quarta-feira, 15 de maio de 2019

Pelo fim da era dos idiotas

Cartaz feito por alunas do IFSP-Capivari
Segundo o presidente da república, os que estiveram nas ruas no dia de hoje, 15 de maio, lutando pela Educação são "idiotas úteis", "massa de manobra" e não sabem nada. 
Tenho certeza de que os meus alunos que estiveram nas ruas hoje sabem muitas coisas, não só 7x8 ou a fórmula da água. Inclusive, diferentemente do presidente, eles sabem a importância da Educação. Não qualquer uma, mas uma Educação de qualidade, uma Educação transformadora e humanista que se concretiza numa formação integral e inclusiva. Meus alunos sabem que a Educação pode ser revolucionária quando oferece oportunidades para filhos e filhas de trabalhadores que tiveram pouco acesso à Educação para romperem com o determinismo social. Meus alunos sabem também que de idiotas eles não têm nada. Ao irem para as ruas, para a praça pública, tal qual os cidadãos gregos iam para a Ágora debater os assuntos de interesse público, eles assumem a condição de animal político, assumem a condição de protagonistas do presente e do futuro do país. Idiota, do grego idiotes: homem privado em oposição ao homem de Estado, é exatamente o oposto daquela condição de político. O idiota, no contexto da democracia grega, é aquele que ignora a vida pública, os assuntos públicos e se dedica apenas a assuntos particulares e privados. 
Mas o presidente tem razão, há uma "massa" de "idiotas úteis" nesse país. Muito grande por sinal. A quantidade de gente que vive apenas em função de interesses privados, que é incapaz de olhar para além do próprio umbigo, é considerável. Ser idiota, nesse sentido, virou moda. O individualismo transformou-se na toada da vida brasileira. Se não uso transporte público, não me interessa a qualidade nem o valor desse transporte. Se não uso a escola pública, não me interessa a qualidade da educação nela oferecida. Se não uso o serviço público de saúde, não me interessa se falta médico, remédio e se as pessoas morrem em filas de hospitais. Esse individualismo, esse desinteresse pelo bem público, isso sim gera uma massa de idiotas úteis responsáveis por eleger políticos que não respeitam a política, que atacam as instituições republicanas, que abertamente atacam a democracia e flertam com o autoritarismo. A tão propalada "renovação" da política nas últimas eleições trouxe para o cenário político, estadual e nacional, figuras exóticas como Mamãe Falei e Alexandre Frota. Sujeitos que parecem ver na política o caminho para autopromoção, que desconhecem a política, que representam interesses privados e que mobilizaram uma massa atomizada, uma massa de indivíduos, totalmente desprovida de qualquer interesse comum. Uma massa que se alimenta do ódio, do ressentimento, talvez único sentimento que são capazes de compartilhar. De acordo com Hannah Arendt, "a atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa, que, muito antes de atraírem, com muito mais facilidade, os membros sociáveis e não individualistas dos partidos tradicionais, acolheram os completamente desorganizados, os típicos "não alinhados" que, por motivos individualistas, sempre haviam se recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais. (...) A principal característica do homem da massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais." 
Ainda em Origem do Totalitarismo*, Hannah Arendt nos alerta: "potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto". Mas o alerta segue e, no Brasil de 2019, ele se apresenta quase como um grito de desespero:

"tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção. A maioria dos seus membros, portanto, consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política.  Isso permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição: os movimentos, até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele, puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais.(...) quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com isso a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria. (...) 

O que me assusta é que, diante dos nossos olhos, está em curso uma demonização da política, inclusive por parte de políticos eleitos, a ponto do presidente dizer que os jovens nas escolas não devem se interessar por política. Além do mais, a distorção hoje feita pelo presidente ao chamar os estudantes e professores de idiotas por irem às ruas, por fazerem política, no melhor sentido, reforça a demonização da política. Quando o presidente diz que não vai dialogar com o parlamento e chama a construção de consenso de 'velha política', sugerindo que haveria uma 'nova política', mais uma vez confunde a cabeça da população e demoniza a política. Política se faz através de diálogo. Política é a construção de consenso. Política depende da participação do cidadão. Política se faz com cidadãos ativos, que vão pra rua, para as praças, que ocupam os espaços e que lutam por pautas que envolvem o bem comum. A Educação hoje se mostra como a principal pauta comum do povo brasileiro. A Educação Pública de Qualidade fez com que os cidadãos brasileiros ocupassem as ruas hoje por todo o Brasil. 
Não, presidente, definitivamente as pessoas que ocuparam as ruas hoje não são idiotas. Mas são úteis e necessários para o país: são professores, pesquisadores, cientistas e, principalmente, estudantes, o futuro desse país. Definitivamente o que vimos hoje foi uma resposta aos idiotas, àqueles que são incapazes de fazer parte e lutar pelos interesses comuns, pelo bem comum, pelo nosso futuro.



