quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Não é comemorar o aborto, mas sim a conquista do direito das mulheres de decidir

 "Durante séculos a sociedade encerrou as mulheres, privou-as de sua liberdade e de sentido, conseguiu enlouquecê-las."Monteiro, Rosa, Nós, mulheres: Grandes vidas femininas, Todavia.

Depois de uma longa e histórica sessão do senado argentino, o país vizinho deliberou pelo direito das mulheres de decidir sobre a interrupção voluntária da gestação. A luta das mulheres argentinas certamente se torna exemplo para as demais mulheres da América Latina. Infelizmente o machismo estrutural segue firme e forte no Brasil e muitos homens e mulheres reproduzem falácias sobre o tema. Acusam as mulheres e militantes pelo direito de decisão das mulheres de assassinos, apelam para a sensibilidade religiosa, insistem em culpabilizar a mulher como se a gravidez fosse apenas sua responsabilidade. Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Tratar o aborto pelo viés moralizante - questão de certo ou errado / bem versus mal - não ajuda em nada. É preciso tratá-lo como questão de saúde pública e de justiça. E, muitas vezes, o que é urgente é colocar o debate nos termos corretos, afastando formulações que, seja por ignorância ou má-fé, acabam levando o debate para o caminho errado.

Uma questão muito simples, mas que todos que se posicionam contra o direito das mulheres de decidir ignoram ou fingem ignorar, é que a despenalização e a legalização do aborto, como previstos na Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez recém aprovada na Argentina, não irão obrigar ninguém a abortar. Ao contrário de quem está confortável em impor suas convicções às mulheres - sejam suas convicções religiosas ou simplesmente fruto do machismo que tem prazer em castigar as mulheres -  nós, que defendemos o direito de decisão das mulheres, entendemos que as mulheres precisam ser acolhidas e amparadas em suas decisões - seja para seguir com uma gestação, seja para interrompê-la. Nesse sentido, muito interessante observar que a redação final do projeto aprovado na Argentina também "garante assistência plena do Estado às gestantes de baixa renda, do pré-natal até os 3 anos da criança, fundamental para evitar que a interrupção da gravidez se dê por falta de perspectiva de sobrevivência econômica", conforme apontou Ana Prestes, em artigo publicado no portal O Cafezinho. É muito importante entender - e deixar claro - que a luta pelo direito das mulheres de decidir pressupõe outros direitos como o acesso a educação sexual de qualidade, acesso a contraceptivos e, por fim, acesso a um sistema de saúde preparado para acolher as mulheres em suas decisões.

A grande verdade é que, muitas vezes, os mesmos moralistas que condenam o aborto, estão na primeira fila para jogar pedras na mulher que é "mãe solteira", para responsabilizá-la pela má educação de seu filho ou filha. Quando questionados sobre o "aborto" largamente praticado por homens que não assumem suas responsabilidades, uma vez mais são ligeiros em dizer que as mulheres deveriam escolher melhor com quem transam sem camisinha. Defender o direito das mulheres de decidir não é lutar para que as mulheres possam cometer os mesmos erros que os homens (outra desculpa esfarrapada da qual o machismo costuma se valer). As realidades enfrentadas pelas mulheres, inclusive dentro do casamento, com maridos que se recusam a usar camisinha e jogam a responsabilidade da prevenção toda para suas esposas, são tão diversas e complexas. Mas isso não é empecilho para muitos homens e mulheres que, de bom grado, tomam para si a função de juiz e fiscal da vida alheia. 

Outra falácia, que tem virado modinha, é homens, ou em geral pessoas contrárias ao direito das mulheres, se escondendo atrás de supostas mulheres de periferia - que seriam contra o aborto - para atacar as feministas, as mulheres de classe média, que são "abortistas". Em primeiro lugar, é bem difícil encontrar por aí mulheres "defensoras do aborto". Isso acontece quando perguntas são formuladas justamente para se criar ou fortalecer essa narrativa. Sempre que alguém lhe perguntar se "você é a favor do aborto" é importante pensar em como irá responder. Caso você entenda que as mulheres devam ter assegurado o direito de decidir levar uma gestação adiante ou não, responda: eu sou a favor do direito das mulheres de decidir.  Em segundo lugar, muitas vezes na periferia - onde o número de mulheres vítimas do aborto clandestino, de clínicas irregulares ou de tentativas desesperadas de aborto em casa, é muito grande -, encontramos muitas mulheres que se dizem contra o aborto (como de resto, eu diria, a maioria das mulheres são!), ainda que já o tenham praticado. E não é porque elas são hipócritas. A pressão social e religiosa - o estigma que as mulheres que já fizeram aborto encaram numa sociedade conservadora, machista e hipócrita - muitas vezes explica porque muitas delas ao serem questionadas sobre o aborto e o direito das mulheres de decidir se declaram contrárias a eles. Mas quando perguntadas se já abortaram, essas mesmas mulheres respondem afirmativamente. Entre aquilo que sentimos ou que nos foi ensinado a pensar que é o certo e a realidade que se impõe há, muitas vezes, um abismo que apenas cada mulher, na sua individualidade, conhece e é capaz de julgar o que lhe convém.

Nós, mulheres, somos diversas, somos diferentes, temos discordâncias, enfrentamos realidades tão distintas e não podemos ser tratadas em bloco, como se as "mulheres classe média" ou "as mulheres da periferia" pensassem e agissem do mesmo jeito apenas porque são "mulheres classe média" ou "mulheres de periferia". 

Aos homens e mulheres que se dizem contrários ao aborto, fiquem em paz, ninguém irá obrigá-los a fazer um aborto, ninguém está pedindo que vocês mudem de ideia. Se sua namorada ou você engravidou por descuido - acontece nas melhores famílias - vá em frente, siga com a gestação. Vocês terão seu direito de escolha respeitado. Tudo o que queremos é que também seja garantindo o direito de escolha de outras pessoas que discordam de vocês. Pensem bem qual das posições é autoritária, qual das posições é impositiva, antes de saírem por aí atacando quem luta por direitos. E lembre-se: você concordando ou não, há mulheres fazendo aborto todo dia. A diferença é que algumas delas terão apoio e cuidado e outras não, e por isso podem ter complicações graves de saúde ou morrer. 

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Imagem divulgada nas redes sociais de @brumelianebrum

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Eu canto porque existo neste instante

Se não houvesse a música, o que seria de nós?

Nós a inventaríamos! É fato!

Impossível uma existência sem música. 

Seja alegre ou seja triste,

seja noite ou seja dia,

faça sol, faça chuva ou faça frio, 

a vida é poesia, a vida é música.

E enquanto estou neste mundo,

só é possível ser cantando. 

Quando muda eu estiver, 

que minha voz ainda possa ecoar,

e que a música, os versos, sejam testemunhas da minha breve existência. 

 


 



sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

É preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem

"É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada senão que é preciso combatê-la a seu lado. Sei, de ciência certa (sim, Rieux, sei tudo da vida, como vê), que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. Sei ainda que é preciso vigiar-se sem descanso para não ser levado, num minuto de distração, a respirar na cara de outro e transmitir-lhe a infecção." Camus, Albert. A peste.

Outro dia, ouvindo Pais e filhos, da Legião Urbana, essa frase se formou na minha cabeça: é preciso amar as pessoas como se não houvesse ontem. Na verdade, se formou uma tese: para haver amanhã, é preciso amar as pessoas como se ontem não tivesse existido. E eu estava pensando em muitas coisas. Estava pensando nas pequenas frustrações dos nossos relacionamentos cotidianos - pais e filhos, mães e filhas, amigos, companheiros de vida, colegas de trabalho. Como nós resistimos em perdoar as pequenas falhas dos outros, mas acima de tudo, como resistimos, muitas vezes, em perdoar nossas falhas, grandes ou pequenas. Mas desde 2018, alguns vão dizer que tudo começou antes, se tornou muito difícil, se não impossível para muitas pessoas, perdoar seus compatriotas, mas também seus tios, irmãos, primos, pais, que, de repente, ou não tão de repente assim, assumiram diante de nós posturas que consideramos inaceitáveis. E antes mesmo da chegada do vírus que fez com que muitas famílias não pudessem se reunir este ano, mesas de jantares tornaram-se lugar de saborear o amargor do distanciamento, da impossibilidade de reconhecer no outro, até ontem uma pessoa querida, alguém que respeitávamos, com quem dividíamos memórias e afetos, alguém com quem desejamos dividir o pão. 

2020 foi, de longe, o ano mais difícil da minha vida, profissional e pessoal. E se normalmente essas datas, natal, ano novo, meu aniversário, me trazem um sentimento de angústia, de tristeza, este ano é isso e ao mesmo tempo um vazio que toma conta de tudo. Estamos batendo 190 mil mortos por Covid. A vacina virou mais um capítulo de novela. São milhares de desempregados. Milhares de famílias rumando para a miséria. Mas ainda tem gente que insiste em dizer que é exagero, que não é nada de mais, que a melhor vacina é o vírus. Só mesmo um verme poderia dizer uma coisa dessas. E é sobre esse verme que precisamos conversar. É por causa desse verme que muitas mesas ficaram vazias antes do vírus. Faz um tempo que estamos sendo acometidos por uma contaminação silenciosa, que pouco a pouco vem roubando a nossa humanidade. O perigo, portanto, não é uma vacina nos transformar em jacarés. O perigo é o verme da desumanização nos transformar em zumbis, em mortos-vivos, insensíveis à dor do outro, surdos aos apelos da razão, cegos pelo ressentimento. 

É difícil dizer como tudo isso começou. É bem provável que esse verme tenha existido desde sempre. O que devemos nos perguntar é que condições permitiram o seu espalhamento. Minha hipótese é que esse verme acompanha a humanidade e que exige de nós uma vigilância rigorosa e permanente. Portanto, é preciso entender quando e por que essa vigilância falhou. Também me parece necessário perguntar o que pode ter alimentando o verme e permitido que ele se apossasse tão rapidamente de entes queridos, transformando-os em criaturas irreconhecíveis que, de repente, entre uma prece e outra, passaram a espumar e esbravejar contra a vida de seus semelhantes, empunhar armas - reais ou imaginárias -, tolerar apologia a torturadores, clamar por uma ditadura, enxergar aqueles que buscam por direitos como inimigos e ameaças. 

