quinta-feira, 25 de junho de 2020

Como Schopenhauer e Nietzsche nos ajudam a entender a série Dark - Parte 2

" Não podemos fugir do nosso destino. Nem eu, nem você."
“A dor é seu navio, o desejo é sua bússola.”
Adam

Em "Como Schopenhauer e Nietzsche nos ajudam a entender a série Dark- Parte 1", finalizei o texto com a pergunta: Jonas poderá mudar o rumo da sua história ou está condenado a se tornar  Adam? Depois de pensar mais um pouco e de ver alguns vídeos, principalmente esse vídeo do canal Montoch, estou bastante inclinada a pensar que não formulei a pergunta correta. E se Adam não for Jonas? Na verdade, quando Adam apareceu e se apresentou como sendo o Jonas mais velho, eu não fiquei convencida. Ao ver a série pela primeira vez, minha intuição dizia que Mikkel/Michael seria o Adam (os dois personagens, Jonas e Michael, têm a marca no pescoço, como o Adam, e isso pode ter sido justamente para nos despistar...). Ao rever as duas temporadas, acabei me resignando com a ideia de que Jonas e Adam seriam a mesma pessoa. No entanto, neste momento tenho muitas dúvidas. Minha intuição me fez perceber, logo no começo da primeira temporada, que Mikkel seria Michael, então, talvez eu devesse confiar mais nela... E, talvez, a pergunta correta seja: Qual o destino de Jonas?

Crítica | 3ª temporada de Dark a transforma na melhor série da ...
Jonas e 'Martha' do mundo dois. Imagem de divulgação.

Com o final da segunda temporada e a revelação da existência de um mundo paralelo ou espelhado, de onde vem a "outra" Martha, pode ser que tenhamos na terceira temporada um confronto entre dois mundos, como eu havia sugerido no texto anterior, um mundo schopenhaueriano e outro nietzschiano. No entanto, a personificação desse confronto pode não ser Adam e Noah, como eu havia sugerido, mas Adam e algum personagem do mundo 2, que tenha uma relação com Martha 2, semelhante a que vemos entre Adam e Jonas. Aparentemente a nova Martha assumirá o protagonismo na última temporada e pode ser que ela encarne o espírito nietzschiano em oposição ao Adam-Schopenhauer. Sendo ela responsável por dizer "Sim" à vontade de potência, enquanto Adam busca uma forma de negação definitiva da vontade. Uma das coisas que me faz pensar nessa teoria, Martha-Nietzsche, é o teatro da escola da primeira temporada, no qual Martha interpreta Ariadne num monólogo cheio de simbologia e forte carga emocional. Espero que essa minha hipótese possa fazer algum sentido no final desse texto! Certamente muitas coisas podem mudar com as revelações da terceira temporada e minhas especulações podem se mostrar completamente equivocadas. De todo modo, há vários elementos que já foram exploradas nas duas primeiras temporadas e que pretendo desenvolver nesse segundo texto.

Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vezes e sempre se escoará outra vez, – um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas.”    Nietzsche, Vontade de Potência

