domingo, 19 de julho de 2020

Dica de leitura: Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem

"O que mais me deixava estupefata não era tanto as palavras que diziam, mas a maneira como as diziam. Parecia que eu não estava lá, em pé, na entrada  da sala. Falavam de mim e ao mesmo tempo me ignoravam. Elas me riscaram do mapa dos humanos. Eu era ausência. Um invisível. Mais invisível que os invisíveis, pois eles ao menos detinham um poder que todos temiam. Tituba, Tituba não tinha mais que a realidade que aquelas mulheres queriam lhe conceder. (...)
Tituba se tornava feia, grosseira, inferior, porque elas assim tinham decidido. Eu saí para o jardim e fiquei ouvindo seus comentários que provavam, enquanto fingiam me ignorar, o quanto tinham me examinado de cima a baixo." (Condé, Maryse, Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem).
 
Maryse Condé em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem, de 1986, nos convida a revisitar um episódio histórico, ocorrido nos EUA, no século XVII, e que já foi contado no cinema e no teatro: as bruxas de Salem. Sob forte influência do puritanismo, um vilarejo se vê diante da condenação de pessoas acusadas de bruxaria, na maioria mulheres. Entre elas estava Tituba, uma mulher negra escravizada, originária de Barbados. No entanto, nada mais sabemos sobre essa mulher. Os registros daquele triste episódio não tinham lugar para a história de uma mulher negra escravizada. E é esse o mote de Condé, em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem: dar voz a essa mulher invisibilizada, torná-la protagonista de sua própria história, ainda que numa obra de ficção.

O livro de Condé é um exercício de imaginação e de reparação. Nesse sentido, são suas provocações, seu desafio constante à historiografia oficial, seu esforço para trazer questões tão caras à academia em tempos mais recentes, seja na História ou nas Ciências Sociais, que tornam o livro uma leitura muito atual e, portanto, uma leitura necessária em tempos de Black lives matter.

Como literatura, em vários momentos a narrativa carece de verossimilhança. Tituba, como personagem, para além das contradições que nos fazem humanos, em alguns momentos não nos convence - pelo menos não me convenceu. Alguns diálogos soam artificiais, como o diálogo entre Tituba e Hester na prisão. Apesar disso, as temáticas abordadas são riquíssimas e nos desafiam a pensar o ontem e o hoje sem meias palavras. Ao mesmo tempo, a narrativa em primeira pessoa nos brinda muitas vezes com diálogos e descrições extremamente poéticos e bonitos.
"Peguei o hábito de atravessar a floresta a passos largos, pois cansando meu corpo, parecia que eu cansava também meu espírito e assim encontrava um pouco de sono. A neve embranquecia as trilhas e as árvores, com galhos nodosos que pareciam esqueletos. Um dia, ao entrar numa clareira, tive a impressão de chegar a uma prisão onde as paredes de mármore se fechavam ao meu redor. Eu podia ver o céu branco perolado por um buraco estreito acima da minha cabeça, e pareceu que a minha vida terminaria ali, envolvida naquela mortalha cintilante. Então, meu espírito poderia encontrar o caminho para Barbados?"
Em outros momentos, como já na abertura do livro, a denúncia das violências a que os negros e, principalmente, as mulheres negras, foram sujeitados durante o horror da escravização vem numa linguagem direta e potente, que nos acerta como um soco no estômago - palavras de uma participante do Literateia_Clube, do qual tenho o prazer de fazer parte e no qual discutimos o livro no último sábado.
"Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo."
Num primeiro momento, Tituba se recusa a aceitar o título de bruxa, afinal, seus dons eram usados para curar, para cuidar, enquanto aqueles que a acusavam de bruxaria com isso queriam associá-la ao mal, a satanás, ao demônio. É a própria Tituba que assim nos fala: "... nesta sociedade, eles dão à função de "bruxa"  uma conotação errônea. A "bruxa", se vamos mesmo usar essa palavra, corrige as coisas, endireita, consola, cura...".

