quinta-feira, 20 de junho de 2019

PEC 6/2019: quatro falácias sobre a Reforma da Previdência


Uma revisão do pacto constitucional de 88
 

No último dia 13/06, o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) apresentou seu relatório sobre a proposta do governo para a reforma da previdência na Comissão Especial na Câmara. Com várias alterações ao texto original, o relatório do deputado Moreira ainda enfrenta rejeição entre os parlamentares e diversos setores da sociedade. O tema é extremamente importante e deveria ser amplamente discutido com a população brasileira. Afinal, trata-se de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), portanto, afetando direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros. Não é a primeira vez que a Previdência é reformada, reformas foram feitas em 1998 e em 2003, respectivamente governo de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Também não é novidade que vivemos num país extremamente desigual e com práticas institucionalizadas que tendem a perpetuar essa desigualdade. O sistema previdenciário brasileiro não é uma exceção, há muito o que se corrigir em nome de uma maior equidade entre os trabalhadores privados e públicos, civis e militares, a fim de combater privilégios. No entanto, a PEC 6/2019 do ministro Paulo Guedes e do governo Bolsonaro só combate privilégios na propaganda. Há muitas falácias no discurso do governo ao defender essa reforma e há muitas maldades embutidas no texto apresentado. Para entender essas falácias e maldades é preciso antes entender alguns conceitos básicos. 

O primeiro ponto diz respeito ao que se entende por Previdência. O brasileiro médio tende a associar o termo "previdência" imediatamente à "aposentadoria" e as propagandas feitas pelo governo, bem como o discurso da mídia em geral, tendem a reforçar essa associação. Essa associação não está errada, mas é imprecisa. A Previdência Social diz respeito a direitos como a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada, proteção à maternidade, especialmente à gestante; proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes e a aposentadoria. Segundo o artigo 201 da Constituição Federal (CF), “a previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”.

             A Previdência Social diz respeito a alguns dos direitos sociais garantidos no artigo 6º da CF. No entanto, a Previdência Social está inserida num bloco maior, chamado Seguridade Social. Segundo o Art. 194 da CF, “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.”
Figura 1- elaborada por Francine Ribeiro
 A aposentadoria e os demais direitos acima citados, além da Saúde e da Assistência Social, foram garantidos pela CF na medida em que ela também definiu as fontes orçamentárias que iriam financiar esses direitos. O artigo 195 diz que “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” e de contribuições sociais incidentes sobre empregadores, empresas, trabalhadores e segurados, importadores de bens e serviços do exterior e receita de concursos de prognósticos (jogos da Loteria Federal). 

Figura 2- elaborada por Daniel Cunha
 A compreensão dos conceitos de Seguridade Social e Previdência Social é um dos pontos fundamentais para se entender o que inicialmente chamei de falácias da proposta de Reforma apresentada pelo governo. Embora o governo e a mídia em geral se refiram à PEC 6/2019 como dizendo respeito a uma Reforma da Previdência, a PEC propõe mudanças na Seguridade Social como um todo, alterando, além dos artigos 40, 201 e 202 que tratam especificamente de Previdência Social, os artigos 194, 195 que tratam do desenho da Seguridade Social, o artigo 203, que diz respeito à Assistência Social, além de propor mudanças no artigo 239, referente ao PIS/PASEP, propondo limitação da política do abono salarial para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. Essa portanto é a primeira falácia dessa proposta de reforma que não é uma reforma previdenciária, mas uma reforma do modelo de Seguridade Social desenhado na Constituição de 1988.
 A segunda falácia consiste em afirmar que a reforma irá combater privilégios quando a maior parte da economia prevista por Paulo Guedes e sua equipe, 84% como aponta documento elaborado por Eduardo Moreira, viria das mudanças aplicadas ao Regime Geral, ao BPC (Benefício de Prestação Continuada - pago aos indivíduos que comprovam invalidez ou uma condição de miserabilidade - renda per capita familiar inferior a 1/4 de um salário mínimo) e ao Abono Salarial. 
A terceira falácia diz respeito ao rombo da previdência ou ainda ao rombo da Seguridade Social. O governo (desde o governo Temer) afirma que hoje a Previdência Social gasta mais do que arrecada (e, no limite, a Seguridade Social também). Mas para chegar a esses números, o governo tem recorrido a artifícios que contrariam a Constituição Federal, tais como apresentar dados referentes a diferentes regimes de previdência, colocando o regime dos servidores públicos das três esferas, civis e militares (RPPS) juntamente com o Regime Geral (RGPS), a fim de falar de um Sistema Previdenciário deficitário. Prova de que se trata de regimes independentes é o §9 do artigo 201, incluído pela emenda de 1998, que prevê, para fins de aposentadoria de pessoa que tenha, ao logo de sua vida, contribuído com diferentes regimes, a compensação financeira entre os diferentes regimes de previdência social.
Figura 3- elaborada por Francine Ribeiro

