"Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar que "eles" não podem repetir o que fizeram. Mas quem são "eles"? (Umberto Eco, O fascismo eterno)
Ontem fui "desafiada" por uma amiga, numa rede social, a postar filmes
que me impactaram em diferentes momentos da vida. O primeiro que
coloquei foi A onda. Várias reações, alguns comentários e senti
vontade de rever o filme. Foi um soco no estômago e fiquei feliz com a
escolha da postagem. Impossível ver esse filme e não associar com
acontecimentos recentes no nosso país e no mundo.
A onda é um filme alemão de 2008, dirigido por Dennis Gansel, que nos fala sobre um "experimento social" feito por um professor com alunos do ensino médio. O experimento em questão aconteceu nos EUA, em 1967, em Palo Alto, Califórnia, e consistia em uma simulação que tinha por objetivo mostrar aos estudantes o que é ter que seguir as instruções de um líder. Em entrevista para a Folha de São Paulo em 2008, o professor Ron Jones, na época com 68 anos, disse: "nunca faria isso de novo, coloquei os alunos em perigo". No filme de Gansel, as consequências são mais trágicas do que uma criança perdendo a mão
construindo explosivos, como aconteceu na vida real.
Faz já algum tempo que o termo "fascismo" tem sido recorrente nas redes sociais, em cartazes de manifestações de rua e até mesmo nos jornais de grande circulação. Depois do secretário de cultura do governo ter gravado vídeo claramente de inspiração nazista, escancarou-se os motivos para chamar o atual governo brasileiro de fascista. Bolsonaro sempre foi autoritário, embora tenha passado quase 30 anos como parlamentar, sempre mostrou desprezo pela democracia e pelas instituições democráticas, nunca fez questão de esconder seu racismo, sempre fez questão de exaltar a violência - seu 'herói' é um torturador -, nunca escondeu relações de sua família com a milícia - ele e os filhos, também deputados, empregaram familiares de milicianos e milicianos em seus gabinetes, deram medalhas à milicianos, defenderam publicamente "legalizar" milícia. Os elementos estiveram sempre lá, para que todos pudessem ver.
Bolsonaro e a maioria dos que se identificam com ele poderiam facilmente ser comparados ao garoto Tim: medíocre intelectualmente, solitário, ressentido com o mundo, desejando ser aceito, buscando pertencer a algum grupo, desejando se sentir especial. Encontrou tudo isso na onda. Foi o primeiro a se encantar pela proposta do professor. Desde início demonstrou o quanto havia gostado da ordem, da disciplina imposta pelo professor no experimento. Estava disposto a tudo para fazer parte de algo, para se sentir pertencente a um grupo.
No livro Amanhã vai ser maior, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que acompanhou por alguns anos jovens da periferia de Porto Alegre, desde as jornadas de junho de 2013 até o período eleitoral de 2018, nos mostra como o bolsonarismo foi capaz de seduzir garotos como Tim. Guardadas as devidas proporções, os garotos que participaram dos rolezinhos no final de 2013 ansiavam pela mesma aceitação, reconhecimento e pertencimento que Tim. Mas em 2016, grande parte daqueles garotos estavam encantados por Bolsonaro: "eles se referiam ao candidato como um símbolo, uma marca juvenil - tal como a Nike operava na época dos bondes" (p.166).
A contaminação fascista pode ter acontecido no Brasil de maneira rápida, mas não dá pra dizer que ninguém avisou que estava acontecendo. Como no filme, tinha muita gente tentando avisar que aquela história não iria acabar bem. A jovem Karo, criada numa família bastante libertária, num primeiro momento sente-se atraída pela onda, afinal, parece que os adolescentes vivem pedindo por limites. No entanto, a garota logo percebe os problemas daquele movimento, mas ela fica só. É angustiante estar no no lugar de Karo, vendo pessoas que amamos se afundando em ódio e violência, tentar avisar, tentar alertar e ser chamada de exagerada, ou acusada de estar com inveja do sucesso do movimento.
Os desfechos trágicos do filme nos colocam em alerta. Quantos terão o fim de Tim? Qual o tamanho do trauma causado por essa aventura fascista que o bolsonarismo trouxe ao país? Porque, sim, o bolsonarismo não é só um fenômeno autoritário, um "populismo de direita" como alguns têm chamado. O bolsonarismo pode, sem medo de errar, ser considerado um movimento fascista, apresentando algumas das características apontadas por Umberto Eco como marcas do Ur-Fascismo ou do fascismo eterno: culto a tradição, irracionalismo, frustração individual e social, racismo, machismo, populismo qualitativo, manipulação da linguagem (uso da novilíngua) (Cf. p.44-59: O Fascismo Eterno).
Estamos num momento dramático da nossa história e a união contra o fascismo se torna urgente. Que tenhamos a coragem de Karo para denunciar e lutar contra essa onda que ameaça nos carregar para mares tenebrosos e cheios de tormentas. Não queremos que "eles" repitam o que fizeram. Ou, prestando atenção no alerta de Umberto Eco e do próprio filme A onda, não queremos ser "eles". Será que ainda estamos em tempo de evitar o pior?
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