Logo que a ideia de repetição e de um tempo circular aparecem na série, quem conhece alguma coisa de Nietzsche, nem que seja só de orelhada, é levado a pensar na doutrina do eterno retorno. Mas, também na filosofia de Schopenhauer, encontramos a ideia de repetição, e de um tempo circular, que parece nos colocar diante de um presente eterno:
"Podemos comparar o tempo a um círculo que gira incessantemente: a metade sempre a descer seria o passado, a outra sempre a subir seria o futuro; porém, acima, o ponto indivisível que toca a tangente seria o presente inextenso; (...) Ou, o tempo é uma torrente irresistível, e o presente é uma rocha contra a qual aquela se quebra, sem no entanto poder arrastá-la" Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, Vol. 1.
Dentro da concepção de mundo de Schopenhauer, o indivíduo é fruto de uma ilusão.Tudo que existe, todos os indivíduos, todos os seres, toda a natureza, são, em essência, uma coisa só, são Vontade. A vontade é o em si do mundo, a verdadeira realidade. Mas a vontade é cega e irracional, é vontade de vida, livre e sem direção, que quando se objetiva num indivíduo, quando é representação, está sujeita ao principio de causalidade, ao espaço e ao tempo, sendo, portanto, determinada. A existência individual é marcada por dor e sofrimento, uma vez que a vontade é puro querer, é sempre uma ausência, é sempre insatisfação e é infinita. A possibilidade de escapar desse sofrimento está associada a possibilidade de negar a vontade. Nessa negação da vontade residiria a liberdade do ser humano, porém não como indivíduo, pois como tal é determinado, dado que é a manifestação objetiva da Vontade. Para Schopenhauer, tal liberdade é possível, momentaneamente, através da contemplação ou fruição da obra de arte ou, definitivamente, através da atitude do asceta ou do santo. Aqui encontramos indícios de que Mikkel/Michael possa ser Adam. Várias vezes vemos Adam diante de um quadro na sede do sic mundus como se estivesse em contemplação. Por outro lado, Michael é um artista e a cena do suicídio se dá justamente no seu ateliê, onde encontramos diferentes pinturas abstratas. Aqui teríamos uma conexão importante entre os dois personagens. Além disso, Mikkel, fã do mágico Houdini, demonstra grande interesse pelo controle do tempo, sendo que sua fala é emblemática na primeira temporada: a questão não é como, mas quando.

Com Schopenhauer vemos uma repetição na espécie, que busca preservar-se eternamente, repetindo o mesmo ciclo, geração após geração, sendo o indivíduo apenas um meio, um instrumento, da espécie, já em Nietzsche, é a vida do indivíduo que pode se repetir uma e um milhão de vezes. Para Nietzsche, a vontade de potência, longe de indicar um princípio metafísico da realidade, é a própria realidade, é o próprio corpo do indivíduo. Nesse sentido, a filosofia nietzschiana é uma filosofia da imanência opondo-se a toda e qualquer forma de transcendência, considerada a fonte do niilismo passivo tão combatido por Nietzsche. O niilismo passivo é a negação da vida em favor do além mundo;  é a fuga na direção do transcendente, da alma, do pós-morte, do paraíso, de um consolo metafísico. O niilismo passivo deve ser vencido, substituído pelo niilismo ativo, com o surgimento do super-homem, fruto da liberdade do indivíduo capaz de afirmar, de dizer Sim, com todas as suas forças, à vontade de potência, tornando-se aquilo que é e disposto a reviver sua vida quantas vezes for preciso.

Em Schopenhauer e em Nietzsche, encontramos um mundo carente de razão, de sentido ou de rumo, um mundo sem finalidade, onde tudo acontece sem que haja um porquê. Diante dessa falta de sentido, e da necessidade de uma vontade cega e irracional, para Schopenhauer só é possível encontrar no mundo dor e sofrimento. E só a negação da vontade pode por fim a esse sofrimento. Nietzsche, por sua vez, defende a possibilidade de superação dessa falta de sentido através de uma existência criadora e afirmativa, afirmativa daquilo que, de forma imperativa se faz presente no mundo, a vontade de potência.

“O mundo antigo voltou para a assombrar como um fantasma que sussurra em um sonho como construir o mundo novo, pedra por pedra. A partir daí, eu sabia que nada mudaria. Que tudo ficaria como antes. As rodas dentadas giram em um círculo. Um destino ligado ao próximo. O fio, vermelho como o sangue, junta todas nossas ações. Ninguém consegue quebrar os nós. Mas eles podem ser cortados. Ele cortou o nosso, com uma lâmina afiada. Porém algo ficou para trás que não pode ser cortado. Uma ligação invisível." (Fala de Martha no monólogo em que interpreta Ariadne)

"Acho que somos um par perfeito. Nunca duvide disso.” (Jonas para Martha)

No mito grego, Ariadne é a guardiã da porta do labirinto onde está preso seu meio-irmão, o mostro Minotauro. Teseu é o herói que irá, com a ajuda de Ariadne, por ele apaixonada, matar o Minotauro. O fio de Ariadne é que permite ao herói encontrar o caminho até o meio do labirinto e, depois de matar o mostro, retornar para fora do labirinto. Após a vitória, Teseu acaba por abandonar Ariadne. Isso ocorreria, em algumas versões do mito, porque o deus Dionísio teria coagido o herói, em sonho, a abandoná-la.

