Mais um texto que surge de angústias diante das recentes confusões que insistem em permear os debates sobre os caminhos da educação no contexto da pandemia do coronavírus. Para começar, ao adotar ensino remoto ou ensino não presencial, é preciso que fique bem claro que as instituições estão operando uma mudança de modalidade de ensino. A legislação brasileira hoje reconhece o ensino não presencial como uma modalidade e, para se referir a essa modalidade, correntemente usamos a sigla EaD - Ensino a Distância.
No entanto,
as práticas consolidadas de EaD atendem a critérios e requisitos próprios dessa
modalidade. Com isso quero dizer que um curso ou disciplina pensados
originalmente para ser desenvolvidos na modalidade presencial serão totalmente
diferentes de um curso ou disciplina pensados para ser desenvolvidos na
modalidade EaD. E isso vai além das ferramentas tecnológicas a serem
utilizadas ao longo do curso ou disciplina. Por isso tenho resistência em dizer
que, no contexto da pandemia, o que as escolas estão fazendo é EaD. Podemos
usar termos como 'ensino remoto' ou 'ensino não presencial', embora eu
preferisse que ambas viessem acompanhadas do termo 'emergencial', para deixar
bem claro que nossos cursos e disciplinas presenciais não foram pensados para
ser EaD e que não faz sentido acreditar que do dia para a noite, como aconteceu
em várias instituições e com vários professores, eles viraram EaD. Isso é
rebaixar a modalidade EaD e o trabalho de profissionais e instituições sérios
que têm se dedicado a essa modalidade. Ao marcar que é 'emergencial', podemos
ganhar em clareza sobre o que realmente está acontecendo e o que estamos fazendo ou tentando fazer.
É
bastante possível e, de fato acontece, que, num curso presencial, o professor e
os alunos façam uso de ferramentas como computador, notebook e
celular para desenvolver atividades, pesquisas ou projetos. Um professor
pode levar um vídeo para servir de ponto de partida para uma discussão
em aula ou mesmo propor aos alunos que produzam um vídeo sobre um determinado assunto
abordado em aula; professores e alunos podem se comunicar através de e-mail
ou outras plataformas de comunicação. Mas o papel desempenhado por tais ferramentas
num curso presencial e num curso não presencial é bem diferente. Além disso, o uso dessas e de outras ferramentas não pode ser confundido com metodologia
de ensino. Não podemos esquecer que os livros, cadernos, lápis, lousa, são
ferramentas tecnológicas, no limite, o meu corpo é uma ferramenta
importantíssima no processo de ensino-aprendizagem.
Quando
falamos de metodologias de ensino - sim, existem muitas e variadas
metodologias - estamos pensando no como o processo ensino-aprendizagem
será efetivado. Uma aula expositiva, trabalho em grupo, resolução de problemas,
aulas invertidas, projetos de pesquisa, debate, estudo do meio, aula dialogada,
dramatização, são exemplos de metodologias. Por trás de cada uma delas há
muitas concepções importantes e que têm impactos no processo
ensino-aprendizagem: epistemológicas (como aprendemos, como o conhecimento é
construído); políticos e sociais (qual o papel da escola na sociedade, que
aluno estamos formando), éticos (que valores estão sendo priorizados,
formados). Desde o final do século XIX, há correntes de educadores que falam de
metodologias que seriam "tradicionais" e a elas contrapõem
metodologias "novas", "inovadoras", "ativas". São
muitos os adjetivos. E, embora haja interferência entre a metodologia adotada e
as ferramentas mais adequadas para desenvolver essa metodologia, ferramentas
tecnológicas, modernas, inovadoras, não garantem por si só que teremos adotado
uma metodologia não tradicional. Para ficar em um exemplo, se, no contexto da
pandemia, uma instituição adota o uso de videoaulas gravadas e disponibilizadas
para os alunos, esse seria um caso de algo muito tradicional: uma aula
expositiva, na qual o professor, detentor do conhecimento, oferece ao aluno,
passivo, esse conhecimento.
Ao adotar
ensino não presencial emergencial, estamos adotando uma mudança de modalidade.
Ainda que, dado o contexto, dificilmente possamos falar de EaD, no sentido que
se entende EaD correntemente e respeitando todas as suas especificidades. Com
essa mudança, se tivermos as condições para tal, ferramentas
tecnológicas como computador, notebook e celular passarão a desempenhar um
papel mais preponderante no processo de ensino-aprendizagem. Ao assumir um ensino
não presencial emergencial temos que estar cientes de que, devido às condições
de alunos e professores, isolados em casa, com demandas e rotinas alteradas
pela emergência sanitária causada pelo coronavírus, muitas de nossas concepções
metodológicas ou, de modo mais amplo, de educação, estarão comprometidas e
até mesmo interditadas. Para ficar em um exemplo: para um professor cuja prática
está totalmente marcada por uma concepção dialógica de educação – e isso
implica muito mais do que sincronicidade – certamente sua prática estará
comprometida. Sem poder ver seus alunos, sem conseguir estabelecer conexão
visual com o grupo e o grupo entre si, certamente o diálogo possível será muito
limitado - seja ele por chat ou outra ferramenta possível.
O meu
ponto nesse texto não é atacar instituições nem profissionais, muito menos
demonizar as alternativas que estão sendo construídas para enfrentarmos esse
momento de exceção, mas apenas chamar a atenção de professores e demais
profissionais da educação para a importância de termos mais clareza sobre os
conceitos que adotamos. Pois o uso pouco rigoroso desses conceitos pode afetar
diretamente as práticas que serão desenvolvidas ou que serão esperadas nesse
contexto de exceção e, principalmente, no contexto pós-pandemia, comprometendo, portanto, o próprio processo de ensino-aprendizagem e os direitos dos alunos que agora queremos preservar.
Essas confusões conceituais podem também favorecer grupos e agentes públicos que tratam a educação como mais um serviço, cujos custos podem ser barateados. Se há instituições sérias que hoje se empenham em promover cursos na modalidade EaD de qualidade, sabemos que há muitas outras que vendem "gato por lebre", que não têm compromisso com os profissionais da educação e que estão de olho apenas em "fatias de mercado" ainda não exploradas. Mesmo no setor público, tanto na esfera Federal - Future-se - como em esferas estaduais - Novo Ensino Médio de São Paulo - encontramos projetos que flertam com a privatização, com "soluções" aligeiradas para os desafios relacionados a qualidade da educação, que apostam em "tecnologia" como se essas, por si só, fossem solucionar os nossos problemas. Por isso, devemos estar atentos às palavras e expressões escolhidas para nomear as práticas desses tempos de exceção e precisamos sempre nos perguntar sobre as possíveis consequências dessas escolhas.
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Agradeço aos amigos que me deram retornos com questionamentos, sugestões, correções e me ajudaram a amadurecer as ideias.