quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Mãe-da-Lua

Nem buia deles. Já passa de nove da noite. Se dão falta em mim lá em casa, vai ser um mês sem bicicleta. E a vara de marmelo vai cantar. Mas onde eles estão? Eu estou no lugar combinado. Desde às oito em ponto. Não fosse a luz da lua estaria um breu. A luz lá de dentro também parece morta. Como tudo. Que silêncio! Só o meu coração, desassossegado, parece pronto para um desfile de carnaval. Tento abafar o som me envolvendo num abraço apertado. Sinto um arrepio percorrer minha espinha. No mesmo instante ouço um som assustador. Parece uma risada. Uma risada de um bêbado? Seria possível? Aqui, no cemitério? Sinto meus cabelos se espetarem. Ou seria dos espíritos do além mundo? Todos os pelos do meu corpo estão eriçados. Cadê aqueles tratantes? Todo o trabalho que tive, de dobrar os lençóis embaixo da coberta. De pular a janela, sem fazer barulho. Quase gritei, quando me enrosquei no prego do parapeito. Amanhã vou ter que arrumar uma boa explicação para o arranhão na perna. A inspeção da mãe é infalível. Agora, aquele pirralho do Juca que não invente de acordar chorando. Porque se ele abre o berreiro igual na semana passada, a mãe vai descobrir tudo. E eu estarei no sal. Cadê os moleques? Será que desistiram? O Oreia é medroso. Eu sei. Aposto que desistiu. O Rato não. Ele é o mais velho. Ele disse que já fez isso outras vezes. O Bolão com certeza estava com medo. Ficou falando que era perigoso. Só não teve coragem de dizer na frente de todos que não viria. O Quati não ia deixar o Rato posar de valentão do grupo. De repente, de novo. hooo, hoo, ho, ho. Seria um bêbado ou algum dos moleques tentando me assustar? Mas de onde veio esse som?  Parece perto e longe. O tempo galopa. Em quinze minutos, se ninguém aparecer, vou embora. – Está decidido! A ideia tinha sido do Rato. Ele disse que, se eu quisesse fazer parte da patota, teria que encontrá-los no cemitério, às oito da noite. Ele disse que eu teria de subir em cima do mausoléu do padre Lourenço e ficar gritando palavrão até o seu Zé Coveiro aparecer com sua lanterna, maldizendo deus e o mundo, no seu passo claudicante, por entre os túmulos e covas rasas. Eles estariam do lado de fora, me vigiando. Se eu conseguisse escapar do seu Zé Coveiro, seria aceito. Se ele me agarrasse, nada feito. Será que eles mentiram? Será que nunca tiveram a intenção de me aceitar no grupo? Mas o que eles ganhariam com isso? Será que eles estavam por ali, entocados, na espreita, se divertindo com a minha cara, enquanto as horas passavam? – Devo estar fazendo papel de trouxa! Melhor voltar pra casa. Tudo pode ficar pior se mamãe der falta em mim. Amanhã eles me pagam. Não sei como, mas me pagam. Medroso eu não sou. Eles que me aguardem… hooo, hoo, ho, ho. E essa risada de novo… Cruzcredoavemaria! Não acredito no que meus olhos estão vendo. Nunca vi coisa mais horrenda. Esses olhos. Essa bocarra… ou é um bico? Melhor nem saber. Melhor correr… Tropecei nas raízes da figueira que faz sombra sobre o portão do cemitério. Ah, aqueles tratantes, eles me pagam. Deixa comigo. Agora, o melhor é chegar em casa o quanto antes. O boboca do Juca chora depois da meia noite. Tenho tempo. Com sorte ninguém sentiu minha falta. Amanhã será outro dia. Vou ter que inventar uma boa história para explicar o arranhado na perna e agora o joelho escalavrado… Mamãe, se eu for ligeiro, nem vai perceber. Vou acordar cedo, antes de todo mundo, e vou ser o primeiro a tomar banho. Vou botar a calça do uniforme. Vai ficar tudo bem… Essa lua está fazendo um clarão. Parece até que tem um holofote bem em cima de mim, me acompanhando pela rua. Querendo mostrar onde eu estou para quem quiser ver. O bicho desalmado mais uma vez enche a noite com seu hooo, hoo, ho, ho. Diabo de bicho esquisito. Se eu contar para o Tiago, ele vai dizer que foi castigo. Porque eu estava disposto a zombar da alma do padre Lourenço. E vai dizer que foi bem feito eu ter caído. Quem mandou eu querer me juntar àqueles pestes. – Diacho! Não vou contar para ninguém. Vai ser coisa só minha. Vou levar para o meu túmulo! Mas eles ainda me pagam…

Mãe-da-lua / urutau. Foto por Alessandro Abdala, Sacramento, Minas Gerais - Brasil, Pinterest:https://br.pinterest.com/pin/17732992276890747/.



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