O que mais ouvi e li em 2020 é que caímos num buraco civilizacional. E parece que cada vez que tentamos sair dele, tudo o que conseguimos é cair um pouco mais. Eu mesma já me peguei chafurdando no ódio e no ressentimento. É bem possível que o verme tenha se apoderado de mim. Ou talvez sempre tenha estado aqui, nas minhas entranhas e nas de todos nós. Um dos sintomas da doença causada por esse verme é a disposição a acreditar que o outro, o que pensa diferente de mim, está sempre errado, enquanto eu, estou sempre certo. Pior: é sentir que o outro é incapaz de alcançar a verdade que eu possuo. Restando-lhe, portanto, me ouvir e aceitar a verdade que tenho a oferecer. Eu, que li muito, estudei muito, gastei meu tempo para entender, sei do que estou falando. Olhando de fora, ainda que essa minha verdade seja mesmo fruto de conhecimento bem construído em evidências e bons métodos, quando enunciada dessa maneira, em nada difere das verdades reveladas por sacerdodes e profetas, tomados pelo mesmo sentimento de superioridade, mas porque fazem parte de um grupo seleto de escolhidos aos quais a verdade foi revelada. Também eles falam e propagam suas verdades, esperando que os demais acolham e passem a aceitá-las. 

Parece-me hoje que o verme que tanto mal nos tem feito é o verme da intolerância. É verdade que as pessoas contaminadas podem manifestar a doença de maneira diferente: alguns têm formas mais brandas; outros, infelizmente, apresentam a forma mais aguda da doença. É bem verdade que as manifestações da contaminação dependem de disposições prévias. Muitos, acometidos pela doença, pensavam que não havia nada de errado com suas atitudes, afinal, sempre pensaram no bem de todos, sempre estiveram apenas querendo salvar os outros da ignorância e das trevas em que viviam. E se eles não conseguiam fazer isso sozinhos, que mal havia em dar uma "forcinha" para tirá-los de lá. Como podem ser acusados de autoritários? Isso é pura ingratidão. Ou incapacidade dos outros, egoístas que são, de reconhecer a nobreza de nossos atos. Era assim que pensavam. Assim pensei muitas vezes. Reconheço. 

Os outros, por sua vez, também contaminados pelo verme, sentindo-se acuados, ressentidos pelo olhar reprovador que insistia em condenar suas crenças, seus medos, suas desconfianças, foram se achando, se juntando, cada vez mais buscando os que lhes pareciam iguais, que não julgavam suas escolhas, que não ridicularizavam seus gostos, que como eles se sentiam cada vez mais humilhados. E nesse movimento, pessoas que tinham pouca ou nenhuma afinidade, de repente foram sendo empurradas para um mesmo bloco. Foram se misturando, foram forjando entre si afinidades, nem que fosse só uma vaga sensação de que não havia para eles espaço naquele mundo cheio de autoridades e especialistas que apareciam com dedo em riste para dizer como deviam pensar, como deviam agir...

E de repente já não parecia haver mais possibilidade de diálogo. Era como se falássemos línguas estrangeiras. Era como se vivêssemos em mundos estranhos. Mas a verdade é que nos afundávamos no mesmo pântano. E nos arrastávamos mutuamente. Ainda nos arrastamos...

A verdade é que estamos todos contaminados pelo verme. Estamos nos tornando zumbis aos olhos dos dos outros e ao mesmo tempo enxergando os outros como zumbis. E cada vez que lembramos o que fizeram - na eleição passada, na década passada, ontem, hoje um pouco mais cedo - parece que construímos muros, fechamos portas, matamos qualquer chance de haver amanhã. Eu nunca tive ilusões com natal, ano novo, mudanças que acontecerão porque mudamos o calendário. Mas sempre fiz minhas listas de início de ano, de bons propósitos, de metas, de coisas que estão nas minhas mãos fazer diferente durante os 365 dias que tenho pela frente. E dessa vez, consciente de que também eu fui contaminada pelo verme da intolerância, a meta será "amar as pessoas como se não houvesse ontem".  Tentar esquecer, para que seja possível imaginar. Tentar perdoar mais ainda as minhas falhas, para que seja possível perdoar as falhas alheias. De resto, 2021 chega com a mesma cara: temos um vírus circulando, uma pandemia ceifando vidas, impondo mudanças, distâncias, perdas, medos. E para conseguir parar o vírus, precisamos antes domar o verme e nos livrar da doença que está nos desumanizando. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Dica de leitura: A vida mentirosa dos adultos (Elena Ferrante)

 "Aquela manhã, pensei de repente em algo que me pareceu insuportável e ao mesmo tempo divertido: nem eu nem Vittoria nem me pai podíamos eliminar nossas raízes comuns e, portanto, acabávamos amando e odiando, dependendo do caso, sempre nós mesmos." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.360).

Tem leituras que nos levam para mundos distintos daquele que habitamos e que, de outro modo, jamais conheceríamos. Outras nos fazem mergulhar em nosso próprio mundo, mas vendo tudo, inclusive a nós mesmos, a partir de pontos de vistas até então ignorados ou que não nos eram acessíveis. E foi isso que A vida mentirosa dos adultos fez comigo. Foi uma leitura, em muitos momentos, psicanalítica, com direito a todo desconforto que se olhar no espelho, principalmente num espelho interno, nos causa.  

Elena Ferrante já me havia sido recomendada por algumas amigas que foram arrebatadas pela tetralogia A amiga genial. Estava na minha lista para ler, lista que só faz crescer, numa velocidade muito maior da que consigo ler. Mas foi graças ao Literateia que, finalmente, li Elena Ferrante. Meu contato com ela foi sem mediações, sem informações sobre a autora, sem outras obras para comparar. E o encontro não poderia ter sido melhor. 

"É uma cegueira repentina, você não sabe mais manter a distância, acaba colidindo. Só algumas pessoas ou todas, após certo patamar, ficavam cegas de raiva? E éramos mais verdadeiros quando enxergávamos tudo nitidamente ou quando os sentimentos mais robustos e densos - o ódio, o amor - nos cegavam? (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.343).

A vida mentirosa, do título, pode bem ser uma referência à suposta distinção entre as pessoas cultas, bem educadas, intelectuais que habitam a cidade alta, como os pais de Giovanna e os pais de Angela e Ida, e as pessoas sem educação, pobres, feias, da cidade baixa, como Vittoria, Margherita, Corrado e Rosario. Afinal, ao seguirmos os passos de Giovanna e nos aventurarmos pelas ruas cada vez mais mais feias, sujas e mal encaradas da Nápoles do bairro industrial, ao descobrirmos com Giovanna as origens e os membros da família de seu pai, professor de história e filosofia, intelectual sempre imerso em profundas discussões acerca de grandes questões, somos lançados também nas entranhas daquilo que nos faz humanos, encarando desejos, traições, medos, ressentimentos, ciúmes e mesquinharias das mais variadas, todas nuas, despidas de qualquer maquiagem ou retoque, seja o domínio do italiano culto, seja das vestimentas elegantes e finas, das joias, ou das fachadas requintadas dos prédios que superficialmente demarcavam a separação entre aquelas pessoas, entre Andrea e Vittoria, o pai e a tia de Giovanna.

"O que se passava, afinal, no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduzia a animais dentre os menos confiáveis, piores do que os répteis?" (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.169).

A história é narrada por uma adolescente - ou melhor, por uma jovem saindo da adolescência e entrando na vida adulta - que nos conduz pelos anos de sua adolescência. Exatamente quantos anos a narradora tem quando nos conduz pelos fatos que marcaram sua adolescência não é possível precisar, mas certamente temos um olhar retrospectivo, uma tentativa de compreender e dar sentido às experiências vividas; talvez uma tentativa de encontrar a sua própria versão para os fatos: a separação dos pais, a amizade e as traições entre seus pais e os pais de suas amigas, a origem da pulseira que ela ganhou de sua tia Vittoria, a relação conturbada entre seu pai e sua tia.

"Na opinião dele, só quem está sempre com um livro na mão merece habitar a Terra, para ele, se você não estudou, não é ninguém. Ele me dizia: que bailarina,Vittoria, você nem sabe o que é uma bailarina, volte a estudar e cale a boca." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos,Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.68).

As relações entre Andrea e Vittoria podem ser lidas como mais uma de muitas relações conflituosas entre irmãos que, ao escolher caminhos diferentes, abrem verdadeiros abismos entre si. Mas podem também refletir escolhas de uma nação que, a partir de um certo momento, cria para si uma identidade, uma imagem, dentro da qual não cabem aqueles que não aceitaram renegar suas origens, que fazem questão de manter velhas tradições, que por teimosia se negam a se adequar, que não querem abrir mão daquilo que são para se enfiarem dentro de um traje ou de uma máscara que os tornariam aceitáveis. 

A vida mentirosa dos adultos é um prato cheio para lidarmos com profundas questões humanas, demasiadamente humanas. Nos gera desconfortos ao insinuar que a autoimagem que vamos construindo de nós ao longo da vida possui rachaduras, pequenas fissuras; que aquilo que os outros veem quando nos olham não é exatamente o que gostaríamos que eles enxergassem. Pior ainda: que essa autoimagem pode ser diretamente modificada pelo outro, alguns outros que, de forma consciente ou não, permitimos que tenham poderes de transformar a maneira como nós mesmos nos enxergamos. 

"Tenho o número de telefone dele, vou ligar e dizer: você me acha mesmo bonita? Cuidado com o que você diz, meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia; não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito. Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.392).