Quando vemos Martha interpretando Ariadne na primeira temporada, somos levados a imaginar Jonas como Teseu, o herói que se aventura no labirinto-caverna. No entanto, na leitura de Nietzsche do mito grego, o casal Dionísio-Ariadne forma o par-perfeito. Dionísio é, para Nietzsche, o deus da alegria trágica que nos convida a afirmação da vida, através da criação da arte, da poesia, música, da dança. Ariadne ao dizer "Sim" a Dionísio, diz "Sim" a afirmação da vida, à vontade de potência.

Assumirá a Martha do mundo dois essa atitude? Será o Jonas do mundo um o seu Dionísio? Mas quem será o Teseu? E o Minotauro a ser derrotado? Antes da terceira temporada, tudo que posso fazer são hipóteses. Minha hipótese é que Adam, que é Mikkel/Michael, é o Minotauro a ser derrotado (mais uma pista sobre a identidade Adam-Mikkel/Micahel pode estar nos nomes: Adão, o primeiro homem, foi feito à imagem e semelhança de Deus; o significado no nome Michael é "quem é como Deus?"). Martha e Jonas seriam, de fato, um par-perfeito. Esse fim "romântico" poderia ser interpretado como uma vitória de Nietzshe sobre Schopenhauer, da afirmação da vida, fruto de uma escolha da Martha do mundo dois. Mas também poderia ser lido como um fim schopenhauriano, no qual o "amor" não seria mais do que uma ilusão criada pela natureza-vontade a fim de garantir sua perpetuação, ou seja, sua eternidade na reprodução da espécie. De todo modo, acredito que na terceira temporada, veremos a confirmação dessa circularidade e dessa repetição, de um destino que, inexoravelmente, deve se cumprir. Mas como isso acontecerá e qual das perspectivas filosóficas irá prevalecer, só saberemos no dia 27 de junho.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O Apocalipse de Dark e o Ocaso da Energia Nuclear

por Daniel Vasconcelos

Dark é, sem dúvida, uma série muito instigante. Sua narrativa através de uma concepção circular de tempo, em que passado, presente e futuro se misturam, deixa a nós, espectadores, atônitos, apreensivos e muitas vezes perdidos. Nada parece previsível por lá, mas ao mesmo tempo nada parece ser ou acontecer por acaso. O enredo é cuidadosamente construído, de forma que tudo se encaixa em algum momento. Além disso, a série parece dar o tempo inteiro elementos que podem ser pistas para o desenrolar da trama. Com isso, somos induzidos a procurar detalhes que nos ajudem a elucidar ou até antecipar o que vai acontecer.

Nesses últimos dias em que aguardamos a chegada do apocalipse de Dark, resolvi dar o meu quinhão para as especulações sobre a série. Vou falar de aspectos relacionados à energia nuclear e sua associação com a trama. Não vai ser tão sofisticado quanto se fosse sobre a disputa filosófica entre os pensamentos de Nietzsche e Schopenhauer, ou sobre teorias de viagem no tempo, buracos negros e multiversos. Mas pode ter o seu valor. A ver.

Exitoína · Não entendeu 'Dark'? Confira explicações e teorias ...
Usina de Winden pós apocalipse. Imagens de divulgação da série.

Não é nenhuma inovação afirmar que a usina nuclear da cidade de Winden é parte relevante do enredo da série. Logo na primeira temporada, com o desaparecimento das crianças, buscas são realizadas em todos os lugares, mas os investigadores não são autorizados a fazê-las no terreno da usina. Estaria-se escondendo algo? Outros elementos aparecem: os barris amarelos com lixo nuclear na caverna onde ocorrem as viagens no tempo; uma porta com o símbolo da usina, que ninguém consegue abrir, nem sabe o que existe lá dentro. Os mistérios da cidade de Winden parecem estar muito relacionados à planta geradora.

Mas há mistérios associados à usina desde a sua origem. Em 1953, quando Bernd Doppler iniciava os trabalhos para sua construção, são encontrados corpos de duas crianças no local da obra. Um escândalo! Ele atribui o ocorrido a uma conspiração das empresas de carvão e petróleo contra a promissora energia nuclear. Mas isso não impediria seus planos: seguiria com seu empreendimento a qualquer custo!

