terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

É preciso ser muitos sendo um. Ou sobre a necessidade da ação comum.

Vivemos tempos sombrios. Certamente essa afirmação já foi feita algumas vezes nos últimos meses. Mas é preciso repetir. É preciso também dizer que vivemos sob o domínio de perversos, como nos alertava Eliane Brum. E a cada dia que passa algo de muito ruim se sedimenta entre nós: vivemos como zumbis. Não esboçamos mais que meia dúzia de palavras de indignação, compartilhadas no face ou no twitter e seguimos. Mas para onde? Os ataques à educação, à ciência, à imprensa, às mulheres, aos servidores públicos - parasitas! - assumem graus alarmante. Os insultos e os comportamentos inadequados das autoridades ultrapassam todos os limites do aceitável e do imaginável. Até quando?

O Brasil não é um país neste momento. O Brasil virou um palco de teatro do absurdo, mas não é uma denuncia, é a substituição da realidade pelo absurdo normalizado: declarações criminosas, atentados contra o bom senso, a lógica, a verdade e a materialidade dos fatos. No Brasil de hoje, a narrativa dos fatos vem sendo substituída pela narrativa de ficções e quanto mais fantasiosas maior sua aderência entre as pessoas, maior sua circulação pelas redes. São ficções sem a elaboração do realismo fantástico, uma ficção de mau gosto, feita sob medida para um público que é literal, que lê pouco, que prefere as imagens. E imagens são facilmente recortadas, sobrepostas, editadas, photoshopadas. Mas será que as pessoas não desconfiam, não intuem que tem algo de errado?

Porque tem algo de muito errado acontecendo diante dos nossos olhos. A deterioração das nossas relações cotidianas se dá numa velocidade vertiginosa. O presidente e seus ministros dia após dia, tweet após tweet, destroem toda e qualquer condição mínima de civilidade entre nós. O Brasil se desumaniza. "Bandido bom é bandido morto", desde que não seja miliciano amigo da família presidencial. Os "parasitas" precisam ser eliminados - na câmara de gás? E como resistir à tentação de dizer que "parasitas" são eles: banqueiros, rentistas, Bolsonaro, seus filhos e seus ministros; eu confesso que não resisti. Mas é preciso! Eles são humanos, os piores exemplares que podemos observar neste momento, mas são humanos. Roubar-lhes a humanidade nos rebaixaria, seria sucumbir. Não podemos sucumbir. 

Guedes, Weintraub, Bolsonaros e afins apostam na barbárie. Apostam no caos, na autodestruição daqueles que elegeram como seus inimigos. "É preciso estar atento e forte". "Há perigo na esquina" e eles estão vencendo... Ou fazemos um esforço imediato de existência, de humanização, de nos afirmarmos ou seremos involuntariamente transformados em soldados do exército dos cavaleiros do apocalipse. Que não nos enganemos mais: o ódio é estratégia; os insultos e aparentes erros são estratégias; as ofensas são estratégias. Nada nesse (des)governo é por acaso. A aparência de errático e amador é estratégia. A ignorância em parte é autêntica, mas também faz parte da estratégia. O tiozão despenteado, mal vestido e desbocado que hoje vive no Palácio do Planalto sabe muito bem o que quer: revanche, vingança contra todos que olhavam de lado e torciam o nariz para suas piadas sem graça, seus comentários desagradáveis e preconceitos gratuitos. Mas o tiozão é também um personagem que representa tantos outros que nos últimos anos passaram a se dizer perseguidos, censurados e que diziam o tempo todo que o Brasil estava chato e que já não podia se divertir como antes. E interpretar esse personagem também é parte da estratégia. No fundo, o objetivo é "acabar com tudo isso que está aí". E nesse ponto não podemos dizer que não sabíamos. Foi tudo anunciado desde o início.

Precisamos de uma estratégia que nos coloque numa posição ativa, de ação e não meramente na reação, reagindo de maneira espasmódica, dançando conforme a música tresloucada tocada pela banda alucinada de Damares e Weintraubs. É preciso entender que aqueles que agora desgovernam o país são homens ressentidos e suas aparentes ações não passam de reações. Aqueles que se opuseram desde o início ao plano de destruição que agora se materializa no país precisam mostrar sua criatividade e sua força de ação. Precisam apontar caminhos alternativos, criar possibilidades, despertar afetos positivos, criar laços, estabelecer diálogos, construir pontes, curar feridas. Precisamos urgentemente criar possibilidades de ser com os outros, de ser muitos sendo um. Só assim poderemos dissipar as sombras que ora pairam sobre nós. 

O Carnaval tem mostrado a potência do povo que, de maneira irreverente, traz para as ruas sua indignação, sua resistência, sua força. Mas não podemos deixar que essa potência se dissipe. O riso e o deboche não podem esgotar em si mesmos a criatividade e a força do povo. Como disse Elza Soares, "não adianta mandar o cara tomar aqui ou ali, o negócio é ir pras ruas!" É preciso tomar as ruas, com irreverência, com criatividade, mas também com projetos, com alternativas que façam as pessoas terem esperança, não no sentido passivo de quem espera um salvador da pátria, mas no sentido ativo, capaz de nos colocar em marcha, de arregaçar as mangas, de lutar para conquistar mentes e corações, de construir novas sociabilidades, de nos fazer comunidade, de criar pertencimento e reconhecimento entre os cidadãos brasileiros. E como já disse Eliane Brum, "o único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum."
 

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