A leitura de A vida mentirosa dos adultos teve seus momentos de dores, de vergonha, de medo. Também eu estou cansada de ser exposta às palavras dos outros - outros muito pontuais, com relação aos quais preciso entender/estabelecer qual é o meu lugar, mas não o lugar que eles me levaram a ocupar ao longo dos anos. Mas também é preciso rever minhas palavras em relação a outros que talvez, como Giovanna, tenham suas feições modificadas pelo que eu falo. Entender que a versão que fazemos de nós, mas também as versões que fazemos dos outros, assim como as versões que os outros têm de si mesmos e de nós podem conter verdades e mentiras, ambas honestamente sentidas como verdades, é um grande desafio. Para além das intenções de enganar, as mentiras muitas vezes são as únicas possibilidades de manter uma unidade para o eu que foi forjado ao longo da vida - seja de um indivíduo ou de uma nação. Mas não precisa ser assim, no entanto, a jornada que nos leva a nossa imagem sem máscaras pode ser muito difícil e pode nos levar a rupturas duras e, aos olhos dos outros, incompreensíveis, em busca de uma vida autêntica. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

   "quando a vida dá um nó, não adianta sentir dó, de si mesmo..." , O Terno

Dias longos, de dor no peito, de uma vontade grande de não ser, de nunca ter sido, um medo grande de qualquer notícia que pode chegar a qualquer momento. De repente parece que não sou dona da minha vida, que os fantasmas escaparam do porão no qual estavam presos e estão agora me assombrando dentro de casa. 

Por que a gente não pode consertar o mundo? Curar as feridas que fizeram em nós, que fizemos nos outros, que fizeram nos outros e em nós? Tem sentido tudo isso? Ou é só um grande nó mesmo, fios entrelaçados, sem começo nem fim? 

Repito para mim mesma que o sentido depende de mim. Mas eis que já não me sinto capaz de dar sentido algum ao que acontece, ao que fazem, ao que sinto. Penso até doer a cabeça, penso até os pensamentos se confundirem com os sentimentos. Penso até desejar parar de pensar, de sentir, de ser. Mas parece que tudo isso não sou eu, estou apenas emulando sentimentos alheios que procuro entender, que desejo entender. E desejo tanto entender que de repente me perco nesses outros que também são um pouco de mim e que talvez tenham um tanto de mim em si. 

É confuso! Sim, eu sei bem. E esta confusão eu achava que estava resolvida, achava que eu tinha dado conta de botar uma ordem. Mas bastou uma peça sair do lugar, bastou um grito, bastou um imprevisto... a verdade é que muitas coisas aconteceram e eu me dei conta de que nada estava sob controle. Entendi que eu não tinha controle sobre nada, nem sobre os meus fantasmas. 

Dias longos, vontade de fugir, de desistir. "A gente pensa que sabe da gente"... eu pensava que sabia de mim, mas agora sou um nó. Paralisada, sinto apenas uma dor no peito que parece que vai explodir. Passado, presente e não consigo imaginar o futuro. Queria poder, queria imaginar uma saída, uma solução. Será que é assim que ela se sente? Será que é assim que eles se sentem? Como eu pude ignorar por tanto tempo? Fui egoísta. Mas eu sei que estava tentando sobreviver, estava lutando para botar os fantasmas no porão. Eu não fui egoísta de maneira planejada. Foi sobrevivência. Mas agora parece que estamos todos nesse nó, juntos, emaranhados, e os fantasmas estão soltos, zombando de nós. 

Eu passo pelos dias como alma penada. A cabeça está vazia e cheia. Cheia e vazia. Difícil me concentrar, difícil mudar o foco. Tão longe e tão perto. E basta uma mensagem, uma chamada e parece que o mundo vai acabar. Ou será só o meu desejo de que ele acabe? 

Eu não quero sentir dó de mim. Eu só queria poder de uma vez botar toda essa bagunça no lugar. Consertar, ordenar, dar um jeito, sarar. Mas qual é o meu papel em tudo isso? Qual o meu lugar? Qual a minha responsabilidade? Será que estou exagerando? Será que estou mais uma vez agindo mal? Quem deveria estabelecer os limites? Eu? É verdade que o meus limites, pelo menos, eu deveria ser capaz de estabelecer. Mas estou perdida nesse momento. 

É como se dentro de mim, de repente, surgiessem outras de mim, diferentes da que escolhi ser, outras que poderiam ter sido, mas que eu não quis. Por que agora elas parecem querer se apossar de mim? O peito queima, arde, e sinto uma dor que parece rasgar algo lá dentro. Estou em alerta, tudo me deixa ansiosa. Se ligam, fico ansiosa; se não atendem, fico ansiosa; se respondem fico ansiosa, se não respondem... Até quando? (Pula uma resposta - respiro aliviada. Mas dura pouco). 

Meus dias estão sendo constantes ventanias, céu escuro, mormaço que sufoca, trovões, mais ventania que revira a roupa no varal, que traz poeira velha, que tira tudo do lugar. A tempestade está ameançando. Eu não gosto de tempestade, não gosto de vento. Eu busquei calmaria, eu construi a minha própria fortaleza, meu refúgio. Mas agora, agora já não sei...

Esse nó - também na garganta, como se eu precisasse dar um grito! - está me sufocando. Era pra ser mais fácil - ou pensei que seria -, porque agora sou adulta. Mas quem disse que adulto está preparado para lidar com fantasmas?

domingo, 18 de outubro de 2020

Dica de leitura dois em um: A máquina do ódio - notas de uma repórter sobre fake news e violência digital e Populismo: uma breve introdução

A máquina do ódio, de Patrícia Campos Mello, deveria ser leitura obrigatória para todos os estudantes de jornalismo do país. Mas não é só para futuros jornalistas que a leitura é necessária. Também os profissionais do jornalismo na ativa e todos os cidadãos que se preocupam com o presente e o futuro da democracia deveriam ler. Como professora, estou convencida de que para nós, em especial professores de língua portuguesa, de sociologia e filosofia, o livro de Patrícia é fundamental. Afinal, passou da hora de levarmos a sério a alfabetização digital das novas gerações e discutirmos seriamente nas salas de aula fenômenos como fake news e pós-verdade.

Patrícia nos apresenta diferentes exemplos de como em todo mundo líderes populistas têm feito uso de táticas e estratégias muito parecidas para minar a credibilidade da imprensa tradicional e para viabilizar projetos de censura e controle da mídia tradicional ao mesmo tempo em que atuam de modo bastante similar também nas novas mídias digitais, espalhando fake news e teorias conspiratórias.

Campos Mello joga luz numa prática que, me parece, tem passado despercebido na cobertura local das sandices do atual presidente: Trump e outros líderes que, claramente, são inspiração para Bolsonaro, se apossaram da expressão "fake news" e a usam para se referir a tudo que contraria suas narrativas. Desse modo, os fatos, quando contrariam os interesses desses autocratas e são noticiados pela imprensa, são logo tachados de fake news. A mesma tática tem sido reproduzida por canais de apoiadores desses líderes, como é o caso do Terça Livre e similares no Brasil.

Mais importante do que desvelar as estratégias que Trump, Duterte, Bolsonaro, Orbán e outros têm adotado com relativo sucesso para sufocar o trabalho da imprensa, são as reflexões que a jornalista faz sobre a própria responsabilidade da imprensa para que chegássemos a esse estado de coisas:

"A imprensa precisa fazer uma autocrítica: ela foi um dos fatores que possibilitaram o surgimento dessa era. Primeiro, ao praticar a "falsa equivalência". A mídia tradicional se pauta pela obrigação de sempre ouvir os dois lados e (tentar) ser equilibrada, mas às vezes incorre no que se convencionou chamar de falsa  equivalência. O On the Media, programa da National Public Radio americana, deu um bom exemplo: "O presidente Obama afirma que nasceu nos Estados Unidos e, portanto, pode ser presidente do país; seus críticos discordam". Isso é falsa equivalência. O certo seria dizer: "Barack Obama nasceu no Havaí em 1961; o movimento birther nega esse fato". 

Ou, para circunscrevermos a nossas fronteiras: "O presidente Jair Bolsonaro afirma que a cloroquina cura pacientes com covid-19. Especialistas divergem". Não, não tem nada de dois lados aqui. O correto seria: "O presidente Jair Bolsonaro afirma que a cloroquina cura pacientes com covid-19. Vários médicos e estudos afirmam que não há dados comprovando a eficácia da cloroquina, e alguns pacientes têm problemas cardíacos por causa do remédio. Não saiam de casa para comprar cloroquina"."

Em outra excelente passagem na qual Patrícia fala da importância e da urgência de autocrítica por parte da imprensa, a autora chama nossa atenção para o fato de que "boa parte da população pegou ojeriza pela categoria [de jornalistas]". Isso segundo ela, em parte, "devido aos inúmeros erros e incompreensões da imprensa em relação à situação de uma massa de pessoas que se viram cada vez mais excluídas pela globalização." Mas apesar disso, nas palavras de Campos Mello, a mídia tradicional continua "a escrever reportagem após reportagem exaltando os méritos da imigração, fronteiras abertas, comércio internacional - sem ao menos levar em conta as queixas legítimas de populações afetadas por esse processo."

A passagem acima me parece uma contribuição muito importante para o atual debate. Como já falou várias vezes Rosana Pinheiro-Machado, é preciso ouvir, exercitar uma escuta sincera das queixas, dos anseios, dos medos de uma parte considerável da população que, ao que tudo indica, tem encontrado na extrema-direita mundo afora um amplificador para suas vozes. Ainda que de maneira distorcida e manipuladora, muitas vezes, foram líderes como Trump, Duterte, Bolsonaro, que souberam ouvir um clamor que, por muitos motivos, vinha sendo ignorado pela mídia tradicional e por parte da classe política

Em Populismo: uma breve introdução, Simon Tormey nos provoca a pensar sobre o que estaria por trás do sucesso das fake news e da pós-verdade e, ao mesmo tempo, o que estaria por trás do aparecimento de figuras populistas como Duterte, Trump e afins a partir de 2016.

"Nos últimos cinquenta anos, a ideologia dominante  tem insistido que mercados abertos, migração transnacional, desregulamentação bancária, privatização de serviços públicos e nova gestão pública são a melhor maneira de organizar nossas sociedades. A crise, no entanto, não só perfurou a bolha financeira, como também perfurou a bolha ideológica dominante. Seguiram-se raiva e descontentamento, encorajando o desprezo pela visão de mundo da elite.