No mundo real, a energia de fonte nuclear historicamente desempenha um papel importante na matriz energética de diversos países. É uma fonte de eletricidade estável, eficiente e relativamente barata. Em tempos de combate ao aquecimento global, seria uma boa alternativa para substituir os combustíveis fósseis na produção de eletricidade. Mas o problema da destinação dos resíduos e os danos causados por acidentes marcaram negativamente a percepção da sociedade sobre o assunto.

Desde o acidente na usina de Fukushima, no Japão, em 2011, muitos países buscam desativar suas plantas nucleares, entre eles, a Alemanha. A usina ficcional de Winden estava nesse plano e em vias de ser descomissionada em 2020, não fosse o apocalipse. Mas aqui vale citar também que a Alemanha possui um movimento anti-nuclear que desde a década de 1970 se manifestava contra a construção de novas plantas. Além disso, o acidente de Chernobyl, na União Soviética, em 1986, espalhou radiação pela atmosfera da Europa e intensificou a rejeição de parte da sociedade alemã a essa fonte energética.

Dito isso, a menção à energia nuclear na série alemã parece sempre tomar uma conotação mais dark. A escolha em si do ano de 1986 como um dos que estão interligados nesse circuito temporal parece central na criação desse pano de fundo. As referências ao acidente de Chernobyl aparecem mais de uma vez no contexto da série, pelos personagens que estão no período. Há uma cena em que a adolescente Hannah Krüger oferece carona ao adolescente Jonas Kahnwald, recém chegado do futuro, para que ele não se expusesse à chuva ácida decorrente desse acidente.

Nesse mesmo ano, Claudia Tiedemann assume a direção da planta de Winden e toma conhecimento de um vazamento de material radioativo, após uma explosão ocorrida na usina meses antes. O incidente é mantido em segredo pela empresa, mas Claudia resolve verificar pessoalmente a situação. Ela vai até a caverna (aquela mesma), onde o material radioativo estava guardado e, a partir daí, a sucessão de acontecimentos a leva a viajar no tempo e ser um dos pivôs da trama.

Todos esses pontos me levam a crer que há uma mensagem sutil, quase subliminar, que Dark quer passar para o espectador, de que a energia nuclear não é uma coisa boa. Alguns personagens, como Jonas, parecem buscar a origem de todos os problemas, para, ao alterá-la, mudar o curso dos fatos e eliminar esses problemas. Talvez a construção da usina seja essa origem. Sendo assim, os corpos das duas crianças que foram colocados no local da obra poderiam até ser fruto de uma conspiração, mas não a imaginada por Bernd Doppler.

Não me espantaria se, na batalha entre os que querem a continuidade do que está acontecendo e os que querem mudar os acontecimentos, caso vençam os que querem mudar os acontecimentos, essa vitória envolvesse a eliminação da existência da usina nuclear de Winden. Assim, o apocalipse de Dark poderia ser trocado pelo ocaso da energia nuclear – ao menos nessa cidade.

domingo, 21 de junho de 2020

Como Schopenhauer e Nietzsche nos ajudam a entender a série Dark - Parte 1

Dark é uma série original alemã da Netflix, e sua primeira temporada foi lançada no dia primeiro de dezembro de 2017, a segunda em 21 de junho de 2019 e a terceira e última temporada irá estrear no dia 27 de junho de 2020. Para quem acompanha a série, as datas de estreia não foram escolhidas ao acaso, como nada em Dark parece acontecer por acaso, afinal, como ouvimos várias vezes, "tudo está conectado". Dark tem sido definida como uma série de drama, suspense e, principalmente, de ficção científica, afinal, na abertura da primeira temporada temos uma citação de Einstein, segundo a qual "a diferença entre passado, presente e futuro é somente uma persistente ilusão". Mas, para a minha leitura de Dark, gostaria de destacar os aspectos filosóficos que se fazem presente de forma bastante consistente nas duas temporadas e que, para mim, darão o ritmo da terceira e última temporada da série.