E é justamente na acepção que Tituba dá ao termo bruxa que ela irá se reivindicar como "Bruxa Negra de Salém". Por um lado, foi na condição de bruxa que Tituba foi, momentaneamente, vista publicamente. Ou seja, foi a acusação de bruxaria que deu a Tituba uma visibilidade que até então lhe era recusada. Mas nem mesmo a condição de bruxa foi capaz de lhe garantir um lugar na História. Agora, na ficção, pelas mãos de Condé, Tituba subverte a fala daquela sociedade que não a reconheceu na sua identidade, que não a compreendeu e que condenou sua arte, não por ela mesma, mas tomando-a sob o signo de um Mal que lhe era estranho. Ao subvertê-la, Tituba assume, já a partir do título, a condução de sua própria narrativa. Trazendo sentidos, significados e um modo de ver e estar no mundo que lhe é próprio e que não estaria mais na dependência daquele outro que lhe negava humanidade. O espelho de Tituba está nos olhos de Condé - ou seria Tituba o espelho no qual Condé pôde ver refletido toda a problemática da mulher negra, não lá no século XVII, mas até os dias de hoje?

Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem é uma leitura que incomoda e só por isso já garante o seu lugar entre as boas leituras que deveriam compor esse tecido essencial que a leitura e a literatura, em especial, nos oferecem como possibilidade de nos humanizar mais e mais.
 

sábado, 11 de julho de 2020

É possível ter esperança no milagre político?

Imagem de divulgação do livro.

Em seu novo livro "Projeto Nacional: o dever da esperança" (LeYa, 2020), Ciro Gomes convoca os brasileiros ao dever da esperança e à luta contra o projeto de destruição nacional que está sendo implementado por esse governo. Mas seu livro é também, em muitos momentos, entre a apresentação de números e fatos históricos, um convite à revolta, à indignação e à ação coletiva, única capaz de gerar o "milagre político". Nesse sentido, o Projeto Nacional apresentado por Ciro é uma tentativa de resgatar a dignidade da política e afirmar que será apenas através dela que poderemos encontrar esperança para o nosso país. Só por isso o livro de Ciro já é uma grande contribuição ao debate público, uma vez que atravessamos um momento tão delicado da nossa vida política, no qual quem hoje ocupa a presidência se elegeu com um discurso antipolítica.

Ciro fala a partir da sua experiência de ex-prefeito, ex-governador, ex-deputado, ex-ministro, mas também a partir de suas incursões pelo mundo acadêmico e ainda como alguém que foi presidente da Transnordestina Logística S.A. Ou seja, une à bagagem prática do homem público e que enfrentou as urnas, uma bagagem do homem que também é capaz de pensar sobre essa prática e está aberto ao debate e à produção de conhecimento, portanto, não está preso a visões dogmáticas. Por mais que recorra às suas experiências como político, aos êxitos seus e de seu grupo político no Ceará, especialmente em Sobral, se coloca também aberto ao diálogo, ciente de que suas propostas não são verdades absolutas, mas fruto de reflexões, estudos e que podem, portanto, ser criticadas, ampliadas, modificadas.

Na introdução Ciro apresenta o método que pretende seguir ao longo do livro e que consiste em três partes: definição do problema, seguida de um diagnóstico da situação atual e oferta de uma proposta de solução. Divido em seis capítulos, o livro não traz grandes novidades para quem tem acompanhado entrevistas, palestras e intervenções públicas de Ciro Gomes nos últimos anos, mas traz detalhamentos muito importantes sobre propostas fundamentais para a construção de um futuro com mais justiça social, menos desigualdade, mais soberania e desenvolvimento econômico, tais como as propostas de  reforma política e de reforma tributária. Quanto à reforma política, talvez o ponto que mereça destaque seja a proposta de eleições em três turnos: no primeiro, a eleição de presidente e governadores; no segundo, concluiria as eleições majoritárias não resolvidas no primeiro; e, no terceiro, se realizaria as eleições para os legislativos federais e estaduais (p.177). Uma das vantagens apresentada para essa mudança é que ela "resolve um grande problema de nosso sistema que é a falta de tempo e de discussão das questões legislativas nas eleições, o que gera o famoso fenômeno da falta de memória em relação ao deputado votado nas eleições passadas" (p.177).