Desse ângulo, o populismo se parece menos com a imposição de uma nova ideologia que com o retorno a valores e opiniões que pareciam ter sido desacreditados esquecidos ou deslocados. O consenso sobre valores e crenças cosmopolitas, transnacionais, "de qualquer lugar", é contestado pelo retorno a crenças nativistas, "de algum lugar" que se concentram em restaurar um senso de identidade e uma cultura comuns. (...) Talvez a faísca para o populismo seja menos a pós-verdade e mais a "verdade do outro", um conjunto de valores, crenças e princípios em desacordo com pontos de vista da elite e do mainstream."

Não sei se porque li os dois livros mais ou menos ao mesmo tempo, mas considero que os dois podem nos ajudar nessa busca por respostas e compreensão de fenômenos contemporâneos, seja no campo do  jornalismo, em particular, ou como sociedade de maneira mais ampla. Certamente o fenômeno que se faz sentir pelo mundo, a saber, a ascensão de líderes populistas, tem incontáveis camadas e algumas delas são próprias de cada país, no entanto, parece que de algum modo, há um sentimento de insatisfação, de ressentimento, de revolta e de desprezo por certos valores e crenças que até então vinham sendo tratados como universais pela mídia tradicional, pelas academias, por especialistas diversos e por parte considerável da classe política, o que agora faz com que essas mesmas instituições, profissionais e figuras públicas sejam identificados como inimigos. Enquanto não fizermos um esforço coletivo de escuta sincera dessas "verdades dos outros", sem arrogância, sem a pretensão de sabermos o que eles querem e precisam, talvez não tenhamos sucesso em encontrar estratégias eficazes de combate a Bolsonaros e Trumps sem continuar sendo megafone de caça-cliques e mesmo ajudando a eleger esse tipo de populista (Mello, p.165).



domingo, 27 de setembro de 2020

Um ministro pastor e a urgência de escaparmos das armadilhas perversas do bolsonarismo

No dia 24 de setembro, Milton Ribeiro, atual ministro da educação, em entrevista ao Estadão, deu vazão ao festival de obscurantismo, preconceito e reacionarismo típicos desse desgoverno. Entre as muitas barbaridades ditas por Milton Ribeiro, foi a fala homofóbica, criminosa é bom lembrar, que logo causou alvoroço nas redes sociais. Entendo a indignação, a revolta, principalmente de membros da comunidade LGBTQI+, mas gostaria de fazer uma reflexão sobre o ocorrido que talvez possa soar como falta de empatia, então peço paciência e que acompanhem o meu raciocínio. 

Pergunto honestamente: qual a surpresa, a novidade, de um pastor conservador que foi escolhido para fazer parte deste governo justamente por ter esse perfil, se manifestar de maneira homofóbica? Já não era previsível uma postura preconceituosa e obscurantista? Já não era de conhecimento de todos que essa era a sua posição sobre o tema? Repito, qual a novidade de sua declaração associando homossexualidade à famílias desajustadas? Foi ofensivo? Por óbvio que sim. Mas é mais do que isso: desde que o STF equiparou atos de homofobia e transfobia ao racismo, trata-se de crime. E é nesse território que a declaração do senhor Milton Ribeiro deveria estar sendo tratada. 

No entanto, a maneira como jornalistas, políticos de oposição e militantes nas redes sociais passaram a dar destaque a essa fala, fez parecer que nada mais havia de problemático na fala do ministro. Além disso, ao jogar todo o foco da entrevista para a declaração homofóbica, pareciam não entender que aquela declaração tinha alvo certo e não éramos exatamente nós - independente de inclinação partidária, que somos comprometidos com uma sociedade mais justas, igualitária e democrática -, mas a base fundamentalista de apoio do bolsonarismo, suscetível aos apelos desse tipo de discurso moralista e criminoso, hipocritamente disfarçado sob uma suposta liberdade religiosa. 

E com isso não estou repetindo o argumento de cortina de fumaça, pois não creio que seja o caso. Essa pauta moralista, obscurantista, fundamentalista é o coração do bolsonarismo. Damares, Ribeiro e tantos outros que hoje compõem este governo estão onde estão justamente por serem homofóbicos, machistas, racistas. Portanto, quando jornalistas, políticos de oposição e militantes das mais variadas causas de minorias reagem de maneira contundente a essas falas - e certamente eu entendo os motivos e razões dessas reações - parece que caímos numa armadilha. Quanto maior for a reação, quanto mais repetimos que essas figuras são homofóbicas, transfóbicas, e tudo que, de fato, são, mais eles conseguem mobilizar suas bases em sua suposta cruzada contra o mal

Na mesma entrevista em que Milton Ribeiro é terrivelmente homofóbico, ele também dá declarações, estas sim surpreendentes, na medida em que atestam contra o próprio ministro, e que deveriam ter sido motivo suficiente para pedirmos o impeachment desse senhor. Segundo o ministro, a desigualdade no contexto escolar, escancarada pela pandemia, não é de responsabilidade do MEC. Também não seria responsabilidade do MEC garantir acesso à milhares de alunos hoje sem internet e equipamentos adequados para seguir no ensino remoto. Além disso, as discussões sobre o retorno às aulas presenciais não seriam tema para o MEC. Insisto: enquanto a declaração homofóbica era o esperado do pastor, escolhido a dedo por representar essa pauta cara ao bolsonarismo, dizer que o ministério que comanda não tem nenhuma responsabilidade com os principais temas relacionados a esse ministério, além de demonstrar total desprezo pela Constituição Federal e pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) parece ser uma confissão de que o ministro não está cumprindo suas funções. 

Infelizmente os pedidos de impeachment que foram encaminhados na sequência da publicação da entrevista não foram por esse caminho, preferiram justificar o pedido no crime de homofobia. Considero um equívoco estratégico que pode custar muito caro. Parece que não entendemos ainda que não estamos lidando com um governo como outros que o precederam em anos recentes. Estamos diante de um governo que espezinha os direitos humanos, que faz apologia a torturadores e ditadores, que despreza a democracia, que não respeita as constituições, que flerta com golpe dia sim e outro também. 

A base extremista de apoio a Bolsonaro já pediu o fechamento do STF em diversas ocasiões. Bolsonaro já disse que devera indicar um juiz terrivelmente evangélico para ocupar a vaga de Celso de Melo, que se aposenta agora no final de outubro. Fico imaginando as consequências de um possível pedido de impeachment do ministro da educação por homofobia passar no STF. Seria a desculpa perfeita para o setor mais obscurantista do governo se radicalizar ainda mais. Gabinete do ódio, teorias conspiratórias e afins cairiam matando sobre o STF. 

Por outro lado, um pedido de impeachment justificado em confissão de que o ministro não está disposto a cumprir o que a legislação educacional e a Constituição Federal o obriga, a saber, coordenar as políticas educacionais, garantir auxílio técnico e financeiro para estados e municípios no enfrentamento da pandemia, garantir condições de acesso e permanência para alunos na escola, não daria espaço para que a base fundamentalista pudesse fazer o seu discurso de perseguição - o ministro-pastor estaria sendo sofrendo impeachment porque desafiou a doutrinação da esquerda marxista gayzista e sei lá mais quanta besteira são capazes de elencar. É só dar uma olhada nos comentários nas redes sociais dos apoiadores radicalizados e fundamentalistas do governo às manchetes que deram destaque à declaração homofóbica do ministro. No meio da confusão, mesmo quando se tentou mostrar o absurdo do ministro da educação se eximir de qualquer responsabilidade com a educação, seus defensores já estavam no modo ataque aos ateus, gayzistas, destruidores da família, perseguidores de cristãos. Não foi por acaso que Bolsonaro saiu com aquela história de cristofobia no discurso da ONU, essa será a frente a ser explorada nas eleições de 2020 e 2022 e figuras como Damares e Milton Ribeiro serão peças chaves dessa cruzada

Certamente nós enfrentamos um dos momentos mais difíceis da política brasileira desde o fim da ditadura civil-militar que teve início com o golpe de 1964. E neste momento, além de escolhermos o lado correto a estar é necessário também saber escolher quais batalhas devemos lutar, sem perder de vista a guerra na qual estamos. Engana-se quem ainda acredita que o governo Bolsonaro age sem uma estratégia. Engana-se quem pensa que a pauta moralista fundamentalista obscurantista é cortina de fumaça. Mas engana-se também quem ainda não entendeu que aceitar as batalhas nos termos que eles colocam é deixá-los jogar em campo favorável. 

Entre todas as mentiras pronunciadas por Bolsonaro no discurso da ONU, uma verdade, por mais que nos desagrade, não pode passar despercebida: a sociedade brasileira é conservadora. O crescimento exponencial do número de pessoas que se declaram evangélicos - das mais variadas denominações evangélicas - não pode ser ignorado por aqueles que buscam uma sociedade mais inclusiva, mais justa, mais igualitária. Ou nos esforçamos para entender o jogo de palavras que hoje é feito pelo bolsonarismo, ou vamos continuar perdendo terreno e perdendo direitos que foram tão difíceis de serem conquistados. Na boca de bolsonaristas, estado laico é sinônimo de estado ateu. Ditadura - principalmente os 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil - é a verdadeira democracia. Povo, é quem  se identifica com o credo bolsonarista. Quem luta contra homofobia é defensor de pedófilo e assim por diante. O grau de perversão da linguagem operado pelo bolsonarismo é proporcional a perversão moral e ideológica que eles pretendem estabelecer na sociedade. É nesse contexto que as reações contra a fala homofóbica do ministro, de jornalistas, políticos de oposição e ativistas, me preocuparam. Mais do que identificar qual de suas declarações foi pior ou mais ultrajante, é questão de sobrevivência identificar qual a melhor estratégia para enfrentarmos o retrocesso que eles representam, sem cairmos nas armadilhas bolsonaristas.

