Em março, em texto com título O Golpe já está em curso, eu escrevi: "até quando o país aguenta os desmandos de Bolsonaro, seus filhos e ministros aloprados? Até quando o parlamento terá energia para apagar os incêndios e limpar a lambança que MPs e Decretos têm causado dia sim e outro também? Até quando decisões isoladas do STF terão condições de barrar o crescente autoritarismo mal disfarçado de Bolsonaro?"
Como bem disseram Daniel Ziblat e Steven Levitsky, as democracias contemporâneas não são golpeadas com tanques nas ruas. O processo se dá de modo silencioso. Mas isso também não deveria ser novidade para ninguém. O fascismo italiano e nazismo também foram se consolidando de forma silenciosa, conformando os espíritos, anestesiando, enquanto a vida seguia. Em Léxico familiar, romance de Natalia Ginzburg, cujo pano de fundo é a ascensão e consolidação do regime fascista de Mussolini, somos confrontados com o modo sorrateiro que o terror vai mostrando seus dentes. Assim Natalia nos conta que os pais da cunhada foram presos "como muitos judeus infelizes que não acreditaram na perseguição. (...) -Nós somos pessoas pacatas! Ninguém faz nada contra pessoas pacatas! (...) -Quem vai bulir com a gente? Somos pessoas pacatas. Desse modo, os alemães os levaram, ela, a mãe, baixa, simples e alegre, doente do coração, ele, o pai, pesado, pacato." E em outro trecho, de forma mais dura, lemos o seguinte:
"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo".
Até quando vamos seguir fingindo que nada está acontecendo? Bolsonaro não é incompetente, não podemos seguir chamando-o de despreparado, apesar de toda sua limitação intelectual e de toda sua decrepitude moral, ele se mostra cada dia mais confortável e mais livre para colocar em prática o seu projeto autoritário de destruição. Bolsonaro pode ser uma mula manca, um político insignificante que veio do baixo clero, que por muito tempo foi um peso morto na política brasileiro. Mas hoje é essa mula manca que está sentada na cadeira da presidência golpeando diariamente a nação. Bolsonaro apequena o Brasil, apequena as instituições, envergonha o povo. Mas os coices diários do antipresidente são provas irrefutáveis dos muitos problemas que, como nação, nunca fomos capazes de superar: o racismo, o patrimonialismo, a promiscuidade entre interesses privados e públicos, uma elite com síndrome de viralatismo que nos fazem reféns de uma condição de dependência e morte.
Até quando?
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