Quando vi as duas temporadas pela primeira vez, Nietzsche e Schopenhauer ficaram pairando na minha cabeça. Embora Schopenhauer não seja citado diretamente, alguns personagens em diferentes momentos parecem ecoar suas teorias. Ao rever recentemente as duas temporadas, enquanto espero ansiosa a terceira, tive ainda mais certeza de que a série é totalmente influenciada por esses dois filósofos alemães. Mas, aparentemente, eu estou falando obviedades, pois uma das roteiristas, Jantje Friese, já disse em entrevistas que há muitas ideias de Nietzsche e Schopenhauer que foram o ponto de partida para que eles começassem a pensar sobre viagem no tempo. E logo no início da primeira temporada, somos confrontados com uma noção circular do tempo, em oposição a noção de linearidade temporal, sendo que não é só o passado que altera o presente, mas também o futuro pode alterarar o passado. Aos poucos precisamos nos acostumar com a ideia de que passado, presente e futuro estão acontecendo simultaneamente.

Dark se passa em Winden, uma pequena cidade, fictícia, no interior da Alemanha. Coisas estranhas acontecem na aparente pacata Winden: crianças desaparecem. Em 2019, Mikkel Nielsen se perde de seus irmãos, Martha e Magnus Nilsen, e seus amigos, sumindo nos arredores das cavernas de Winden. Trinta e três anos antes, foi o tio dos Nilsen que desapareceu, Mads Nielsen, irmão de Ulrich Nilsen.  Além da família Nilsen, as famílias Kahnwald, Tiedemann e Doppler parecem ter suas histórias entrelaçadas por diferentes motivos. No sumiço de Mikkel Nielsen, além de seus irmãos, estavam presentes Jonas Kahnwald, Bartosz Tiedmann e Franziska Doppler.

Mapa das famílias de Dark disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/um-mapa-das-familias-de-dark-da-netflix-para-voce-nao-se-perder/

Ao longo da primeira temporada, outros dois adolescentes desaparecem e o corpo de um adolescente é encontrado na floresta em condições bastante estranhas. Tudo indica que é o corpo de Mads Nilsen.  Mas como 33 anos depois do desaparecimento esse corpo adolescente seria encontrado como se tivesse sido morto no dia anterior? Mistério! Um dos muitos que envolvem a trama de Dark. Além de mistérios e segredos, há muitos assuntos mal resolvidos entre os membros dessas quatro famílias: traições, ciúmes, mentiras, vinganças, ódios que se repetem ao longo das gerações. Passado e presente parecem mais do que conectados, parecem se repetir...
"Alguém que tenha sobrevivido a duas ou três gerações encontra-se na mesma disposição de espírito que um espectador que, sentado numa barraca de saltimbancos na feira, vê as mesmas farsas repetidas duas ou três vezes sem interrupção: é que as coisas estavam calculadas para uma única representação, e já não fazem nenhum efeito, uma vez dissipadas a ilusão e a novidade." (Arthur Schopenhauer, As dores do mundo).
Como muitos fãs da série já destacaram, em especial esse vídeo do canal Série Maníacos, Dark trabalha com muitos elementos da cultura alemã, seja fazendo referências diretas, como a Eisntein e a Nietzsche, ao artista Rubens e a obra A queda dos anjos rebeldes, na sede do sic mundus, ou ainda através de releitura de obras de artistas alemães. E nessa perspectiva faz todo sentido os filósofos Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche terem influenciado a série. Eles são dois grandes nomes da filosofia alemã do século XIX e desenvolveram uma visão bastante dark do mundo e da humanidade, afinal o primeiro é conhecido como o filósofo do pessimismo e o segundo como aquele que anunciou a morte de Deus. Rompendo com uma tradição racionalista e batendo de frente com a tradição judaico cristã, os dois filósofos nos colocaram diante da falta de sentido da vida e da força avassaladora das paixões e dos desejos.

Embora Nietzsche tenha sido um leitor e, até certo ponto, bastante influenciado pela filosofia de Schopenhauer, diante da falta de sentido da vida, os dois filósofos seguem caminhos distintos. Ao pessimismo metafísico e ao niilismo passivo de Schopenhauer, Nietzsche opõe um fisicalismo e um niilismo ativo: enquanto o primeiro propõe a negação da vontade, o segundo aposta na afirmação da vontade de potência;  se para Schopenhauer o indivíduo está determinado e, embora tenha a ilusão de fazer escolhas, suas ações são fruto de uma necessidade que se faz presente em toda a natureza, o homem torna-se livre quando é capaz de negar essa vontade cega que determina suas ações; para Nietzsche, ao contrário, o indivíduo encontra a  liberdade na afirmação da vida, da vontade de potência.