Quanto à declaração criminosa de Milton Ribeiro e tantas outras já feitas por Damares e pelo próprio Bolsonaro, caberia a justiça fazer cumprir nossas leis. Se esse fosse o entendimento de todos, Bolsonaro teria saído preso do Congresso Nacional o dia em que defendeu Brilhante Ustra, um torturador, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mas em falta da justiça, aquele dia mais do que viabilizar a eleição de Bolsonaro, me parece que a garantiu. Muito pouco, desde então, nos restou. E se não ficarmos atentos, em breve nem mesmo as palavras poderão nos socorrer.

domingo, 6 de setembro de 2020

Dependência e morte: quando a pátria é golpeada diariamente por uma mula manca

Em março, em texto com título O Golpe já está em curso, eu escrevi: "até quando o país aguenta os desmandos de Bolsonaro, seus filhos e ministros aloprados? Até quando o parlamento terá energia para apagar os incêndios e limpar a lambança que MPs e Decretos têm causado dia sim e outro também? Até quando decisões isoladas do STF terão condições de barrar o crescente autoritarismo mal disfarçado de Bolsonaro?"  

 
Desde então as coisas pioraram consideravelmente. Henrique Mandetta, que naquele momento virava colaboracionista do negacionismo de Bolsonaro, deixou o cargo de ministro da saúde. Entrou Nelson Teich. Saiu em menos de 30 dias. E seguimos sem ministro da saúde, com o ministério ocupado por militares despudorados, insensatos e ignorantes, que se prestam ao ridículo papel de sustentar o desgoverno delirante e delinquente de Bolsonaro. Ultrapassamos a marca de 125 mil mortos por Covid-19. Assistimos na TV e nas redes sociais à perseguição descarada de opositores do governo por órgãos oficiais, sejam eles jornalistas, humoristas ou mesmo governantes eleitos, como o caso do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Eleito com apoio da família Bolsonaro, o governador se transformou em desafeto do clã e agora sofre as consequências das ações desconcertantes de uma PGR ajoelhada aos desejos sádicos e criminosos da familícia que tomou o Planalto de assalto. Os desatinos e rompantes autoritários de Bolsonaro já não encontram resistência institucional. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, depois de assinar incontáveis e inúteis notas de repúdios, afirmou no programa Roda Viva, não ver crimes nas ações de Bolsonaro e, por isso, parece repousar em paz sobre a pilha de pedidos de impeachments que chegaram nos últimos meses em suas mãos. Dias Toffoli, ministro do STF, afirmou essa semana não ter visto nenhuma ação contra a democracia por parte de Bolsonaro. Parece que para o ministro, o presidente da república está liberado para apoiar atos que atentam contra o estado democrático de direito e pedem a instauração de uma ditadura, isso no meio de uma pandemia, promovendo aglomeração.  A mais nova tentativa de Bolsonaro de se igualar a seus pares autoritários mundo afora foi enfiar no texto da Reforma Administrativa proposta de alterar artigos da Constituição de modo a ampliar consideravelmente seus poderes de destruir o Estado brasileiro, extinguindo autarquias, fundações e cargos com uma canetada. A Secretaria de Comunicação da Presidência (SECOM) que em março promovia a campanha o #BrasilNaoPodeParar, agora reproduz e promove falas antivacinas do maníaco do Planalto. Imitando o chefe supremo, mente diariamente nas redes sociais, e cada dia torna mais difícil a tarefa da imprensa de separar fatos de ficção. Se não fosse a cafonice estética e a ausência completa de senso de humor das postagens do perfil oficial da secom, não teríamos critérios para escapar da narrativa ficcional bolsonarista. 

Como bem disseram Daniel Ziblat e Steven Levitsky, as democracias contemporâneas não são golpeadas com tanques nas ruas. O processo se dá de modo silencioso. Mas isso também não deveria ser novidade para ninguém. O fascismo italiano e nazismo também foram se consolidando de forma silenciosa, conformando os espíritos, anestesiando, enquanto a vida seguia. Em Léxico familiar, romance de Natalia Ginzburg, cujo pano de fundo é a ascensão e consolidação do regime fascista de Mussolini, somos confrontados com o modo sorrateiro que o terror vai mostrando seus dentes. Assim Natalia nos conta que os pais da cunhada foram presos "como muitos judeus infelizes que não acreditaram na perseguição. (...) -Nós somos pessoas pacatas! Ninguém faz nada contra pessoas pacatas! (...) -Quem vai bulir com a gente? Somos pessoas pacatas. Desse modo, os alemães os levaram, ela, a mãe, baixa, simples e alegre, doente do coração, ele, o pai, pesado, pacato." E em outro trecho, de forma mais dura, lemos o seguinte:

"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo".

Até quando vamos seguir fingindo que nada está acontecendo? Bolsonaro não é incompetente, não podemos seguir chamando-o de despreparado, apesar de toda sua limitação intelectual e de toda sua decrepitude moral, ele se mostra cada dia mais confortável e mais livre para colocar em prática o seu projeto autoritário de destruição. Bolsonaro pode ser uma mula manca, um político insignificante que veio do baixo clero, que por muito tempo foi um peso morto na política brasileiro. Mas hoje é essa mula manca que está sentada na cadeira da presidência golpeando diariamente a nação. Bolsonaro apequena o Brasil, apequena as instituições, envergonha o povo. Mas os coices diários do antipresidente são provas irrefutáveis dos muitos problemas que, como nação, nunca fomos capazes de superar: o racismo, o patrimonialismo, a promiscuidade entre interesses privados e públicos, uma elite com síndrome de viralatismo que nos fazem reféns de uma condição de dependência e morte.  

Até quando?

sábado, 5 de setembro de 2020

Dica de leitura: Léxico familiar

 

O que é familiar para você? Que palavras, quando você ouve, acionam suas memórias e seus afetos? Escangalhar, na verdade, escangaiá, é uma palavra que me leva para perto da minha avó materna. "menino, não faz isso, você vai escangaiá as minhas flores" - ouço ela dizendo para os netos. "Eita credo, o só sabe escangaiá carro, não tem cuidado", falando do meu tio. E se era para falar dos meus tios, ela ia dizendo: "as criança vão chegar daqui a pouco", as crianças de 40, 50, quase 60 anos...

Mas eu repito a pergunta? O que é familiar para você? Que palavras, quando você ouve, te transportam  no tempo, para décadas atrás em um segundo? Que expressões possuem a capacidade de te fazer sentir em casa? Em Léxico familiar, de Natália Ginszburg, depois de algumas dezenas de páginas, você começa a se sentir em casa. E as repetidas expressões dos pais, dos irmãos e dos amigos vãos nos tornando íntimos dos personagens, despertando nossas simpatias e antipatias. 

Natalia nos conduz pelas memórias de uma família italiana, de origem judia, num período que vai do entreguerras aos primeiros anos pós segunda guerra. Da infância à vida adulta, somos conduzidos por uma narradora que pouco ou nada nos fala de si. O que sabemos dela é o que os outros dizem. São as palavras e expressões dos outros que, de algum modo, nos colocam no lugar familiar da narradora. O surgimento do fascismo, o regime fascista, a perseguição aos judeus, as prisões de familiares e amigos, são episódios que aparecem na narrativa para nos sintonizar temporalmente, mas que não são explorados amiúde. Afinal, esses fatos marcam justamente os distanciamentos, os momentos vividos na solidão, nos quais a possibilidade de construir algo familiar estava interditada. Também podemos pensar que, sobre esses episódios, o silêncio, o não dito, a ausência de palavras, diz muito mais do que qualquer palavra seria capaz de dizer sobre a violência sofrida, o medo sentido, as vidas interrompidas.

Em alguns momentos, a mesmice do cotidiano pode adquirir um peso insuportável, quando nos faz perceber que a vida segue, mesmo enquanto há uma guerra, enquanto pessoas morrem, enquanto um ditador governa. Em certo momento lemos: 

"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo".  

Impossível ler esse trecho sem nos perguntar o que estamos fazendo nós, agora, quando mais de 125 mil brasileiros morreram, no meio de uma pandemia, com um governo claramente autoritário usando a máquina pública para perseguir humorista, jornalista? Que páginas escreveremos sobre nós, nesse momento turbulento da nossa história, quando olharmos para trás? Sim, a vida segue, como grosseiramente disse Bolsonaro, em mais uma demonstração de sua incapacidade de demonstrar qualquer tipo de solidariedade com as milhares de famílias que choram seus mortos. A vida segue, e a banalidade dessa constatação pode pesar muito. E nunca os amigos, a família, os nossos cantos de aconchego foram tão importantes para que possamos suportar esse peso. Uma ligação, uma foto, uma reunião ainda que cada um num lugar, a possibilidade de compartilhar, ser com o outro, eis a grande potência que podemos aprender com Léxico familiar.

O livro de Ginzburg pode nos parecer, num primeiro momento, uma narrativa despretensiosa sobre memórias de uma família italiana de classe média, com suas manias, seus preconceitos, seus privilégios, numa longa reunião de domingo. Mas também pode ser lido como um elogio à amizade e ao afeto, duas formas poderosíssimas de resistência em tempos sombrios.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

É preciso parar de chamar Bolsonaro e seus ministros de incompetentes

 "Nunca tivemos um governo tão inepto no Brasil. Pastas essenciais, como Educação, Saúde, Relações Exteriores, Meio Ambiente e Direitos Humanos foram confiadas a pessoas incompetentes." (Janine, Renato, Diálogos urgentes, Revista Piauí)

Assim começa o artigo do Renato Janine, publicado ontem (26/ago/2020) na Revista Piauí. E para mim começa errado. Não podemos mais, principalmente depois de revelada aquela trágica reunião ministerial de 22 de abril, insistir em chamar de incompetente esse bando. Ali, naqueles diálogos torpes, com linguajar baixo, parecendo conversa de penitenciaria, deveria ter ficado claro para todos que se opõem a esse desgoverno, que não se trata de incompetência. Ricardo Salles, Damares Alves, Weintraub, Ernesto Araújo e agora Eduardo Pazuello, não são incompetentes. Podem ser certamente acusados de mau-caratismo, de ser limitados intelectualmente, em alguns casos, antiéticos, hipócritas, mentirosos, mas não incompetentes. 