*Arendt, Hannah, Origem do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo, Companhia de Bolso, 2012.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Não é a Filosofia ou a Sociologia que estão sob ataque: é a educação pública de qualidade (pela qual ainda lutamos)


O pronunciamento do presidente da república acerca das supostas intenções do MEC de reduzir investimento em Cursos de Humanas, nominalmente Filosofia e Sociologia, é só mais um parágrafo - capítulo exigiria mais do que os caracteres permitidos pelo Twitter e que parecem ser também o limite do presidente - da narrativa anti-intelectualista adotada pelo governo e seus apoiadores.

No entanto, atacar a Filosofia não é bem uma inovação desse governo. A Filosofia, desde suas origens, muitas vezes foi apontada como inimiga pública de governos e governantes - quanto mais autoritários, maior a fúria com que se atiram contra ela. Mesmo em tempos de maior estabilidade e normalidade democrática, uma parcela considerável da sociedade manteve-se sempre desconfiada da Filosofia. Essa desconfiança ora se traduz em certo desdém - a Filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual -, ora num reconhecimento desmedido - Filosofia é coisa de gente muito inteligente - mas que, no fim das contas, tem o mesmo resultado prático: contribui para afastar a maioria das pessoas da Filosofia.

Seja porque é inútil ou porque é algo muito difícil, a verdade é que muitos filósofos também contribuíram com essa fama da Filosofia de senhora estranha ao grande público. Por motivos históricos, a Filosofia também tem sido uma área de grande concentração de homens ricos ou bem-nascidos, tendo sido, ao longo de sua história, pouco receptiva às mulheres ou àqueles que vinham de classes mais baixas. Afinal, ter tempo livre para pensar sobre as grandes questões da vida sempre foi privilégio de uns poucos. A maioria das pessoas esteve sempre preocupada em sobreviver, em ganhar o pão de cada dia, e quando começou sobrar tempo, queria descansar e se divertir.

Mas se a Filosofia nasce encastelada, sendo privilégio de uns poucos, hoje ela vive um momento diferente. Os ambientes universitários, embora não sem resistência, têm cada vez mais percebido a importância de se abrirem às mulheres e aos diferentes grupos da sociedade que antes estiveram apartados da Filosofia. A própria existência de cursos de Filosofia em Universidades Públicos permitiu essa aproximação. Filhos e filhas de trabalhadores que tiveram pouco acesso à Escola - como eu - podem hoje cursar Filosofia. Ainda há muitas barreiras a serem rompidas e muitos espaços a serem conquistados. E na contramão dos esforços de democratização da Filosofia, e dos espaços universitários como um todo, a fala do presidente e as intenções do ministro da educação repisam velhos preconceitos e lugares comum. A declaração do ministro durante a live com o presidente: "Pode estudar Filosofia? Pode. Com dinheiro próprio.", retoma o elitismo da Filosofia e mais uma vez a joga para longe da maioria das pessoas. Ou pior: ao falar em pagar para estudar filosofia, o ministro pode estar pensando no curso online do guru desse governo, astrólogo de profissão e autoproclamado filósofo que, ao que tudo indica, doutrinou bem o ministro. Mas, no limite, o que interessa é que quem não tiver dinheiro próprio para poder se dar ao luxo de estudar Filosofia, vai ter que estudar o que o ministro e o presidente decidirem que é adequado.