Como professora, vejo com muito bons olhos o destaque que Ciro dá à educação e à ciência dentro de um Projeto Nacional. Ciro nos fala da necessidade de uma revolução educacional, mas aqui tenho alguns incômodos com os termos que ele usa, com a imagem de professor que ele idealiza, e me preocupam algumas das referências e talvez parcerias que ele venha a fazer nessa área. O aprender a aprender, invocado por Ciro como sendo uma das habilidades fundamentais a ser desenvolvida nas escolas, esteve desde os anos 1990 diretamente associado a projetos neoliberais. A denúncia insistente de Ciro em relação ao fracasso do neoliberalismo não pode deixar de reconhecer esse parentesco entre as pedagogias do aprender a aprender e o neoliberalismo. Não é por outro motivo que fundações como a de Paulo Lemann tanto louvam o aprender a aprender. Como observa Demerval Saviani (História das Ideias Pedagógicas do Brasil, 2013, p.431-434), autores que abraçaram o lema aprender a aprender a partir dos anos 1990, depois do Relatório Jacques Delors, estão preocupados em adaptar os futuros trabalhadores a nova realidade de insegurança do mundo do trabalho. O aprender a aprender anda de mãos dadas com o mito do empreendedorismo, não aquele defendido por Ciro, mas aquele do neoliberalismo que hoje vende ilusões para motoristas de Uber e entregadores de Ifood.

É verdade que o aprender a aprender tem origem nos teóricos escolanovistas, dos anos 1920-30, sendo Anísio Teixeira a maior referência daquele movimento. Mas também esse movimento, bastante influenciado por seu correlato nos EUA, cujo maior expoente era John Dewey, foi bastante criticado já no final da primeira metade do século XX por ter sido responsável por uma transformação das escolas em centros vocacionais, voltados para habilidades e pouco comprometidos com conteúdos, esvaziando o próprio papel da escola (Cf. A crise na educação, Hannah Arendt). Como professora, esse discurso neoescolanovista que transforma professores em tutores ou mediadores e que aposta em habilidades e competências não me deixa confortável, ainda mais quando esse discurso é feito por Fundação Lemann  e afins.  A influência que tais fundações têm nas decisões de políticas públicas educacionais nos últimos anos sempre é motivo de alerta ou deveria sê-lo, afinal, a educação crítica da qual elas falam seria a mesma que o Projeto Nacional anseia? Uma educação emancipadora? Ou estariam interessados apenas no caráter adaptativo de uma educação das habilidades, capaz de formar mão de obra sempre pronta para se adaptar às demandas do mercado? Com relação à Fundação Lemann, basta vermos o perfil dos jovens por eles apadrinhados para atuar na política para termos dimensão de qual é seu limite de compromisso com uma educação emancipadora e crítica ou com mudanças estruturais.

Ao falar de educação, Ciro recorre sempre ao seu case de sucesso, Sobral (CE). Nada mais justo. Mas aqui tenho outra preocupação: a proposta de valorização dos professores através de programas de meritocracia. Ainda que Sobral, em particular, e o Ceará, de forma geral, tenham resultados louváveis e invejáveis na educação, tenho muitas dúvidas acerca de programas de meritocracia, baseados em resultados de avaliações internas ou externas. As experiências que de fato vivenciei como professora da rede estadual de São Paulo foram desastrosas; políticas de bonificação que acabam, por um lado, servindo para punir professores e escolas, mais do que valorizar e, por outro, incentivos bastante pífios do ponto de vista financeiro. Mas, claro, não estou dizendo que é isso o que é feito no Ceará, apenas que é importante termos um olhar crítico a esse tipo de proposta.

Acerca dos números do Brasil no PISA, Ciro em nenhum momento fala dos Institutos Federais. Acredito que seria importante olhar para essas instituições e reconhecer seus resultados. Conforme reportagem do The Intercept, de 8 de dezembro de 2016, "se a rede federal de ensino fosse um país, em ciências — a matéria escolhida como foco da análise desta edição — o “país das federais” ficaria em 11º lugar no ranking internacional, um ponto acima da tida como exemplar Coreia do Sul, que teve uma média de 516 pontos". Em dezembro de 2019, agora no jornal Gazeta do Povo, lemos que "o desempenho médio dos estudantes de 12 institutos federais e de um colégio militar que participaram da avaliação é comparável ao de jovens de nações que figuram entre as 20 melhores classificadas no ranking mundial." Espero que Ciro olhe mais para os Institutos Federais ao pensar sobre Educação e sobre a revolução tão desejada e tão necessária para essa área em nosso país. Talvez ela já tenha começado, talvez os exemplos já estejam aqui mesmo, só precisando ser ampliada. 