                                   Imagens da Reunião de 22 de abril - jornal O Globo
 

Devemos nos lembrar da fala de Bolsonaro nos EUA, quando disse que sua missão era desconstruir muita coisa. Os seus ministros, todos eles, são tarefeiros colocados em seus postos com a clara missão de desconstruir. Podemos entender também esse "desconstruir" como "destruir", "desmantelar", "aniquilar". Salles tem sido extremamente competente em desmantelar os órgãos de proteção ambiental. Damares, competentíssima em destruir e aniquilar projetos e ações em prol dos direitos das mulheres. Quer competência maior do que a de Pazuello em deixar morrer centenas de milhares de brasileiros? Precisamos parar de chamar Bolsonaro e seus ministros de incompetentes e entender de uma vez por todas que o único projeto que Bolsonaro tem é o de destruição do Estado brasileiro

Bolsonaro é despreparado para governar? É verdade, mas também não é. Explico. Se mantivermos o sentido originário das palavras - que tem sido dia após dia atacado pelo ministério da verdade bolsonarista, a Secretaria Especial de Comunicação do Governo - então, sim, Bolsonaro é despreparado para governar. Mas entendendo que Bolsonaro criou, como bem disse Eliane Brum, a antipresidência, e por extensão poderíamos dizer o antigoverno, sua atuação tem sido muito competente nos últimos meses. Seus ataques à imprensa e aos profissionais do jornalismo têm contribuindo consideravelmente para minar a credibilidade que restava desse importante setor. Suas mentiras constantes tem estimulado na população uma incapacidade de distinguir fatos de ficção. Seu linguajar xucro continua sendo usado para aproximá-lo do homem comum, cidadão médio, desacreditado da política e de seus agentes falando difícil e, no fim do dia, todos acusados de corrupção. Bolsonaro é corrupto? É, mas o cidadão comum o vê com um igual, apenas mais um cidadão comum, cansado do sistema e que quando pode, tira sua vantagenzinha, sonega imposto, enfia a mãe, a sogra no imposto de renda, nada de mais, coisa de cidadão de bem...

Mas o artigo de Janine também comete outro erro. Prefere deixar "para outra oportunidade a discussão sobre o que levou uma maioria de eleitores a escolher tal caminho", a saber, votar em Bolsonaro, em nome da prioridade do dia, que seria a questão de "saber que possibilidades há de escapar dessa rota que colocou o Brasil na vanguarda da barbárie". Nesse tema, acredito que Ciro Gomes está certo ao dizer que não dá para sair dessa encalacrada sem entender por que caímos nela. Nesse sentido, a autocrítica dos governos e partidos que estiveram no poder no passado recente torna-se urgente, e não dá para deixar para depois. Essa autocrítica, no meu entendimento, tem muito pouco a ver com autoflagelo em praça pública e muito mais a ver com lavagem de roupa suja em casa. Ou seja, essa autocrítica deve ser feita da porta para dentro dos partidos que se viram embolados nas denúncias de corrupção. Mas só vale para partidos que abertamente condenavam corrupção. Ninguém espera que (P) MDB ou PP, embora sejam os campeões de corruptos e condenados, façam isso.

Que a Lava-Jato extrapolou todos os limites legais e razoáveis  na sua sanha por fama - sim, porque a essas alturas do campeonato também não dá continuar acreditando que Moro, Dallagnol e afins eram caçadores de corruptos - deveria ser consenso. Mas mesmo assim, não é possível fingir que não aconteceu nada. Não é possível seguir querendo que a população aceite a "narrativa" da perseguição pura e simples contra um partido. O erro do petismo em 2013 se repete ainda hoje: chamar o cidadão médio, despolitizado e que até então havia votado no PT, e que em 2018 votou em Bolsonaro, de fascista. Janine, em seu artigo, prefere dividir a responsabilidade do PT com todo o campo democrático*. Janine faria bem em ler o excelente livro da Rosana Pinheiro-Machado, Amanhã será maior, no qual ela analisa os acontecimentos de junho de 2013, e como o partido que então governava o país, não entendendo o que estava acontecendo - ou preferindo não entender, isso é por minha conta - optou por culpar os protestos pelo que se seguiu. Rosana faz um trabalho muito interessante de ouvir e tentar entender os motivos que levaram jovens, homens e mulheres de periferia a votar em Bolsonaro. Entender as falhas e brechas que o modelo de gestão petista deixou, dando espaço para que um sujeito como Bolsonaro pudesse se despontar como alternativa ou como um antissistema, não significa ignorar ou jogar fora os méritos dessa mesma gestão. Mas se não tivermos maturidade para enfrentar fatos como o de Lula dizendo que nunca banqueiros ganharam tanto dinheiro como em seu governo, talvez não haja saída para nós. 

Concordo com Janine, e também com Rosana Pinheiro-Machado, quando alertam para a importância do campo progressista, as Esquerdas, perderem o medo de falar sobre corrupção. De que essa seja uma pauta cara à esse campo político. Não dá mais para deixar a direita agir como se tivesse monopólio sobre essa pauta. Outro tema que precisa deixar de ser tabu no campo progressista é a Segurança Pública. Bolsonaro foi eleito se ancorando também nessa queixa da população, e o que está fazendo? É preciso ser hábil em mostrar para a população que as soluções de Bolsonaro não resolvem o problema. Que liberar venda de armas e munição não é solução para a questão da Segurança Pública. 

Também concordo com a urgência do diálogo, de uma frente ampla, que vá além dos limites da centro-esquerda, que seja uma frente democrática, contra o autoritarismo e a barbárie que Bolsonaro hoje encarna. Não sei se por mero desejo e necessidade de esperança, mas tendo a concordar com Janine que o núcleo duro de apoiadores de Bolsonaro está em torno de 15% da população e que, portanto, é o caso encontrarmos os outros 15%, que não são fiéis devotos do antipresidente, para o diálogo. Mas esse diálogo precisa, urgentemente, ser pautado por propostas concretas para as demandas reais da população. E é preciso ouvir a população. E se ouvirmos reclamações legítimas, se ouvirmos críticas que nos desagradem, precisamos aprender a aceitar e acolher, reclamações e críticas, e não empurrar quem fala para outro campo. 

Bolsonaro forjou sua eleição se apresentando como uma resposta para uma crise do sistema político brasileiro. Mais do que nunca, precisamos fazer política. Mas não a rasteira, dos ataques, das acusações, que puxa o tapete de quem está no mesmo campo. Precisamos de uma Política com P maiúsculo. Com projetos, com propostas factíveis, que saiba ouvir os anseios da população mais do que imaginar que sabe o que a população deseja. Os partidos são fundamentais numa democracia representativa, mas não podem ser fins em si mesmos; não podem colocar seus interesses acima dos interesses do povo, ou caducam. Lá em 2013, no início, as manifestações apartidárias, que foram erradamente apontadas como antipartidárias ou mesmo como apolíticas, manifestavam uma insatisfação com os partidos políticos que precisa ser ouvida. Desde a redemocratização do Brasil, muitos partidos se encastelaram, perderam qualquer conexão com as ruas - mesmo partidos que historicamente estiveram ancorados nas ruas - e passaram a servir  aos seus próprios interesses. É hora de sair dos gabinetes, das respostas prontas, do que se imagina que a sociedade quer e estar entre as pessoas, no dia a dia, a fim de representá-las de fato. 

A formação política do cidadão médio precisa ser levada a sério. A construção de uma nova ordem política, no meu entender, passa por uma valorização do poder legislativo, de uma compreensão mais ampla de sua função. Os partidos do campo progressista precisam entender que não adianta focar em eleger quadros no executivo - seja municipal, estadual ou federal - deixando o legislativo a deriva. A reforma política no Brasil é assunto para antes de ontem. Precisamos oferecer opções para a população, para que novamente se possa acreditar na política e em seus agentes como capazes de transformar a realidade. 

 

*"O campo democrático tende a achar que todos os seguidores de Bolsonaro são fascistas ou idiotas."

domingo, 16 de agosto de 2020

Torto Arado é aqui e agora no Quilombo Campo Grande

“Se eu for para a cidade eu morro logo, a minha natureza é trabalhar na terra. Quem é nascido e criado na roça não serve para a cidade não”. 

A afirmação acima poderia bem estar na boca de algum dos personagens de Torto Arado, mas é de um dos moradores do Quilombo Campo Grande, na cidade de Campo do Meio em Minas Gerais. Nos últimos dias, mais de 450 famílias vem sofrendo com a ação violenta da PM de MG, do governador do Novo, Romeu Zema, a fim de cumprir ação de reintegração de posse da área da antiga Usina Ariadnópolis, que faliu em 1996 sem pagar os direitos trabalhistas de seus funcionários. Segundo reportagem do Repórter Brasil, de novembro de 2018, há ainda uma dívida de quase R$ 400 milhões com a União, referentes a contribuições previdenciárias, FGTS e impostos federais, que foi negociada e parcelada por meio do Refis, programa do governo que facilita o refinanciamento de dívidas.

O empresário Jovane de Souza Moreira é quem pede o despejo das famílias. Segundo o advogado do empresário, o Jovane é um sujeito religioso, frequentador da Igreja Congregação Cristã no Brasil, que dá uma cesta-básica para algumas pessoas e faz trabalho voluntário em Alfenas. Já o filho, Jovane de Souza Moreira Junior, menos discreto que o pai, é apoiador de Bolsonaro e foi coordenador de campanha de Marcelo Álvaro Antonio - aquele do laranjal do PSL mineiro, atual ministro do turismo, defensor da regularização de cassinos no Brasil, conforme revelado na reunião ministerial de 22 de abril. E, segundo a página do Facebook de Jovane de Souza Moreira Junior,  ele é hoje pré-candidato a prefeito de Alfenas, pelo Avante

Segundo a matéria do Repórter Brasil, "o  principal argumento da família de Jovane para o pedido de urgência de despejo das famílias da área é um contrato firmado há dois anos com a empresa Jodil Agropecuária e Participações Ltda., cujo proprietário é João Faria da Silva, que já foi chamado de “maior produtor e exportador individual de café do país” por publicações especializadas. Entre os principais compradores dos produtos do empresário estão a Nestlé e a holandesa Jacobs Douwe Egberts (JDE), dona das marcas Pilão, Café do Ponto, Cacique, Café Pelé e Damasco. A JDE afirma que “não está comprando” café da marca Terra Forte, de João Faria." 