Esse ponto é mais delicado e precisamos fazer alguns esclarecimentos:
 i) o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), responsável pela previdência dos trabalhadores do setor privado (INSS), não pode ser avaliado de maneira isolada, uma vez que ele está dentro da Seguridade Social e, desse modo, o financiamento desse regime não se limita à contribuição patronal e à contribuição dos trabalhadores, conforme o artigo 195 da CF (Conferir Figura 2). De acordo com essa leitura, fiel ao que diz os artigos 194 e 201 da CF, a Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) passa a ser deficitária apenas de 2015 em diante, sendo que, até então, foi superavitária, ou seja, o saldo entre receitas e despesas era positivo.
ii) o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), responsável pela previdência dos servidores públicos (civis e militares), federais, estaduais e municipais, não está incluído na Seguridade Social, conforme artigos 40 e 201 da CF. Hoje é justamente nesse Regime que há uma maior contrapartida do governo para cobrir um déficit de financiamento previdenciário. No caso dos servidores federais, é importante ressaltar que a previdência dos militares tem um peso expressivo no déficit, uma vez que representa menos de 1/3 dos beneficiários e praticamente metade da totalidade do déficit.
iii) sendo a previdência dos servidores públicos civis e militares a maior responsável pelo alegado rombo da previdência, é também ela a que menos iria contribuir com a tal economia de 1 trilhão, na proposta do governo. Segundo Eduardo Moreira, "o aumento da alíquota dos servidores públicos federais que ganham altos salários como medida de "justiça social" é responsável por menos de 2,5% da economia de 1 trilhão".  
            A quarta falácia do discurso dos defensores da PEC 6/2019 é afirmar que ela irá acabar com as diferenças entre trabalhadores privados e públicos, estabelecendo o mesmo teto para todos, pois isso já foi feito pela reforma de 2003, que instituiu o Regime Complementar, criado por lei de 2012, de modo que os servidores públicos federais que ingressaram no serviço público a partir de 2013 já estão sujeitos ao teto do INSS (R$ 5.839,45) e contam com um sistema complementar de previdência. Desse modo, quem ingressou no setor público federal a partir de 2013 não terá integralidade de aposentadoria, sendo esse um direito adquirido dos servidores que entraram no serviço público até 31/12/2003 (os servidores que entraram entre 2004-2013 estão sujeitos a uma regra de transição).
Aqui cabe outro esclarecimento muito importante. Costuma-se dizer, genericamente, que o setor público teria as maiores aposentadorias sem fazer as devidas distinções entre servidores civis e militares ou entre servidores dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O gráfico abaixo traz os valores médios de aposentadoria do setor público fazendo esses recortes:

Fonte: https://aosfatos.org/noticias/a-situacao-da-previdencia-social-em-6-graficos/
  Ainda que o relatório do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) tenha sido sensível a pontos mais críticos da proposta do governo, ao que eu chamei inicialmente de maldades contidas nessa proposta, como a redução do valor do BPC  e o aumento da idade mínima e do tempo de contribuição para trabalhador rural, aumento da idade mínima e questões que afetariam negativamente às mulheres trabalhadoras e tenha retirado a capitalização do texto, o conjunto da obra ainda oferece riscos ao modelo da Seguridade Social desenhado na Constituição Federal de 1988. Há avanços no relatório, como a previsão de aumento da alíquota do CSLL de 15 para 20% para as instituições financeiras, a manutenção do reajuste dos benefícios pela inflação, a retirada do texto da possibilidade de incidir desconto para a Previdência sobre vale alimentação, vale transporte e outros benefícios trabalhistas. Mas não podemos permitir que se faça uma mudança no desenho da Seguridade Social sem que isso seja discutido com a população de maneira transparente e honesta. 

No limite estamos diante de questionamentos que dizem respeito ao modelo de Estado que queremos, qual seu papel e quais suas responsabilidades. Mais do que isso, as mudanças previstas na PEC 6/2019 redefinem compromissos da sociedade brasileira com aqueles que mais necessitam de amparo. A proposta de Paulo Guedes claramente estimula uma visão individualista de sociedade, uma ideia de que direitos são privilégios, de que a aposentadoria, por exemplo, deve ser responsabilidade de cada um, independente das condições reais que cada um tenha para garanti-la. É uma proposta que, de maneira cega e egoísta, faz discurso de combate aos privilégios enquanto, na realidade, aprofunda as desigualdades e visa retirar direitos dos cidadãos. 

O tema da previdência é árduo, tenho consciência da minha limitação sobre o assunto e da necessidade de estudar ainda mais. Pessoalmente acredito que antes de uma reforma que mexa na previdência do trabalhador seria necessária uma reforma tributária nesse país, essa sim com potencial de mexer em privilégios. No entanto, se depender desse governo, a reforma tributária virá para pesar ainda mais no lombo dos trabalhadores e das classes menos favorecidas. No limite, não sou avessa a uma Reforma da Previdência, principalmente se ela vier para combater, verdadeiramente, privilégios, mas sou contra a PEC 6/2019 na medida em que ela é falaciosa e, embora seja vendida como uma Reforma da Previdência, o que ela faz é um ataque a direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988, desmontando a Seguridade Social, ameaçando a integridade de milhões de cidadãos. O substitutivo apresentado pelo PDT me parece poder ser, de fato, chamado de uma proposta de reforma da previdência, uma vez que versa, principalmente, sobre o artigo 40 da CF, propondo regras mais duras para o RPPS,  que hoje apresenta um déficit per capita superior ao do RGPS. Além disso, o substitutivo propõe alguns ajustes para o RGPS, no que diz respeito a idade mínima e regras de transição para segurados atuais, além de apresentar uma proposta detalhada para a criação de um regime de capitalização que, diferentemente do que havia sido proposto pelo governo, prevê contribuição patronal e do trabalhador. Considero que esse substitutivo poderia ser um ótimo ponto de partida para discutirmos seriamente o combate de privilégios presentes no modelo previdenciário vigente.

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