Só há de ser, meu Deus, sodade. Sabe assim, quando dá aquela sensação de ter uma mão agarrando o peito da gente e que aperta, aperta, até a gente ir perdendo os sentidos? Costuma acontecer no cair da tardinha. Ainda mais no mês de maio. Quando nessas horas o céu vai pegando um colorido amarelo-avermelhado. Os olhos da gente ficam embaçados, e é de tanta beleza. Porque a gente estica o olho pro horizonte e parece até que é pintura. Aquele fundo azul que faz a alma doer. E quando tem nuvem, espalhadas, uma aqui, outra ali, parecendo capricho. Aí é assim. Dá sodade.
Delfim Moreira, MG (2025) |
A gente nem sabe bem dizer do quê. Ou se de quem. Mas que sente, sente. E é uma coisa toda misturada. Uma alegria com tristeza. Vontade de rir e de chorar. Uma coisa danada de esquisita. Se eu falo pode até ser que haja quem faça cara de desentendido. Mas há de ser o que sente também, ara. Quando a tarde vai caindo e ficando as paredes do mundo com essa cor alaranjada. Duvido de não. Mas é que parece que a gente fica meio mole, derretido. Com o olho parecendo rio manso, correndo doce. Tem gente que assusta. Fraqueza não costuma de ser apreciada.
É isso, tenho sodade no
peito. Doendo. E eu que nem sou de me ensimesmar... Acho que foi caso de um cheiro:
palha de pinheiro queimando. Alguém já estava sujando o fundo das panelas. E aí
eu vi a mãe minha. Logo ali, bem pertinho. Foi assim, uma visão, não de
fantasma, não, nada de dar medo. Dar medo? A mãe minha? Capaz! E foi como se
ainda agorinha ela estivesse ali, juntando uns gravetos mais palha de pinheiro
no terreiro, como fazia sempre. Vi o vestido dela. De golinha, botão e bolso,
num tecido claro, com umas florezinhas azuladas, que ela mesma cortou e costurou.
E quase vi o rosto dela. Quando ela ia se virar, eu fechei os olhos. Não sei
por quê. Mas fechei. Aí ficou tudo escuro. Abri os olhos seguidinho e ela já não
estava mais.
Sonhando de olho aberto, vê se
pode? E na minha idade... Será que eu tô morrendo? Os antigos, de primeiro,
falavam que na hora derradeira a gente vê mãe, pai, quem já partiu tudinho, vindo
buscar a gente. Se for vontade de Deus… Vai
que a dor no peito nem era sodade é nada. Vai que eu misturei tudo. Já não
sei o que se assucedeu depois nem antes. Foi a visão ou foi o aperto no peito? A
vontade minha, não é o que vale mais. Se for vontade Dele...
Pensando bem, por que que havia de
ser minha hora? Eu sei, não quero ser desobediente nem mal agradecido, longe de
mim. Mas é que ainda faço gosto de viver. Sempre fiz. Apesar de, o Senhor sabe,
o tanto de provação que botou no meu caminho, eu nunca que reclamei. Nunca fiz
caso nem de questionar. Nunca. Nunquinha. Dobrava os meus joelhos. Sempre tive
fé. E nunca deixei de apreciar esse mundo tão danado de bonito. Segui fazendo
gosto de presenciar os mistérios divinos. Aprendi com o pai meu, um santo na
terra - porque sim, ele foi homem de Deus, num há de ter bebido um copo d’água
sem fechar os olhos e elevar seus agradecimentos ao céu. Que a gente nem
precisa entender, precisa aceitar, era o que dizia ele. E aceitando, abraçar a
parte do quinhão que cabe a cada um com amor e fé. Ele apreciava com tanto zelo
as menores das criaturinhas de Deus. E eu assim também segui minha sina. Nem
me atrevo a me comparar ao pai meu. Longe de mim. Não teria nem base. Sei das
minhas fraquezas. Não sou santo. Mas não hei de ter desagradado o Senhor
gravemente. Ou será que desagradei?
Será que sodade é pecado?
Porque é como se a gente não aceitasse de todo a vontade de Deus. Como se a
gente desejasse um tempo que já não é. Como se, lá no fundo da alma, lamentasse
os acontecidos da vida. É isso a sodade? Querer algo que Deus já decidiu
que está fora do tempo? Sentir tanta falta de alguém, de doer o coração, como se
Deus tivesse errado de ter levado? Não me alembro do pai falar que sentia sodade.
E ele viveu bem uns cem anos. Eu, de menino, já admirava o povo antigo que
chegava longe nos anos. Queria também essa graça. Dizia, o pai meu, que
precisava ser bom. Ter coração puro. Só as pessoas boas de verdade é que viviam
de bastante. Deus recompensava nos anos. É verdade que teve um tempo eu
duvidei. Recompensava de quê? A vida acontece de ser, no mais das vezes, doída
demais. A gente acostuma. Aceita. Se apruma com Deus e vence. Viver mais, não
vai doer mais também? Ou será que chega um tempo que a gente já não sente? Era
essa a recompensa?
Credo! Deve de ser isso! Só pode!
Eu nem tinha me apercebido. Esses pensamentos ficam zanzando assim, sem modo,
na cachola da gente e acabei afrontando Deus. E agora? Eu, por mim, ainda aguentava
mais uns bons anos. Essa carcaça ainda está aprumada. Mas não deixo de notar
que estou ficando igual aquelas espigas de milho fora de época. Que os malungos
meus já foram quase tudo. Resta compadre Zé, comadre Fia, a Lourdes, o
Zequinha, mais eu. Se for de sua vontade, meu Deus… Que eu também não quero ficar
pra semente. Isso não! Ficar suzinho de tudo é triste demais. Parece que
o mundo da gente vai sumindo. Cada um que vai leva um pedacinho. Mas também,
quanto mais a gente vive, mais pequeno vai ficando. A gente vai virando passarinho.
Come pouco, anda devagarinho, com as canelas finas. Eu gosto dos passarinhos.
Sempre que gostei. Eu até tive um, passarinho. Não, gaiola não, que isso é maldade das grandes.
Tive, é modo de dizer. Ele nasceu
no terreiro da casa nossa. Cria do ninho na jabuticabeira. Eu ficava espiando,
quietinho. Vendo os pais passarinhos cercando mais ele de cuidado. Davam comida
no biquinho. Ele ficava lá, de bico aberto. Só esperando. Só. Foi ficando
espertinho. Coisa de um dia pro outro. Aí vieram as lições de voo. Eu fiquei
assustado. Meu coração senti inchado. Pesado. Um dia os pais meus também vão me
empurrar pra fora do ninho, pensei. E se eu não aprender avoar? Ia me estabocar
todo. Meu coração ficava dolorido, apertava, cada vez que o pai e a mãe passarinho
iam lá, com o bico, e empurravam o bichinho, tão pequeno, ainda só tinha
penugem. Umas penugens feinhas. Careceu de uns quantos dias para as penas
ficarem viçosas. E eu lá, enlevado, nem via as horas passar. Só olhando. Só. Parecia
uma coisa especial. E foi. Quando finalmente o passarinho filhote voou. Eu
fiquei tão leve. Quase avoei com ele. Eu era menino pequeno. Chorei.
Sodade daquele tempo.
Eita, de novo, meu Deus.
Essa sodade. Se for pecado, estou é bem enrolado. Há de ser só esse fim
de tarde. Só há. Já já que a noite se achega e passa. Ah, se não passa. Há de ser.
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