domingo, 2 de fevereiro de 2020

Sobre vidas que inspiram a arte e uma arte que alimenta a vida

Era só o último sábado de férias. Mandei uma mensagem para uma amiga para convidá-la para almoçar. Ela não podia, mas me convidou para ir ao teatro mais tarde. Dei uma olhada rápida na proposta do espetáculo: um solo de Denise Fraga a partir de narrativas reais com colaboração do público. Claro, convite aceito!


 
Foto de divulgação

O espetáculo tem uma pegada de humor, mas me fez chorar algumas vezes e espero que tenha feito muita gente pensar sobre tantas coisas que se passam todo dia com a vizinha, com o colega de trabalho, ou que passam diante dos nossos olhos pela janela do carro, mas que nós, muito ocupados com nossos próprios pequenos ou grandes dramas, não damos a atenção devida. 

A interpretação poderosa de Denise Fraga nos leva para tantas outras vidas e até nos convence de que está falando de nós. Sim, algumas vezes me reconheci naquelas palavras e o alívio de um perdão ou a frustração no trabalho falavam de mim. Eu estava lá no palco, era uma parte de mim. 

A atriz está no palco de corpo e alma emprestando sua sensibilidade e sua voz para contar histórias de pessoas anônimas ou que são invisibilizadas no dia a dia. É o extraordinário presente no ordinário. É o amor ou a falta dele. É o amor pelo outro, mas  acima de tudo o amor que só eu posso ter por mim. É o medo que paralisa e que também vira coragem. É a vontade de desistir ou o desejo de mudar tudo, mas é também a capacidade de seguir, por teimosia, só de pirraça. É não aceitar as paredes, os nãos, as portas fechadas ou as mentiras das respostas prontas como palavra final, como limite para os sonhos que trazemos na alma.

O espetáculo é permeado por muitas músicas. Claro, porque todas essas vidas têm uma trilha sonora. Eu tenho a minha, certamente você tem a sua. De repente a lembrança do pai que queria ser cantor e a memória da mãe que só podia ser acessada pelas músicas me fizeram pensar em que lembranças eu quero guardar dos meus pais que aos poucos envelhecem. Pensei na trilha sonora que me faz lembrar deles e da minha infância...E o silêncio que é também comunhão, tão necessário quando tudo é barulho e até as imagens gritam o tempo todo, me comoveu até as lágrimas. Como também me comoveu a narrativa da carta: quantas violências cabem numa vida?

E de repente me dou conta dos privilégios que desfruto hoje em dia: frequentar teatros, cinemas e outros espaços de cultura e arte. Não deveria ser assim. Um espetáculo como Eu de Você faz a gente ser gente melhor, humaniza e deveria ser um direito de todos. A arte nos ajuda a dar o nome correto às coisas. E nunca foi tão urgente poder dar nome ao que sentimos, ao que experimentamos no cotidiano. Só assim poderemos enfrentar e superar ou simplesmente digerir o que nos acontece nesses tempos sombrios que a cultura e a educação viraram inimigos públicos dos homens no poder (e não foi só o amor que eles jogaram fora, a ordem foi substituída pela balbúrdia e o progresso pegou a rota do passado).  

Está difícil imaginar futuros bonitos, ter sonhos, mas saí do teatro com uma pontinha de otimismo. Enquanto existir artistas sensíveis à vida que transcorre silenciosa e despercebida e que façam de seu trabalho uma possibilidade de enriquecer a vida de outras tantas pessoas, ainda há motivos para ter esperança. Saí do teatro com energias recarregadas, estava precisando dessa dose de fé na vida, na possibilidade de se criar vínculos e afetos entre as pessoas. Certamente cada uma das pessoas que estava naquela sala experimentou o espetáculo de um modo singular, fez conexões ou foi afetado pelas histórias de maneira única, mas nós compartilhamos aquele momento, dividimos e experimentamos aquelas vidas, fomos um sendo muitos e fomos muitos sendo um.

A arte pode nos salvar da mediocridade de uma vida que seja só no singular. É através da arte que temos a oportunidade de ser muitos. Enquanto eu chorava, algumas pessoas riam. Mas estávamos juntos, experimentando ser o outro, colocando e tirando máscaras. Obrigada, Denise Fraga, por esse espetáculo-ritual. Obrigada por essa possibilidade de ser com outros. Façamos Arte! Façamos Amor! Sejamos plural! E vamos cantar, porque, querendo ou não, vão ter que nos ouvir!

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Obrigada, Fefs, pelo convite! Foi uma noite muito especial!

3 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo texto.
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Li Herrerias disse...

Realmente esse espetáculo é único, Francine! Me tocou tanto quanto a você!
E parabéns por seu texto! Foi, de longe, o melhor que li até hoje!
Acaba de ganhar uma "seguidora"!

Francine Ribeiro disse...

Muito obrigada, Li Herrerias.
Seja bem-vinda ao Mineirices!

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