concursos de redação. Tenho
muitas lembranças boas da minha vida escolar. E tudo isso era feito ao mesmo
tempo que tínhamos aulas bem tradicionais – lousa e giz, listas de exercícios,
provas, aulas expositivas – tudo junto e misturado. Dessa experiência vem outra
das minhas convicções sobre Educação: ii) a disputa entre escola tradicional x
novas metodologias é um falso problema. O maior erro que se pode cometer em
Educação é querer estabelecer um caminho único quando a questão é metodologia.
Uma educação de sucesso muitas vezes é resultado de mesclas; há espaço para
professores com aulas expositivas, com projetos e tantas outras possibilidades
de metodologias ativas, com listas de exercícios e provas ou com avaliações
orais. Quanto mais diversificada, maior o ganho para o aluno. João Viana era um
professor tradicional; Elenice Lorena também; Ana Paiva, Stela Mara gostavam de
projetos, de feiras, teatro. E eu aprendi com todos (e são tantos professores,
se não os cito nominalmente a todos é porque não haveria espaço. Mas meus
professores terão sempre minha gratidão, meu respeito e a maior de todas as
homenagens: me tornei uma de vocês!).
A jovem deputada federal
Tábata Amaral (que tem uma história
de vida inspiradora e com a qual muito me identifico) outro
dia publicou em sua coluna no Nexo Jornal um texto com título polêmico: A escola
pública é cemitério de sonhos no Brasil. Muito gente, inclusive
professores, ficou brava com a deputada. Uma pena. O texto vai no coração de um
dos nossos maiores problemas: os jovens que frequentam as escolas públicas, em
sua maioria, não aprendem a sonhar, a se sonhar. Em 2012, depois de passar num
concurso público, iniciei meu trabalho como professora de filosofia na rede
pública estadual de São Paulo em Campinas. Foi um baque. Meu ideal de escola
era a Marquês de Sapucaí dos anos 90. Mesmo depois de fazer estágio, eu
permanecia apegada àquela ideia de escola. Mas Campinas não é Delfim Moreira e
a escola pública hoje está cada vez mais distante daquela escola da minha
memória. Escola pública em Campinas – hoje sei que essa é a realidade da
maioria do país – não tem aquela heterogeneidade que eu experimentei. O filho
do prefeito não passa nem perto do portão de uma escola estadual. Os filhos dos
professores, com raras exceções, também não. Há um distanciamento muito grande
entre professores e alunos. Explico: distanciamento social; os alunos muitas
vezes são vistos como “um tipo de gente” com o qual se perde tempo, pois “eles
não têm jeito”, “não querem saber de nada” e, com sorte, “serão caixas de
supermercado”.
Antes
de concluírem que os professores da escola pública são pessoas abomináveis,
preciso dizer que a realidade é muito mais complexa e que não é tão fácil
assim. Tive um choque inicial que me faz carregar a tinta desse quadro – hoje
estou consciente disso. Quando comecei a lecionar, era jovem demais (como
muitas vezes colegas me disseram em tom de reprovação em relação as minhas
atitudes de revolta e insatisfação com a maneira como as coisas funcionavam –
ou não funcionavam, na maioria das vezes). Era otimista e inconformada.
Acreditava que as coisas podiam e deveriam ser diferentes. Muitas vezes fiz
julgamentos duros em relação aos meus colegas. Depois de um tempo, pude
entender melhor, não aceitar, nem compactuar com atitudes que continuo entendo
como erradas. Vinte anos, trinta anos sendo maltratado, com salários baixos,
com condições de trabalho ruins, sem reconhecimento da sociedade, sendo apenas
cobrado por resultados e atacado como único responsável por um alardeado
‘fracasso’ da Educação brasileiro, o resultado não poderia ser outro. Cinco
anos na rede estadual me convenceu de que a escola pública é um cemitério de
sonhos não só para alunos, mas também para os professores. Há exceções! Há
muitos exemplos de professores e alunos que apesar da realidade
massacrante fazem coisas maravilhosas e sonham e realizam sonhos. No entanto,
essas conquistas, que têm muito mérito, são feitas a custas de muitos esforços,
hercúleos, eu diria. Que não podem ser usados como regra. Tábata Amaral, eu
mesma, e tantos outros, inclusive ex-alunos meus, somos exceções. E seria muita
irresponsabilidade não lembrarmos isso quando querem nos usar como exemplos de
que basta se esforçar. Dessa experiência extrai outras duas convicções
sobre a Educação: iii) não podemos naturalizar os esforços louváveis que
tantos professores e professoras fazem hoje, apesar das condições a que
estão submetidos, para realizarem trabalhos de excelência e fazer a diferença
na vida de tantos jovens; de forma resumida, o magistério não pode ser encarado
como uma profissão de fé ou exercício vocacional; e iv) não é justo exigirmos que tantos
jovens, porque nasceram em famílias pobres, em famílias não letradas, sem
acesso à bens culturais, tenham que se esforçar cem, duzentas, mil vezes mais
do que outros para ter direito a sonhar e a realizar sonhos. Em outras
palavras, a alardeada meritocracia só faz sentido quando, de fato, as
pessoas têm oportunidades iguais.
Um
debate sério sobre Educação, um compromisso verdadeiro com a qualidade da Educação
brasileira hoje passa muito longe dos espantalhos criados por esse governo,
principalmente, pelo atual ministro da educação. Em primeiro lugar, é preciso
encarar a urgência de se dar dignidade aos professores; discutir plano de
carreira, salário e qualificação não pode ser tabu. Em segundo lugar, as
disputas metodológicas não podem se dar na direção do ou isto ou aquilo;
demonizar a escola tradicional, as aulas expositivas, como se fez
no âmbito das discussões da reforma do ensino médio e da BNCC, não irá
resolver nossos problemas. Em terceiro lugar, palavras como gestão e eficiência
não podem ser rotuladas como sendo de um espectro político (coisas da
direita, como parece ser o caso atualmente); defendo o aumento dos
investimentos em Educação, mas defendo também a racionalidade dos usos desses
investimentos, a criação de mecanismos de acompanhamento das equipes gestoras,
inclusive com maior autonomia financeira e administrativa para diretores de
escola.
Para
finalizar, retomo minhas convicções sobre a Educação apresentadas nesse já
longuíssimo texto: i) a educação básica deveria ser
unicamente pública; ii) a disputa entre escola tradicional x novas metodologias
é um falso problema; iii) o magistério não pode ser encarado como uma
profissão de fé ou exercício vocacional; iv) a alardeada meritocracia só
faz sentido quando, de fato, as pessoas têm oportunidades iguais.
É julho.
Metade de um ano muito difícil para a Educação já se foi. Mas não temos tempo a
perder, nem tempo para lamentar. É preciso seguir firme em nossas convicções em
prol de uma Educação Pública de qualidade para todos. Seja na sala de aula, no
dia a dia da escola, ou no Congresso, na Assembleia, com aqueles que se
apresentam como nossos aliados no trabalho incessante pela construção de outra
realidade. É julho, é férias, e para mim é tempo de estudar mais, ler mais e me
preparar melhor para os desafios do próximo semestre.
Texto originalmente publicado no Diário do Engenho
Esse texto foi escrito antes da votação da reforma da previdência, portanto, antes da deputada Tábata Amaral votar a favor da mesma, contrariando seu partido, o PDT, e contrariando também a minha compreensão do assunto. Em breve esse blog terá um texto sobre a questão.
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