Em que pese o heroísmo que algumas vezes vemos Ciro atribuir a Getúlio Vargas (p.250) - será que precisamos de heróis? Não seriam eles tão perigosos como os salvadores e os mitos (p.256)? - e sua linguagem mais emocional e carregada de paixão ao final do livro - "E para ajudar nosso povo a entender isso dedicarei até o último dia de minha vida" (p.256) -, na maior parte do tempo o tom do livro é racional, é, de fato, um convite ao debate de ideias. No geral, ao ler o novo livro de Ciro Gomes, pode-se questionar se os problemas que ele apresenta como sendo aqueles aos quais deveríamos voltar nossa atenção de fato têm a urgência por ele invocada; pode-se discordar dos diagnósticos oferecidos por ele e pode-se até mesmo rejeitar suas propostas de soluções. Mas não é possível fazer isso sem apresentar uma contraproposta, sem ter um projeto para oferecer no lugar. Aqui temos outra contribuição importantíssima de Ciro Gomes para o debate público: forçar todos aqueles que, como ele, têm pretensão de disputar a presidência do Brasil, a apresentar um projeto de país - que país querem construir - dizer como enxergam o Brasil hoje - que desafios, problemas vislumbram a frente - e como pretendem enfrentar esses problemas e desafios.

Apoiei Ciro Gomes nas eleições de 2018, estudei e acompanhei as discussões e a proposta de reforma da previdência do PDT, e depois de ler esse livro tenho ainda mais motivos para acreditar que Ciro hoje representa um projeto de Brasil com o qual eu me identifico. Como todo projeto, está sujeito a aprimoramentos e ajustes. E é também no desejo de contribuir com esse projeto que escrevo este texto e que convido a todos a lerem "Projeto Nacional: o dever da esperança". Penso que é um dever de todo aquele que se identifica como democrata acreditar no "milagre da política" e, portanto, diante de um projeto como o apresentado por Ciro, ter esperança num futuro mais justo, mais solidário, menos desigual, mais feliz para todos. Pois, como disse Hannah Arendt, "se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço - e em nenhum outro - temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo" (O que é política?, Bertrand Brasil, p.44).

terça-feira, 7 de julho de 2020

Dark 3 - o fim foi, de fato, o fim ou só mais um começo?

reprodução Netflix
(Aviso de spoilers da terceira temporada)

Embora muitos tenham considerado a última temporada a consagração da série alemã, ela não me convenceu totalmente. Além de não responder muitas perguntas deixadas pelas temporadas anteriores, a quantidade de informação nova introduzida na terceira temporada faz com que o ritmo da série fique comprometido. Infelizmente a última temporada de Dark não tem a mesma qualidade das duas temporadas anteriores.

Pode-se destacar positivamente as atuações dos atores, que estão muito boas na última temporada. Também a fotografia e a trilha sonora são excelentes e mantêm a qualidade que vinham apresentando nas temporadas anteriores. Outro ponto positivo é a estratégia para marcar a mudança de mundos que funciona muito bem. Os diálogos entre as versões jovem, adulta e velha da Martha do mundo B muitas vezes parecem um repeteco dos diálogos entre Jonas e Adam e entre as versões jovem e adulta de Jonas que vimos na primeira e segunda temporadas. O desfecho de alguns personagens chega a ser extremamente cruel, como é o caso de Katharina, que volta para 1986, encontra Ulrich no hospício e, ao tentar tirá-lo de lá, é morta pelas mãos de sua própria mãe. Com relação ao mundo B, embora ele seja muito semelhante ao mundo A, de Jonas, encontramos muitas mudanças nas relações entre personagens que não chegam a ser devidamente exploradas e, portanto, em vários momentos, alguns desfechos parecem muito superficiais. Um exemplo é a ida do Ulrich do mundo B para o passado seguindo Helge. Como as coisas não acontecem exatamente da mesma maneira nos dois mundos, faltam elementos para dar verossimilhança às sequências que são apresentadas. Além disso, os dois capítulos finais recorrem a informações e elementos novos que foram muito rapidamente apresentados, deixando a sensação de que poderiam ter feito pelos menos um episódio a mais para que essas ideias fossem desenvolvidas a contento. E, apesar da sensação de que muitas referências acabaram perdidas na última temporada, ainda dá pra falar de filosofia, então, vamos ao que interessa.