Boicote às marcas que compram grãos do João Faria da Silva - Terra Forte - iria bem, em tempos de ativismo digital. Afinal, "maior produtor e exportador individual de café do país" está patrocinando a ação de despejo das mais de 450 famílias. Por outro lado, também iria bem, em tempos de ativismo digital, a divulgação da produção das famílias do Quilombo Campo Grande. Uma delas é o Café Guaií, produção orgânica e agroecológica. Segundo informações do site de divulgação do café: "a produção orgânica de café em nossas áreas já é uma realidade, graças as parcerias com a Professora Leda do Instituto Federal do Sul de Minas e a Christian Aid, muitas famílias vem aprendendo na condução das lavouras orgânicas e, para romper com o uso de adubos de síntese química e produzir agroecologicamente hoje, a cooperativa organiza a compra de micronutrientes para o preparo de caldas naturais, e a compra de adubos orgânicos como torta de leguminosa, farinha de osso, composto orgânico, fosfato natural, potássio natural e esterco de gado para aplicação nas lavouras e produção de adubos vivos como o Bokashi e, além de viabilizar o retorno da palha do café da agroindústria para a lavoura."
 
Além da ação truculenta da PM-MG -  jogaram bomba de gás, atearam fogo no mato seco ao redor,  usaram helicóptero para jogar para cima das pessoas, levantar poeira, voando baixo para assustar, segundo relato de assessora de comunicação do movimento à Agência Brasil -, a reintegração se dá durante uma pandemia. Conforme também noticiou a Agência Brasil, "a Defensoria Pública de Minas Gerais avalia que a execução da ordem de reintegração de posse durante a pandemia colocou em risco os moradores do acampamento. “Fizemos todos os esforços para tentar suspender essa operação. Não é possível considerar, do ponto de vista até constitucional, com o princípio da dignidade humana, que, em um tempo dessa natureza, com mais de 100 mil mortos pela covid-19, uma crise sanitária de alta gravidade, seja realmente sensato fazer uma operação policial dessa natureza”, disse a defensora pública Ana Cláudia Alexandre Storch, da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais. Segundo ela, é “inconcebível” imaginar que tenha havido urgência que justificasse a ação."  
Imagem de Gean Gomes-MST - no site do MST

O caso do Quilombo Campo Grande é só mais um exemplo da realidade retratada por Itamar Vieira Junior em Torto Arado. Seja no sertão da Bahia ou no Sul de Minas Gerais, a questão da terra permanece uma chaga aberta no Brasil. Enquanto o valor social da terra não for maior do que os interesses econômicos, enquanto a indecente exploração de centenas e milhares de trabalhadores rurais for tolerada em nome do lucro de meia dúzia de famílias, esse país está condenado e seguir sendo esse retrato da desigualdade, da violência e da desesperança. Se a dívida de 400 milhões com a União não é motivo para desapropriar essas terras e entregá-las àqueles que hoje as tornam produtivas, tiram delas seu sustento e, portanto, delas vivem, me pergunto o que seria.

Todo apoio às famílias do Quilombo Campo Grande. Enquanto a injustiça nesse país não for vencida, Severos e Zezés precisam continuar fazendo as perguntas incômodas:

 "Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Souza Moreira, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dai retirávamos nosso sustento." (Junior, Itamar Vieira, Torto Arado, com adaptação minha).

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Bolsonaro me bloqueou

Eu sei que olhar para cara desse senhor não é nada agradável, ainda mais quando a gente lembra que ele ocupa a cadeira da presidência. Na verdade, não ocupa, pois no meio da pandemia, ele prefere ficar dando rolê de moto por Brasília, coisa de moleque arruaceiro que não tem o que fazer, a assumir seu papel. Parece que ele acha que não tem muito o que fazer no Planalto. Isso explica também suas viagens pelo Brasil, fazendo a única coisa que ele sabe fazer: campanha - ou seria só aglomeração mesmo?

Se já não fosse insano o suficiente o presidente da república usar seu perfil pessoal para, supostamente, divulgar ações do governo, a grande verdade é que o perfil de Bolsonaro no Twitter é pura fake news. Ele vive compartilhando vídeos de jornalistas mequetrefes dispostos a falar qualquer porcaria para defender o indefensável, como Augusto Nunes, Alexandre Garcia e outros de menor projeção. Além disso, fica compartilhando postagem da Secon, a secretaria de mentiras oficiais, como aquele indigno painel da vida. Vira e mexe ele também divulga umas fotos da PF (Polícia da Famiglia?) para dizer que continua preocupado em prender bandido...(os outros bandidos, claro!, não seus amigos milicianos, nem seus laranjas de estimação, muito menos seus filhotes aprendizes de corruptos). 

Aí a cidadã vai lá nas postagens do presidente lembrá-lo que ele não passa de um miliciano, corrupto, cínico e cretino; ou então desmentir aquela lorota de que o STF tirou os poderes do presidente e que as mais de 100 mil mortes e o caos do Brasil é culpa dos governadores e prefeitos; ou pedir que ele fale do que interessa: os cheques do Queiroz e sua mulher, Marcia, para a dona Michele Bolsonaro, e o que faz o presidente? Bloqueia a cidadã. 

Isso lá é atitude de um presidente da república? Parece menino mimado quando contrariado: a bola é minha, então, se não for pra jogar do meu jeito, ninguém joga. Será que foi coisa do Carluxo? Ficou nervosinho porque leu umas verdades sobre o papai? Ele não superou ainda a fase "meu pai é meu herói?" Os meninos do Bolsonaro devia nascer cantando Fábio Jr: "pai, você foi meu herói, meu bandido"...

Mas vamos falar de coisa séria: o bloqueio. Na verdade, Bolsonaro me bloqueou desde quando saiu vitorioso na última eleição. Passei dias e dias com um gosto amargo na boca, com uma sensação de luto. Foi a primeira vez que chorei por causa de um resultado de eleição. Passei meses levando um susto quando abria o jornal e lia "presidente Jair Bolsonaro". Que pesadelo era aquele? Perdi a esperança. Sentia raiva de pessoas conhecidas que, certamente, tinham digitado 17 na urna. O pior bloqueio que Bolsonaro me causou foi o de não conseguir entrar no elevador com mais pessoas, sem ficar me perguntando em quem eles teriam votado. Em estar no trânsito, e sempre que algum idiota fazia merda, ser tomada por uma onda de raiva e pensar: "só pode ser bolsonarista". 

Sim, Bolsonaro me bloqueou, mas foi muito mais do que no Twitter. Ontem, na verdade, quando descobri o bloqueio, me senti muito feliz. Foi um troféu. Eu consegui irritar o presidente! Ou seja lá quem for que cuida daquele perfil. Eu fui dormir querendo acreditar que, nem que tenha sido por um minuto, aquele senhor sentiu raiva de mim. Por que eu sinto raiva dele todo dia, todo momento que lembro da sua infeliz existência. Bolsonaro me bloqueou: quando olho para ele, não consigo enxergar uma pessoa. Vejo um robô, um zumbi, uma fake news ambulante, um pesadelo interminável. Estou bloqueada na minha capacidade de ter qualquer empatia com ele ou seus defensores.  

Desde de 2018, tenho tentando, alguns dias com mais sucesso, outros com menos, me livrar desse bloqueio. Tenho tentando, mas não tem sido fácil, enxergar humanidade em quem defende torturador, em quem vota em defensor de torturador, em quem, como um vírus, espalha ódio e estimula violência. Enxergar humanidade em quem insiste em agir como zumbi. O Twitter é o de menos. Ou talvez tenha sido um grande favor: não passarei mais raiva quando correr a tela do celular no Twitter. Quem sabe este bloqueio não me ajude a desbloquear o que realmente importa.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

A dificuldade de encontrar a justa medida em tempos de pandemia

Hoje cometi uma imprudência. Ou melhor me deixei levar pela hybris. Não vou fugir da minha responsabilidade, mas em minha defesa digo que ficar trancada dentro de casa a sei lá quantos dias, trabalhando na frente do computador o dia todo, com uma reforma no apartamento vizinho, com direito a marteladas e furadeira sem fim, e ainda ter que ler as asneiras, mentiras e desfaçatez desse governo é coisa para tirar qualquer um do prumo. 


Social, As Redes Sociais, Serviço De Rede Social 

imagem disponível em pixaby.com

Mas vamos ao meu pecado: resolvi escrever algumas verdades como resposta aos tweetes do excelentíssimo senhor presidente da república. Sim, confesso que da próxima vez irei me controlar. Mas não parei por aí. Resolvi responder a uma cidadã que, de maneira muito irônica - dava pra sentir o tom de voz, ou será que já estou pirando? - me chamava de "professora". Acho que porque a distinta senhora tem o nome da minha mãe. Deve ser por isso. Não fui mal educada. Tentei ter paciência. Tentei dialogar. Pra quê? 

É uma batalha perdida. Pessoas como ela se julgam acima do bem e do mal. Se julgam superiores à Ciência - que a cidadã insiste em escrever "siênçia". Fazem contorcionismo para distorcer tudo que o oponente diz ou escreve. Testam sua paciência até o limite do indescritível! Mas as coisas podem sempre piorar. 

Sim, de repente, em questão de poucas horas. Meu Twitter foi invadido por hordas de robôs ou zumbis - já nem sei quando se trata de gente mesmo ou máquinas programadas para repetir as mesmas sandices do governo, a verdade é que parece a mesma coisa. Várias notificações de criaturas do além curtindo as respostas da minha interlocutora - estou sendo generosa. Que arrependimento. 

