domingo, 6 de setembro de 2020

Dependência e morte: quando a pátria é golpeada diariamente por uma mula manca

Em março, em texto com título O Golpe já está em curso, eu escrevi: "até quando o país aguenta os desmandos de Bolsonaro, seus filhos e ministros aloprados? Até quando o parlamento terá energia para apagar os incêndios e limpar a lambança que MPs e Decretos têm causado dia sim e outro também? Até quando decisões isoladas do STF terão condições de barrar o crescente autoritarismo mal disfarçado de Bolsonaro?"  

 
Desde então as coisas pioraram consideravelmente. Henrique Mandetta, que naquele momento virava colaboracionista do negacionismo de Bolsonaro, deixou o cargo de ministro da saúde. Entrou Nelson Teich. Saiu em menos de 30 dias. E seguimos sem ministro da saúde, com o ministério ocupado por militares despudorados, insensatos e ignorantes, que se prestam ao ridículo papel de sustentar o desgoverno delirante e delinquente de Bolsonaro. Ultrapassamos a marca de 125 mil mortos por Covid-19. Assistimos na TV e nas redes sociais à perseguição descarada de opositores do governo por órgãos oficiais, sejam eles jornalistas, humoristas ou mesmo governantes eleitos, como o caso do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Eleito com apoio da família Bolsonaro, o governador se transformou em desafeto do clã e agora sofre as consequências das ações desconcertantes de uma PGR ajoelhada aos desejos sádicos e criminosos da familícia que tomou o Planalto de assalto. Os desatinos e rompantes autoritários de Bolsonaro já não encontram resistência institucional. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, depois de assinar incontáveis e inúteis notas de repúdios, afirmou no programa Roda Viva, não ver crimes nas ações de Bolsonaro e, por isso, parece repousar em paz sobre a pilha de pedidos de impeachments que chegaram nos últimos meses em suas mãos. Dias Toffoli, ministro do STF, afirmou essa semana não ter visto nenhuma ação contra a democracia por parte de Bolsonaro. Parece que para o ministro, o presidente da república está liberado para apoiar atos que atentam contra o estado democrático de direito e pedem a instauração de uma ditadura, isso no meio de uma pandemia, promovendo aglomeração.  A mais nova tentativa de Bolsonaro de se igualar a seus pares autoritários mundo afora foi enfiar no texto da Reforma Administrativa proposta de alterar artigos da Constituição de modo a ampliar consideravelmente seus poderes de destruir o Estado brasileiro, extinguindo autarquias, fundações e cargos com uma canetada. A Secretaria de Comunicação da Presidência (SECOM) que em março promovia a campanha o #BrasilNaoPodeParar, agora reproduz e promove falas antivacinas do maníaco do Planalto. Imitando o chefe supremo, mente diariamente nas redes sociais, e cada dia torna mais difícil a tarefa da imprensa de separar fatos de ficção. Se não fosse a cafonice estética e a ausência completa de senso de humor das postagens do perfil oficial da secom, não teríamos critérios para escapar da narrativa ficcional bolsonarista. 

Como bem disseram Daniel Ziblat e Steven Levitsky, as democracias contemporâneas não são golpeadas com tanques nas ruas. O processo se dá de modo silencioso. Mas isso também não deveria ser novidade para ninguém. O fascismo italiano e nazismo também foram se consolidando de forma silenciosa, conformando os espíritos, anestesiando, enquanto a vida seguia. Em Léxico familiar, romance de Natalia Ginzburg, cujo pano de fundo é a ascensão e consolidação do regime fascista de Mussolini, somos confrontados com o modo sorrateiro que o terror vai mostrando seus dentes. Assim Natalia nos conta que os pais da cunhada foram presos "como muitos judeus infelizes que não acreditaram na perseguição. (...) -Nós somos pessoas pacatas! Ninguém faz nada contra pessoas pacatas! (...) -Quem vai bulir com a gente? Somos pessoas pacatas. Desse modo, os alemães os levaram, ela, a mãe, baixa, simples e alegre, doente do coração, ele, o pai, pesado, pacato." E em outro trecho, de forma mais dura, lemos o seguinte:

"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo".

Até quando vamos seguir fingindo que nada está acontecendo? Bolsonaro não é incompetente, não podemos seguir chamando-o de despreparado, apesar de toda sua limitação intelectual e de toda sua decrepitude moral, ele se mostra cada dia mais confortável e mais livre para colocar em prática o seu projeto autoritário de destruição. Bolsonaro pode ser uma mula manca, um político insignificante que veio do baixo clero, que por muito tempo foi um peso morto na política brasileiro. Mas hoje é essa mula manca que está sentada na cadeira da presidência golpeando diariamente a nação. Bolsonaro apequena o Brasil, apequena as instituições, envergonha o povo. Mas os coices diários do antipresidente são provas irrefutáveis dos muitos problemas que, como nação, nunca fomos capazes de superar: o racismo, o patrimonialismo, a promiscuidade entre interesses privados e públicos, uma elite com síndrome de viralatismo que nos fazem reféns de uma condição de dependência e morte.  

Até quando?

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