A última temporada de Dark se inicia com um trecho do filósofo Arthur Schopenhauer (Finalmente!): “O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer”. Embora tenha sido a primeira citação direta ao filósofo, muitas outras ideias de Schopenhauer se fizeram presentes nas falas de Adam ao longo da série, principalmente a ideia de que a vida é dor, sofrimento, causados por desejos que não estariam sob nosso controle. No entanto, o último episódio deixa uma sensação de que perdemos algo pelo caminho ou simplesmente de que mudamos totalmente a perspectiva das temporadas anteriores. De última hora, uma natureza bem mais colorida, cores claras e uma ideia de felicidade pautada na amizade parecem preencher todo o espaço ocupado pelo pessimismo existencial de Adam que perpassa as duas temporadas e que continua em boa parte da terceira temporada, e eis que somos levados a uma espécie de paraíso, como sugere o título do episódio final.

Mas o que seria o paraíso? Um mundo sem Jonas e sem Martha, afinal a existência dos dois seria um erro, como Claudia revela para Adam. Até aí era algo que poderíamos esperar depois do final da segunda temporada. O que não parece fazer muito sentido é o paraíso materializado em meia dúzia aleatória de personagens numa ceia intimista que, na ausência de Jonas e Martha, teriam uma vida feliz (nesse sentido, podemos observar que são justamente os personagens que tiveram as histórias e desfechos mais trágicos nos dois mundos que aparecem, tirando Woller, com certeza uma piada interna da série...). Teriam os produtores de Dark apostado num final mais palatável ao grande público? Será que Dark, no fim, não quis ser tão dark assim? Mas se as duas temporadas, com seu ambiente sombrio, pessimista e com pitadas de tragédia grega tinham feito tanto sucesso, por que mudar? Ou será que não mudou? Será que as referências à mitologia, à religião, à filosofia teriam sido simplesmente jogadas na série? Foram pistas falsas deixadas no caminho para confundir os espectadores? Ou elas podem nos ajudar a entender o final da série?

Pensando nas perguntas que deixei no final do texto "Como Schopenhauer e Nietzsche podem nos ajudar a entender a série Dark - Parte 1", a saber, "somos livres ou nosso destino já está traçado? Jonas poderá mudar o rumo da sua história ou está condenado a se tornar Adam?", parece que a série optou por dizer sim e não para a segunda questão, mas isso não significa dizer que somos livres... Nesse sentido, a pergunta que formulei no texto "Como Schopenhauer e Nietzsche podem nos ajudar a entender a série Dark - Parte 2", como correção das primeiras questões - Qual o destino de Jonas? - não faria sentido, afinal, não haveria um destino pronto, mas algumas possibilidades de destino. Ou talvez fosse melhor dizer: Jonas vai e não vai se transformar em Adam. Mas, de todo modo, tanto numa possibilidade quanto na outra, há cadeias causais determinadas e um desfecho único para cada uma delas: numa, Jonas é resgatado por uma versão da Martha do mundo B, levado para o mundo dela, mas em seguida assassinado por uma outra versão da Martha B e, portanto, não se torna Adam; na outra, a Martha do mundo B não resgata Jonas, uma versão mais jovem de Jonas é conduzido por Claudia ao pós-apocalipse e ele se transforma em Adam. No entanto, a série nos surpreende com uma terceira possibilidade: Jonas se transforma em Adam, mas uma das versões de Claudia conta para ele que descobriu um jeito de impedir que Jonas e Martha e seus respectivos mundos existam. E então somos apresentados a um terceiro mundo ou mundo originário, no qual o velho Tannhaus, ao construir uma máquina do tempo para tentar impedir as mortes de seus filho, nora e neta, acaba criando os mundos de Jonas e Martha. Portanto, esse seria o buscado por Adam e que, uma vez rompido, poderia cessar todo sofrimento de Jonas, Martha e demais personagens.

