Enquanto cientista política formada por Harvard, ex aluna de Steven Levitsky, um dos autores de Como as democracias morrem, Amaral pode ter bons motivos para insistir na urgência de construirmos pontes para o diálogo na política. Pode ter bons motivos para dizer que a polarização é perigosa e ameaça a democracia. É provável que Amaral tenha lido O povo contra a democracia, de Yascha Mounk, outro harvardiano, e por isso tenha outros tantos bons motivos para se preocupar com as brechas que essa polarização abre para a ascensão e permanência no poder de populistas, como Bolsonaro. Afinal, como afirma Mounk, "na maioria dos países, os populistas só alcançaram o cargo máximo porque seus adversários fracassaram em concluir um pacto eleitoral" (p.12). Levitsky e Ziblatt são categóricos: "a polarização extrema é capaz de matar democracias" (p.20).
Na condição de cientista política, Amaral faz bem em se afastar de "amarras ideológicas" para buscar compreender o cenário brasileiro. Na condição de cientista, a busca por neutralidade é saudável e até recomendável. Como cientista política, Amaral está bem acompanhada ao afirmar que parte da esquerda se afastou da sociedade e que seria importante resgatar esse diálogo. Para Mounk, o abismo crescente entre classe política e sociedade, entre representantes e representados, é um dos elementos chave para entendermos a ascensão de populistas mundo afora (p.287-288).
No entanto, na condição de deputada eleita por um partido de esquerda (ou centro-esquerda, não vou entrar no mérito dessa discussão), Tábata errou ao votar a favor da PEC 06/2019. Errou ao contrariar a decisão do seu partido. E seu maior erro foi justamente ignorar seus eleitores. Eu faço parte desses eleitores ignorados e venho observando, pelas reações em redes sociais, que não estou sozinha em minha discordância com o voto da deputada. Tábata ludibriou seus eleitores com um discurso ambíguo - agora tenho certeza disso. Durante o processo de discussão da PEC 06/2019 - erroneamente chamada de Reforma da Previdência (conforme discuto aqui), a deputada afirmou diversas vezes ser favorável a uma reforma, mas não àquela apresentada pelo governo. Esse discurso me pareceu coerente, uma vez que o PDT foi o único partido a apresentar uma proposta séria de Reforma da Previdência no período eleitoral, proposta esta que se converteu em um substitutivo apresentado pelo partido na Comissão Especial da Reforma da Previdência. O PDT não negou a necessidade de uma reforma. No entanto, desde março o partido fechou questão contra a PEC 06/2019 na sua XXV Convenção Nacional. O Carlos Lupi, presidente do PDT, foi muito claro na ocasião: "nós temos que discutir com o povo brasileiro, o que o Ciro fez na campanha e nós temos que aprofundar e aprimorar, a nossa reforma da previdência. Mas dar legitimidade a essa, é rasgar a nossa história" (fala completa aqui).
As justificativas apresentadas por Tábata para seu "voto de consciência" não são coerentes. No mínimo mostra que ela não prestou atenção nas incansáveis análises feitas por Ciro Gomes durante os últimos meses. Ignorou as análises técnicas feitas pelo seu partido. Onde estava Tábata durante as discussões feitas pelo partido? Se ela não concordava, por que não falou? Por que não se manifestou? Por que não foi mais clara com seus eleitores? Por que não contribuiu com a divulgação de dados e informações que pudessem justificar seu posicionamento? Por que fazer isso apenas algumas horas antes da votação?
Apresentar emendas ao texto base da PEC 06/2019 para mim fazia parte do diálogo. Tentar construir consensos a respeito de injustiças mais gritantes, como as mudanças do BPC, a aposentadoria dos rurais, das mulheres, dos professores, dentro de bancadas com partidos que são da base do governo, como a bancada das mulheres ou a bancada da educação, isso para mim fazia parte do processo de diálogo. Mas em nenhum momento passava pela minha cabeça um voto a favor do texto base. É verdade que o texto votado sofreu mudanças no Congresso, que o relatório do deputado Samuel Moreira diverge do texto original do governo. Mas é inegável o DNA do governo e do Paulo Guedes nessa PEC. Um DNA de quem só enxerga números, obcecado com a economia de 1 trilhão; um DNA de desmonte da Seguridade Social e demais políticas sociais, como a do abono salarial. Em essência o texto base aprovado no Congresso, com o voto favorável de Tábata e outros deputados do PDT, mancha a história do partido e seu compromisso com os trabalhadores. É grave, muito grave o que esses 8 deputados fizeram. Mas agora isso é um problema para o PDT (e para o PSB que teve 11 deputados contrariando a orientação do partido). Uma decisão muito delicada, na minha opinião, que pode beneficiar outros partidos, ao promover o aumento de suas bancadas com a filiação dos expulsos, caso se decida pela expulsão.