No último capítulo da segunda temporada, os diálogos entre Adam e Noah parecem um embate entre as duas visões de mundo:

Adam: Não podemos fugir do nosso destino. Nem eu, nem você.
Noah: Você não declarou guerra contra Deus. Mas sim contra a humanidade.
Adam: (...) O tempo está jogando seu jogo cruel conosco. Você acha que é seu destino me matar. Mas esse não é seu destino assim como o meu não é morrer aqui e agora. Somente quando nos livramos de qualquer emoção que somos livres de verdade. Somente quando alguém está disposto a sacrificar o que mais ama. (...) Não existe homem sem culpa. Nenhum deles merece um lugar no seu paraíso. Esse nó só pode ser desfeito ao ser destruído completamente. Não podemos fugir do nosso destino.

Como eu disse no início, a série tem muitos elementos de ficção científica, envolvendo viagem no tempo, buraco de minhoca, relatividade, partícula de Deus. No entanto, para mim, o núcleo duro da série gira em torno de uma das grandes questões da filosofia: somos livres ou nosso destino já está traçado? Jonas poderá mudar o rumo da sua história ou está condenado a se tornar o Adam?

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Ferramentas tecnológicas, metodologias de ensino-aprendizagem e as modalidades presencial e não presencial de ensino



Mais um texto que surge de angústias diante das recentes confusões que insistem em permear os debates sobre os caminhos da educação no contexto da pandemia do coronavírus. Para começar, ao adotar ensino remoto ou ensino não presencial, é preciso que fique bem claro que as instituições estão operando uma mudança de modalidade de ensino. A legislação brasileira hoje reconhece o ensino não presencial como uma modalidade e, para se referir a essa modalidade, correntemente usamos a sigla EaD - Ensino a Distância.

No entanto, as práticas consolidadas de EaD atendem a critérios e requisitos próprios dessa modalidade. Com isso quero dizer que um curso ou disciplina pensados originalmente para ser desenvolvidos na modalidade presencial serão totalmente diferentes de um curso ou disciplina pensados para ser desenvolvidos na modalidade EaD. E isso vai além das ferramentas tecnológicas a serem utilizadas ao longo do curso ou disciplina. Por isso tenho resistência em dizer que, no contexto da pandemia, o que as escolas estão fazendo é EaD. Podemos usar termos como 'ensino remoto' ou 'ensino não presencial', embora eu preferisse que ambas viessem acompanhadas do termo 'emergencial', para deixar bem claro que nossos cursos e disciplinas presenciais não foram pensados para ser EaD e que não faz sentido acreditar que do dia para a noite, como aconteceu em várias instituições e com vários professores, eles viraram EaD. Isso é rebaixar a modalidade EaD e o trabalho de profissionais e instituições sérios que têm se dedicado a essa modalidade. Ao marcar que é 'emergencial', podemos ganhar em clareza sobre o que realmente está acontecendo e o que estamos fazendo ou tentando fazer. 

É bastante possível e, de fato acontece, que, num curso presencial, o professor e os alunos façam uso de ferramentas como computador, notebook e celular para desenvolver atividades, pesquisas ou projetos. Um professor pode levar um vídeo para servir de ponto de partida para uma discussão em aula ou mesmo propor aos alunos que produzam um vídeo sobre um determinado assunto abordado em aula; professores e alunos podem se comunicar através de e-mail ou outras plataformas de comunicação. Mas o papel desempenhado por tais ferramentas num curso presencial e num curso não presencial é bem diferente. Além disso, o uso dessas e de outras ferramentas não pode ser confundido com metodologia de ensino. Não podemos esquecer que os livros, cadernos, lápis, lousa, são ferramentas tecnológicas, no limite, o meu corpo é uma ferramenta importantíssima no processo de ensino-aprendizagem.