Uma questão importante é a seguinte: o encontro entre Claudia e Adam no qual ela revela a existência do mundo originário já aconteceu antes? Ou melhor, esse encontro é único ou também irá se repetir? Ao impedir a morte da família de Tannhaus, os mundos de Jonas e Martha serão eliminados e é isso, o fim? Ou estaria esse terceiro mundo conectado aos dois outros de modo que também ele faria parte de um eterno retorno? Afinal, ouvimos tanto que 'o fim é o começo e o começo é o fim' que fica difícil engolir essa de 'paraíso sem Jonas e sem Martha'.  A série só permanece fiel às temporadas anteriores se estiver dizendo, de algum modo, que os ciclos não se encerraram. Poderíamos pensar que o mundo originário, também ele sujeito ao eterno retorno, intercalaria ciclos no qual Jonas e Martha salvam o filho do Tannhaus com ciclos no qual o filho do Tannahus morre e, portanto surgem os dois mundos. Talvez a cada 33 anos, o mundo originário volte, sendo que já no ciclo seguinte os dois mundos o substituem novamente - a triquetra então, não estaria relacionada às três épocas (1953 -1986 -2019), mas sim aos três mundos, que estariam infinitamente conectados e sujeitos à repetição. Não domino os conceitos físicos explorados na série, então, pode ser que eu esteja falando besteira. Essa aparição do terceiro mundo me pareceu forçada e pouco explorada, calcanhar de Aquiles da terceira temporada.

Minha hipótese de que não se tratava de uma briga entre o Bem e o Mal, mas um confronto entre duas visões de mundo, uma schopenhauriana e outra nietzschiana, não parece de todo errada. Eva, a versão anciã de Martha B, de fato pode ser entendida como Ariadne e foi ela quem guiou Jonas-Adam a fim de que garantir o eterno retorno de tudo. Enquanto Adam pensava estar agindo para acabar definitivamente com os dois mundos, Eva garantia que as escolhas dele assegurassem que tudo iria acontecer de novo e de novo. No entanto, na série, podemos ver o Sem-Nome, filho de Martha e Jonas, como sendo o Minotauro, o monstro que Jonas-Adam quer destruir, mas que Ariadne-Martha-Eva escolhe salvar. Jonas-Adam seriam ao mesmo tempo Dionísio e Teseu: enquanto Dionísio, Jonas é o par perfeito de Martha; enquanto Teseu, ele a abandona. Na série, Ariadne conduz Teseu pelo labirinto, mas o engana, e embora Adam-Teseu acredite destruir o Minotauro, Eva-Ariadne cuida para que ele esteja salvo, garantindo assim que tudo aconteça como sempre aconteceu. E sendo assim, enquanto Adam-Schopenhauer recusa a dor e o sofrimento e decide botar fim à vontade/desejo que os originava (abre mão de Martha e tenta por fim ao mundo), Eva-Nietzsche aceita a dor e o sofrimento, assim como as alegrias e diz sim à vida dela e do seu filho, aceitando o eterno devir.

Para quem viu na terceira temporada de Dark a revelação de uma "história de amor", eu diria que trata-se de uma história sobre "egoísmo", do quanto cada um está apegado ao seu próprio querer, uma vez que o amor seria só uma grande ilusão, a maior de todas as peças que a 'vontade cega' prega no ser humano. No limite, não há sentido ou razão para os desejos que estão por trás das nossas ações e que, na maioria das vezes, trazem dor e sofrimento muito mais do que satisfação. Em outras palavras, nossas ações, por mais complexas que pareçam, por mais que sejam resultado de muito raciocínio e cálculo, não seriam outra coisa além do nosso esforço para realizar aquilo que queremos. Mas esse querer está, na maior parte do tempo, oculto para nós mesmos, não temos consciência dele, apenas somos movidos pelo querer ou pelo desejo. Jonas queria/desejava Martha, Hannah desejava alguém que não a abandonasse, Ulrich desejava aventuras, Claudia queria que Regina vivesse ou, talvez, Claudia queria viajar no tempo, mas se sentia culpada por ter abandonado a filha e transformou essa culpa numa motivação para seguir viajando no tempo, Eva desejava que seu filho vivesse... Num determinado momento, Jonas, tomando consciência de que seu desejo só gerava mais dor e sofrimento (“A dor é seu navio,o desejo é sua bússola.”, disse Adam na segunda temporada), abre mão desse querer, porque compreende finalmente que só assim estará livre de toda dor e de todo sofrimento.