Mas Tábata continua errando. Seu artigo de hoje na Folha de São Paulo fala de ousadia, mas parece que estamos diante de uma jovem inteligente e talentosa que está deslumbrada com o recente sucesso que sua atuação no Congresso alcançou nas mídias sociais e na imprensa em geral. É bem verdade que ela mereceu esse sucesso. Fez a lição de casa direitinho e derrubou um ministro incompetente e despreparado. Mas agora, a jovem deputada se acha no direito de enfrentar o partido que a acolheu, reclama por mais democracia interna, reclama de perseguição política, ataques a sua honra, falta de diálogo. Minha dúvida: por que essas diferenças com o partido não apareceram há meses atrás? Onde estava Tábata quando o PDT estava discutindo a proposta do governo? Por que ela não reclamou da falta de democracia interna em março, durante a Convenção Nacional do PDT? Estaria a Tábata reunida com seus outros partidos? O Acredito? Ou o RenovaBR? Ou ainda, estaria ela reunida com empresários como Paulo Lemann enquanto o PDT discutia os problemas da proposta do governo?
Relutei muito em aceitar essa possibilidade, já aventada por amigos durante as eleições. Eu pensei que era a velha esquerda tentando desacreditar uma nova forma de fazer política que se apresentava. As divergências teóricas entre Tábata e a esquerda brasileira nunca me passaram despercebidas. A formação em Harvard a colocaria, de partida, mais à direita dos partidos tradicionalmente de esquerda no Brasil. Uma Democrata, ao estilo estadunidense. Mas acho que me enganei feio. Não se tratava só de uma questão teórica. Pode até ser que Amaral, a cientista política, de fato esteja onde eu pensei que ela estivesse. Mas Tábata, a deputada, está navegando por outras águas. Ao eleger os 'partidos' como seu alvo nesse último artigo, Tábata corre o risco de contribuir para que o descrédito com eles só aumente e com isso o descrédito da população com a democracia representativa. E nesse sentido, Tábata se afasta de Amaral, e abre ainda mais as brechas para populistas e oportunistas que se aproveitam muito bem desse descrédito da população com o nosso sistema político. Diminuir a influência do dinheiro no sistema político é um dos remédios apontados por Mounk para salvamos a democracia (p.288). Temo que a influência do dinheiro - e não falo de voto comprado no Congresso nem de nenhuma outra forma de corrupção - tenha falado mais alto em Tábata. O triste "episódio Tábata Amaral" é um alerta para pensarmos a influência de Fundações e Instituições, aparentemente cheias de boas intenções e nobres causas, financiadas por grandes empresários, nesse tabuleiro, já complexo, da política brasileira. Não duvido que Tábata tenha votado com convicção. A questão é: como essa convicção foi construída? Qual o papel da Fundação Lemann na construção dessa convicção? Qual a influência da Fundação Lemann nos ideais de iniciativas como o Movimento Acredito?
Pode ser que a formação de Amaral esteja diretamente conectada com os caminhos trilhados por Tábata. No entanto, isso não me parece suficiente para negar a possibilidade de outras formas de agir por parte da esquerda, do campo progressista. Continuo acreditando na importância do diálogo como caminho para vencer os riscos do populismo à democracia. Mas, ao contrário de Amaral, entendo que esse diálogo deveria ser, prioritariamente, dentro do campo progressista. Por outro lado, ao contrário de parte da esquerda, acredito que é preciso dialogar com a direita sim. Mas esse governo não é a direita. É a extrema direita. O DNA dessa reforma, aprovada com o voto de Tábata Amaral, é da extrema direita. Amaral pode estar certa, quando ecoa os argumentos de Levtisky em favor do diálogo e da coalizão para além dos nossos aliados naturais (p.207), mas o Brasil não é os EUA. E embora Bolsonaro se esforce em ser um arremedo de Trump, o cenário político brasileiro tem contornos próprios que a jovem deputada parece ignorar nesse momento. A reforma que ora se encaminha vai aprofundar desigualdades. Esse cenário no curto e no médio prazo tende a aumentar a insatisfação da população com a política e torná-la ainda mais suscetível ao discurso redentor e às soluções simplistas. Em breve a população verá que essa reforma não trará empregos como seus defensores alardeavam. E o que virá depois? A retórica bolsonarista tentará canalizar a revolta da população contra algum inimigo: o congresso? o STF? Talvez o mais provável mesmo seja que Tábata Amaral não tenha lido Yascha Mounk. Acredito que essa leitura lhe cairia bem. Tanto Como as democracias morrem como O povo contra a democracia me parecem leituras obrigatórias para aqueles que estão preocupados com a sobrevivência da democracia num momento de ascensão populista pelo mundo. Ambos oferecem chaves de leitura muito interessantes para o mundo contemporâneo. Mas como já disse, o Brasil não é os EUA. Como política, como deputada, Tábata poderia ter prestado um pouco mais de atenção em Ciro Gomes, para entender um pouco melhor o cenário brasileiro, as peculiaridades da política local. Talvez esse tenha sido o meu erro: apostar que no PDT, junto de Ciro Gomes, ela pudesse ampliar seu olhar para além da pauta da educação - tão cara a mim - enxergando um cenário mais complexo. Talvez essa possibilidade nunca tenha existido. Pode ser que eu tenha errado na minha aposta, me negando a enxergar o que já estava claro para outros, só por querer acreditar (veja a ironia) que havia alternativas para o campo progressista.
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Henry Bugalho
Eduardo Moreira
Obras citadas:
Levitsky, Steven, Ziblatt, Daniel, Como as democracias morrem, tradução Renato Aguiar, Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Mounk, Yascha, O povo contra a democracia, tradução Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg, São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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