Segundo o presidente, "a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta". Num primeiro momento pode parecer que não há nada de errado com a fala do presidente. Afinal, quem discorda que devemos ensinar leitura e escrita aos nossos jovens? Ou que os jovens precisam aprender matemática? Quem discorda que a educação deve melhorar a sociedade a nossa volta? No entanto, na cabeça do presidente - pelo menos é o que seu Twitter nos permite saber - basta ensinar leitura e escrita e um pouco de matemática. E depois, o essencial é ensinar um ofício, de modo a garantir renda para a pessoa e sua família. A maldade desse pensamento está em limitar os sonhos e potenciais de milhares de jovens. Que para um jovem que nasceu em família pobre e sempre passou necessidades conseguir um emprego é algo maravilhoso, não tenho dúvidas. Sei bem o que é isso. Comecei trabalhar muito cedo, não por necessidade extrema, mas a condição financeira dos meus pais era bastante complicada. Fazer um cursinho, prestar vestibular, entre outras coisas, só foram possíveis porque eu trabalhava desde os 14 anos. E quando eu larguei um emprego de carteira assinada para embarcar para outra cidade, para fazer Filosofia, muitos acharam que eu era louca. Meus pais, sem entenderem bem o que era essa tal filosofia, se orgulhavam da filha que seria professora, mas também sofreram bastante, temendo que eu passasse fome, pois não tinham como me sustentar numa cidade grande como Campinas. Com 19 anos, eu saí otimista de casa, sabendo da existência da Assistência Estudantil, da Moradia e outras bolsas que tornariam meu sonho possível. Mas tudo ao meu redor conspirava para que eu ficasse na minha cidade pequena, na garantia do meu trabalho, com carteira assinada. Pessoas como Bolsonaro e o atual ministro da educação, não veem chances melhores para pessoas que nasceram numa família pobre como eu. Aprender a ler e escrever, um pouco de matemática e ter um ofício que garantisse renda seria o máximo que eu poderia sonhar.

Mas eu queria mais e tenho certeza de que muitos outros jovens, como eu, sonham com mais. Hoje o ministro e o presidente atacam Filosofia e Sociologia, mas amanhã poderão usar o mesmo argumento para atacar Engenharia, Medicina, Veterinária. Durante a campanha eleitoral, o presidente disse que o jovem hoje tem tara por diploma de ensino superior (aqui), e que deveríamos priorizar a formação técnica no ensino médio. Mais uma vez, nenhum problema com o ensino técnico, trabalho hoje no IFSP e sou defensora de um ensino técnico integral e integrado, de qualidade, que forme jovens críticos e atuantes, cidadãos para o mundo e para o mundo do trabalho. O problema é não dar oportunidades para que os jovens possam escolher que caminhos querem seguir. O problema é o governo decidir que jovens pobres, que frequentam a escola pública, têm que ter formação técnica e ponto. Vejam, a fala do presidente é muito mais do que um ataque a essa ou àquela área do conhecimento, a esse ou àquele curso. A fala do presidente nos dá pistas de qual é sua visão da escola pública. O discurso é mais complexo - ou seria falacioso? -, pois defende que se retire recursos e investimentos das Universidades Públicas em favor do ensino básico. De novo, ninguém discorda que o ensino básico precisa de mais investimentos. Mas será que a única opção é retirar dinheiro do ensino superior? Ao falar em investir na educação básica, parece que o presidente está preocupado e comprometido com os mais pobres, afinal são eles que frequentam a escola pública. Mas não é bem assim. O raciocínio do presidente vai no sentido de limitar as possibilidades daqueles que nasceram pobres, condenando-os a serem mãos de obra barata com alguma qualificação técnica (não temos motivos para alimentar ilusões de que irão investir e/ou ampliar um projeto como o dos IFs, estruturado no tripé ensino-pesquisa-extensão, muito pelo contrário.). Se meu pai não pode estudar e eu tenho um curso técnico, parece que aquela responsabilidade do Estado de oferecer um ofício que garanta renda e melhores condições à família foi plenamente cumprida.

Embora formada em Filosofia por uma Universidade Pública, a fala do presidente não me incomoda por atacar a Filosofia. Ela me incomoda porque é parte de um todo muito mais perverso. Ela me incomoda porque não é a Filosofia ou a Sociologia que está sob ameaça nesse (des)governo, é a educação pública de qualidade, em todas as suas etapas, que está correndo riscos. Enquanto professores e parte da sociedade civil têm lutado para garantir educação pública de qualidade para todos, temos um governo cujo principal objetivo é destruí-la. E que não se enganem: a declaração de intenções de corte para a área de Humanas é só o começo. Se conseguirem seguir nessa toada, os cortes não serão seletivos. O caminho é destruir as Universidades Públicas e oferecer educação básica profissionalizante aos moldes dos anos da ditadura: tecnicista, que privilegiava disciplinas técnicas, retirava ou reduzia aulas de História, Geografia e afins. A Reforma do Ensino Médio já adiantou parte do serviço. Resta saber qual será a velocidade da destruição. Vamos pagar pra ver?

Publicado originalmente no Diário do Engenho.














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