"O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente renovados para desejar e querer; pelo contrário, aquele que penetra a essência das coisas, que domina o conjunto, chega ao repouso de todo desejo e de todo querer. Dai em diante, a sua vontade desvia-se da vida, repele com susto os gozos que a perpetuam. O homem chega então ao estado de renúncia voluntária, da resignação, da tranquilidade verdadeira, e da ausência absoluta de vontade". Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo.

Quanto à cena final, aquele jantar alegre, colorido e nada a ver com Dark,  tendo a interpretá-la como uma provocação, um lembrete de que a felicidade seria algo passageiro e ilusório. De que para cada momento de felicidade haveria dois outros de dor e sofrimento (para cada mundo originário, paraíso, haveria dois mundos de desencontro, dor e sofrimento). Para que aquelas seis pessoas pudessem  estar ali, dúzias de pessoas foram sacrificadas (afinal, como ouvimos no trailer da terceira temporada: "Cada decisão a favor de algo é uma decisão contra outra coisa"). O déjà vu de Hannah, na cena final, é justamente a descrição do cessar da vontade cega e irracional, por trás de cada ação e escolha que levaria a todo tipo de dor e sofrimento experimentado pelos indivíduos, ainda que limitado àqueles que desapareceram com os mundos A e B. Esse seria o verdadeiro paraíso, a não existência, livre de todos os impulsos da vontade, livre, finalmente, de toda dor e todo sofrimento. Só aqueles que não cometeram o maior dos delitos, nascer, não serão castigados...

Afinal, dá para pensar num mundo sem nenhuma dor ou sofrimento? É crível uma existência feliz o tempo todo? Haveria lugar para uma felicidade permanente para esses personagens que restaram em Winden? Ou estaria Winden e seus habitantes condenados a pendular entre esse mundo originário e os outros dois mundos, entre o tédio e o desespero, polos entre os quais, segundo Schopenhauer, a existência humana se alterna? Estaria o paraíso ameaçado? Talvez a ausência momentânea de luz durante o jantar, na cena final, seja um lembrete disso: felicidade é, quanto muito, a ausência de dor e sofrimento, mas isso seria momentâneo. O desaparecimento dos mundos A e B não pode ser considerado um desfecho feliz, uma ruptura com o eterno retorno, mas apenas o início de outro ciclo, interligado com os outros ciclos dos mundos A e B, também ele marcado por dor e sofrimento, ainda que sejam outras dores e outros sofrimentos...


Sobre o que se fala

cotidiano Poesia Dicas opinião opiniões política utilidade pública atualidade atualidades Rapidinhas Campinas educação Conto crônica Minas Gerais São Paulo cinema observações Brasil coisas da vida escola Misto música Delfim Moreira divulgação Barão Geraldo Bolsonaro Literatura democracia eleições Filosofia da vida leitura coisas que fazem bem passeios Comilança clã Bolsonaro redes sociais revoltas amigos coronavírus debate público ensino paixão preconceito; atualidades sobre fake news séries Dark Futebol amor coisas de mineiro coisas do mundo internético criança do eu profundo façamos poesia; final de ano; início de ano; cotidiano; pandemia 8 de março Ciência de irmã pra irmã distopia história infância lembranças mulheres política; tecnologia virada cultural Violência; Educação; utilidade pública autoritarismo comunicação consumo consciente desabafo economia fascismo férias impressa manifestação mau humor mentira mágica pós-verdade quarentena racismo estrutural reforma da previdência ser professor (a) sobre a vida música Poesia 15 de outubro 20 de novembro 2021 Anima Mundi EaD Eliane Brum Fora Bolsonaro Itajubá Moro Oscar Passarinho; Poesia; Vida Posto Ipiranga aborto adolescência amizade amor felino animação; assédio sexual autoverdade balbúrdia baleia azul. bolsonarismo cabeça de planilha consciência negra corrupção coti covid-19 crime curta; crônica; curtas; concurso; festival curtas curtas; crônica; da vida; defesa democracia liberal descobrindo o racismo desinformação direitos discurso divulgação; atualidades divulgação; blogs; poesia documentário família filosofia de jardim fim das sacolinhas plásticas frio férias; viagens; da vida; gata guerra de narrativas hipocrisia humor ideologia jornalismo lei de cotas livros minorias morte mídia música Poesia novidades para rir próxima vida racismo institucional rap saudade sentimentos tirinhas universidade utopia verdade verdade factual viagem violência

Amigos do Mineireces