Quando falamos de metodologias de ensino - sim, existem muitas e variadas metodologias - estamos pensando no como o processo ensino-aprendizagem será efetivado. Uma aula expositiva, trabalho em grupo, resolução de problemas, aulas invertidas, projetos de pesquisa, debate, estudo do meio, aula dialogada, dramatização, são exemplos de metodologias. Por trás de cada uma delas há muitas concepções importantes e que têm impactos no processo ensino-aprendizagem: epistemológicas (como aprendemos, como o conhecimento é construído); políticos e sociais (qual o papel da escola na sociedade, que aluno estamos formando), éticos (que valores estão sendo priorizados, formados). Desde o final do século XIX, há correntes de educadores que falam de metodologias que seriam "tradicionais" e a elas contrapõem metodologias "novas", "inovadoras", "ativas". São muitos os adjetivos. E, embora haja interferência entre a metodologia adotada e as ferramentas mais adequadas para desenvolver essa metodologia, ferramentas tecnológicas, modernas, inovadoras, não garantem por si só que teremos adotado uma metodologia não tradicional. Para ficar em um exemplo, se, no contexto da pandemia, uma instituição adota o uso de videoaulas gravadas e disponibilizadas para os alunos, esse seria um caso de algo muito tradicional: uma aula expositiva, na qual o professor, detentor do conhecimento, oferece ao aluno, passivo, esse conhecimento.

Ao adotar ensino não presencial emergencial, estamos adotando uma mudança de modalidade. Ainda que, dado o contexto, dificilmente possamos falar de EaD, no sentido que se entende EaD correntemente e respeitando todas as suas especificidades. Com essa mudança, se tivermos as condições para tal, ferramentas tecnológicas como computador, notebook e celular passarão a desempenhar um papel mais preponderante no processo de ensino-aprendizagem. Ao assumir um ensino não presencial emergencial temos que estar cientes de que, devido às condições de alunos e professores, isolados em casa, com demandas e rotinas alteradas pela emergência sanitária causada pelo coronavírus, muitas de nossas concepções metodológicas ou, de modo mais amplo, de educação, estarão comprometidas e até mesmo interditadas. Para ficar em um exemplo: para um professor cuja prática está totalmente marcada por uma concepção dialógica de educação – e isso implica muito mais do que sincronicidade – certamente sua prática estará comprometida. Sem poder ver seus alunos, sem conseguir estabelecer conexão visual com o grupo e o grupo entre si, certamente o diálogo possível será muito limitado - seja ele por chat ou outra ferramenta possível.

O meu ponto nesse texto não é atacar instituições nem profissionais, muito menos demonizar as alternativas que estão sendo construídas para enfrentarmos esse momento de exceção, mas apenas chamar a atenção de professores e demais profissionais da educação para a importância de termos mais clareza sobre os conceitos que adotamos. Pois o uso pouco rigoroso desses conceitos pode afetar diretamente as práticas que serão desenvolvidas ou que serão esperadas nesse contexto de exceção e, principalmente, no contexto pós-pandemia, comprometendo, portanto, o próprio processo de ensino-aprendizagem e os direitos dos alunos que agora queremos preservar.

Essas confusões conceituais podem também favorecer grupos e agentes públicos que tratam a educação como mais um serviço, cujos custos podem ser barateados. Se há instituições sérias que hoje se empenham em promover cursos na modalidade EaD de qualidade, sabemos que há muitas outras que vendem "gato por lebre", que não têm compromisso com os profissionais da educação e que estão de olho apenas em "fatias de mercado" ainda não exploradas. Mesmo no setor público, tanto na esfera Federal - Future-se - como em esferas estaduais - Novo Ensino Médio de São Paulo - encontramos projetos que flertam com a privatização, com "soluções" aligeiradas para os desafios relacionados a qualidade da educação, que apostam em "tecnologia" como se essas, por si só, fossem solucionar os nossos problemas. Por isso, devemos estar atentos às palavras e expressões escolhidas para nomear as práticas desses tempos de exceção e precisamos sempre nos perguntar sobre as possíveis consequências dessas escolhas.

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Agradeço aos amigos que me deram retornos com questionamentos, sugestões, correções e me ajudaram a amadurecer as ideias.


Sobre o que se fala

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