Lição aprendida! Nos próximos dias, não irei abrir o Twitter logo de manhã. Lembrarei da necessidade de buscar a justa medida aristotélica: refletir sobre com quem, quando, por qual motivo, por quanto tempo, antes de digitar qualquer desaforo, por mais justo que ele possa ser, em termos absolutos...

domingo, 9 de agosto de 2020

Dica de Leitura: Torto Arado

"Um dia, meu irmão Zezé perguntou a o nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dai retirávamos nosso sustento." (Junior, Itamar Vieira, Torto Arado, p.185).

A resposta do pai aos questionamentos do filho Zezé não poderia ser mais dura nem mais fiel à realidade de tantas famílias de despossuídos nesse país gigante pela própria natureza, onde abunda-se riqueza, mas apenas alguns poucos, desde tempos já esquecidos, podem dela usufruir, eternamente deitados em berço esplêndido: "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento." "Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu".

Somos introduzidos às histórias de Torto Arado por uma cena cortante na sua simbologia: duas irmãs, crianças, movidas pela curiosidade infantil e instigadas pela interdição de mexer nos pertences da avó, se veem, de repente, marcadas pelo sangue que brota de suas bocas, dilaceradas por uma faca. A travessura de criança acaba por condenar uma das irmãs ao silêncio.

Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, filho da velha Donana, é curador e líder dos trabalhadores que vivem na fazenda Água Negra. Homem respeitado por todos; sua casa é sede das brincadeiras do Jarê, mas é também uma espécie de hospital para os males do corpo e da alma. Zeca e Salu, sua esposa, recebem e cuidam dos que chegam em busca de cura. O conhecimento das ervas e a intervenção junto aos encantados vêm de longa data, quando Zeca ainda era jovem e herdou a missão que sua mãe rejeitou. 

Embora muitas vezes Zeca Chapéu Grande possa nos parecer acomodado com a situação a que está sujeitado, ao trabalho sem salário, à morada precária, à apropriação por parte do fazendeiro daquilo que sua família produzia para o sustento próprio, pequenas ações, como sua vitória em conseguir que o prefeito construísse uma escola para as crianças de Água Negra e seu desejo de que seus filhos e as demais crianças tivessem uma educação, nos fazem ter esperança numa mudança daquela realidade.

Severo e sua prima Bibiana encarnam as mudanças que, tardiamente, chegam até os moradores de Água Negra. Aos poucos, a consciência da injustiça e da exploração a que estavam submetidos irá ganhar espaço entre as novas gerações, desafiando o sentimento de gratidão que mantinha os mais velhos presos à condição de escravizados mesmo décadas após a abolição. A revolta de Severo e sua formação política são bem construídas e nos falam da importância da ação coletiva, do papel de sindicatos e associações, da valorização e resgate da memória e da história como potência de transformação. Bibiana se torna professora, dá sequência ao sonho de Zeca de levar educação às crianças de Água Negra. 

Itamar nos apresenta personagens complexos e explora as contradições que nos constituem como humanos. Sem romantizar o povo negro, nos fala de violência de gênero e da condição das mulheres no trabalho e na casa. As personagens têm seus segredos e, por isso mesmo, não são planas. A profundidade do romance está em sua simplicidade e honestidade ao tirar do silêncio personagens que tiveram suas línguas, suas famílias, sua  história, por tanto tempo, decepadas.

Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, é uma leitura  daquelas que nos conecta com o Brasil, com os Brasis, principalmente aqueles dos cenários rurais, dos interiores, das gentes simples, sofridas, das gentes que ao longo dos séculos de história desse país permaneceram sem voz e sem vez. Torto Arado é potente na sua denúncia da permanência da escravidão e da exploração do povo negro, mas é também poético ao nos apresentar a riqueza do imaginário místico religioso dos encantados e encantadas do Jarê. É rico na descrição das paisagens do sertão baiano, seus animais, sua vegetação, mas também na descrição das marcas da vida no corpo dos trabalhadores e trabalhadoras que cultivam uma terra cujos possuidores insistem em deixar claro jamais poderá lhes pertencer. A história de Bibiana, Belonísia, Zeca Chapéu Grande, Severo, é a história de uma parte do Brasil que precisa ser contada, precisa ser conhecida, para que possamos, quem sabe, virar a página do racismo e da desigualdade na qual, em 2020, ainda nos encontramos.

*****

Agradeço a querida Fabiana Tonin que me presenteou com este livro! Na vida, há encontros que também são presentes. Considero o nosso, no ambiente do trabalho, um desses presentes. Como colegas de trabalho partilhamos projetos, angústias e alegrias na construção diária de uma educação pública de qualidade. E para além do trabalho, temos compartilhado muita conversa boa a partir da literatura. Em tempos de distanciamento, de pandemia e de pandemônio, sempre que possível faça-se presente através de um bom livro para aqueles que você ama! Dê livros de presente!

domingo, 19 de julho de 2020

Dica de leitura: Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem

"O que mais me deixava estupefata não era tanto as palavras que diziam, mas a maneira como as diziam. Parecia que eu não estava lá, em pé, na entrada  da sala. Falavam de mim e ao mesmo tempo me ignoravam. Elas me riscaram do mapa dos humanos. Eu era ausência. Um invisível. Mais invisível que os invisíveis, pois eles ao menos detinham um poder que todos temiam. Tituba, Tituba não tinha mais que a realidade que aquelas mulheres queriam lhe conceder. (...)
Tituba se tornava feia, grosseira, inferior, porque elas assim tinham decidido. Eu saí para o jardim e fiquei ouvindo seus comentários que provavam, enquanto fingiam me ignorar, o quanto tinham me examinado de cima a baixo." (Condé, Maryse, Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem).
 
Maryse Condé em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem, de 1986, nos convida a revisitar um episódio histórico, ocorrido nos EUA, no século XVII, e que já foi contado no cinema e no teatro: as bruxas de Salem. Sob forte influência do puritanismo, um vilarejo se vê diante da condenação de pessoas acusadas de bruxaria, na maioria mulheres. Entre elas estava Tituba, uma mulher negra escravizada, originária de Barbados. No entanto, nada mais sabemos sobre essa mulher. Os registros daquele triste episódio não tinham lugar para a história de uma mulher negra escravizada. E é esse o mote de Condé, em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem: dar voz a essa mulher invisibilizada, torná-la protagonista de sua própria história, ainda que numa obra de ficção.

O livro de Condé é um exercício de imaginação e de reparação. Nesse sentido, são suas provocações, seu desafio constante à historiografia oficial, seu esforço para trazer questões tão caras à academia em tempos mais recentes, seja na História ou nas Ciências Sociais, que tornam o livro uma leitura muito atual e, portanto, uma leitura necessária em tempos de Black lives matter.

Como literatura, em vários momentos a narrativa carece de verossimilhança. Tituba, como personagem, para além das contradições que nos fazem humanos, em alguns momentos não nos convence - pelo menos não me convenceu. Alguns diálogos soam artificiais, como o diálogo entre Tituba e Hester na prisão. Apesar disso, as temáticas abordadas são riquíssimas e nos desafiam a pensar o ontem e o hoje sem meias palavras. Ao mesmo tempo, a narrativa em primeira pessoa nos brinda muitas vezes com diálogos e descrições extremamente poéticos e bonitos.
"Peguei o hábito de atravessar a floresta a passos largos, pois cansando meu corpo, parecia que eu cansava também meu espírito e assim encontrava um pouco de sono. A neve embranquecia as trilhas e as árvores, com galhos nodosos que pareciam esqueletos. Um dia, ao entrar numa clareira, tive a impressão de chegar a uma prisão onde as paredes de mármore se fechavam ao meu redor. Eu podia ver o céu branco perolado por um buraco estreito acima da minha cabeça, e pareceu que a minha vida terminaria ali, envolvida naquela mortalha cintilante. Então, meu espírito poderia encontrar o caminho para Barbados?"
Em outros momentos, como já na abertura do livro, a denúncia das violências a que os negros e, principalmente, as mulheres negras, foram sujeitados durante o horror da escravização vem numa linguagem direta e potente, que nos acerta como um soco no estômago - palavras de uma participante do Literateia_Clube, do qual tenho o prazer de fazer parte e no qual discutimos o livro no último sábado.
"Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo."
Num primeiro momento, Tituba se recusa a aceitar o título de bruxa, afinal, seus dons eram usados para curar, para cuidar, enquanto aqueles que a acusavam de bruxaria com isso queriam associá-la ao mal, a satanás, ao demônio. É a própria Tituba que assim nos fala: "... nesta sociedade, eles dão à função de "bruxa"  uma conotação errônea. A "bruxa", se vamos mesmo usar essa palavra, corrige as coisas, endireita, consola, cura...".

E é justamente na acepção que Tituba dá ao termo bruxa que ela irá se reivindicar como "Bruxa Negra de Salém". Por um lado, foi na condição de bruxa que Tituba foi, momentaneamente, vista publicamente. Ou seja, foi a acusação de bruxaria que deu a Tituba uma visibilidade que até então lhe era recusada. Mas nem mesmo a condição de bruxa foi capaz de lhe garantir um lugar na História. Agora, na ficção, pelas mãos de Condé, Tituba subverte a fala daquela sociedade que não a reconheceu na sua identidade, que não a compreendeu e que condenou sua arte, não por ela mesma, mas tomando-a sob o signo de um Mal que lhe era estranho. Ao subvertê-la, Tituba assume, já a partir do título, a condução de sua própria narrativa. Trazendo sentidos, significados e um modo de ver e estar no mundo que lhe é próprio e que não estaria mais na dependência daquele outro que lhe negava humanidade. O espelho de Tituba está nos olhos de Condé - ou seria Tituba o espelho no qual Condé pôde ver refletido toda a problemática da mulher negra, não lá no século XVII, mas até os dias de hoje?

Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem é uma leitura que incomoda e só por isso já garante o seu lugar entre as boas leituras que deveriam compor esse tecido essencial que a leitura e a literatura, em especial, nos oferecem como possibilidade de nos humanizar mais e mais.
 

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