Em texto escrito por Hannah Arendt entre as décadas de 50 e 70, lemos algo que, infelizmente, e eu diria até de maneira muito assustadora, nos soa muito familiar:
"Em nosso tempo, ao se pretender falar de política, é preciso começar por avaliar os preconceitos que todos temos contra a política - visto não sermos políticos profissionais. Tais preconceitos, comuns a todos nós, representam algo de político no sentido mais amplo da palavra: não brotam da soberba das pessoas cultas e não são culpados do cinismo delas, que viveram demais e compreenderam de menos. Não podemos ignorá-los porquanto estão presentes em nossa vida, e não podemos atenuá-los com argumentos porquanto refletem realidades incontestáveis e, com maior fidelidade ainda, a atual situação existente, de fato, justamente em seus aspectos políticos. (...) Mas os preconceitos se antecipam; 'jogam fora a criança junto com a água do banho', confundem aquilo que seria o fim da política com a política em si, e apresentam aquilo que seria uma catástrofe como inerente à própria natureza da política e sendo, por conseguinte, inevitável." (O que é Política?, Bertrand Brasil, 2017)
O texto acima pode nos servir de alerta para vários aspectos do contexto eleitoral que vivemos hoje no Brasil. O preconceito que Arendt aponta como sendo compartilhado por todos nós que não somos políticos profissionais não é novidade no Brasil. Há muitas décadas o senso comum repete de maneira mecânica que "todos os políticos são corruptos". No entanto, nos últimos anos, essa ideia ganhou novas cores e, impulsionada pelos resultados da Operação Lava-Jato, parece ter ganhado vida própria no cenário político brasileiro. Não faltou candidatos a incorporarem esse discurso como mantra repetido à exaustão e que obteve como resultado prático, até o momento, um sentimento difuso entre uma parcela considerável da população de 'negação da política'. Nas últimas eleições municipais, houve quem se apresentasse como 'não político' e levasse o pleito no primeiro turno. Ou seja, 'não ser político (profissional)' foi apresentado como virtude por candidatos que estavam, ironicamente, disputando um cargo político. Nesse exemplo, vale ressaltar que o primeiro problema está em reduzir a política à política partidária. Em limitar a política à política profissional, feita por uma dúzia das mesmas famílias.
Contra essa visão limitadora da política, precisaríamos resgatar um sentido mais amplo da mesma. Mais uma vez podemos chamar Hannah Arendt em nosso socorro:
"A política baseia-se na pluralidade dos homens. (....) A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. (...) Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e nesse interespaço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos." (O que é Política?, Bertrand Brasil, 2017)
Nesse sentido, nenhum de nós que está no mundo pode se considerar alheio à política. Reduzir a política à política partidária é estratégia daqueles que, na condição de políticos profissionais, se sentem pressionados quando cobrados ou quando se veem diante da possibilidade dos cidadãos assumirem papeis ativos na política. É recorrente a desqualificação de manifestações populares, por parte de políticos profissionais, dizendo que se trata de 'uma ação política', como se isso fosse um demérito. Na maioria das vezes, querem dizer que algum partido político estava envolvido com a manifestação (o que também não é um crime) e que portanto, isso deslegitimaria a ação dos cidadãos. Por outro lado, no contexto da Lava-Jato, uma maneira de se dizer honesto ou uma opção melhor do que os outros candidatos foi se dizer 'não político' ou se dizer 'contra os políticos tradicionais' ou ainda se apresentar como novo ou outsider, mais uma vez fazendo disso uma virtude que os qualifica para então assumir um cargo político. Em todos os casos, os riscos são os mesmos, um discurso anti-político que tende a piorar ainda mais a visão que as maioria das pessoas tem da política. Um discurso que contribui com a deterioração da política. Não é de se admirar os índices recordes da última eleição de abstenção e de votos nulos e brancos. Esse ano não parece que será diferente. Uma quantidade considerável de brasileiros parece ter desistido da política. Como afirmou Hannah Arednt, 'os preconceitos se antecipam; 'jogam fora a criança junto com a água do
banho'".
Mas se com a desculpa de combater os maus políticos, acabamos por colocar a política em risco, o que nos resta? Se acabamos com a política, como resolveremos nossos conflitos? Se alimentamos o ódio e o desprezo pela política, pela coisa pública, qual será o nosso futuro? O estardalhaço feito pela mídia nos últimos anos em torno da Operação Lavo-Jato em muito contribuiu para que o sentimento da população de descrédito com as instituições políticas atingisse índices preocupantes. O Congresso Nacional e os partidos políticos em geral são vistos com desconfiança pela maioria dos brasileiros. O próprio processo eleitoral tem sido questionado, inclusive por políticos que até hoje foram eleitos por ele. Esse cenário de desconfiança e crise das instituições políticas não é algo novo no mundo. Em Origens do totalitarismo, de 1950, Hannah Arendt apresenta em detalhes o clima que pairava na Europa no período que antecedeu o surgimento de regimes como o Fascismo, na Itália, e o Nazismo, na Alemanha.
Mas se com a desculpa de combater os maus políticos, acabamos por colocar a política em risco, o que nos resta? Se acabamos com a política, como resolveremos nossos conflitos? Se alimentamos o ódio e o desprezo pela política, pela coisa pública, qual será o nosso futuro? O estardalhaço feito pela mídia nos últimos anos em torno da Operação Lavo-Jato em muito contribuiu para que o sentimento da população de descrédito com as instituições políticas atingisse índices preocupantes. O Congresso Nacional e os partidos políticos em geral são vistos com desconfiança pela maioria dos brasileiros. O próprio processo eleitoral tem sido questionado, inclusive por políticos que até hoje foram eleitos por ele. Esse cenário de desconfiança e crise das instituições políticas não é algo novo no mundo. Em Origens do totalitarismo, de 1950, Hannah Arendt apresenta em detalhes o clima que pairava na Europa no período que antecedeu o surgimento de regimes como o Fascismo, na Itália, e o Nazismo, na Alemanha.
"Desde o fim do século XIX, a reputação desses parlamentos e partidos constitucionais declinara constantemente; para o povo em geral, pareciam instituições caras e desnecessárias. Bastava esse motivo para que um grupo que alegasse apresentar alguma coisa acima dos interesses de partidos e de classe, e que surgisse fora do Parlamento, tivesse muita chance de se tornar popular. Esses grupos pareciam mais competentes, mais sinceros e mais interessados nos negócios públicos do que os partidos. Mas isso era assim apenas na aparência, pois o verdadeiro objetivo de todo "partido acima dos partidos" era promover um interesse particular até subjugar todos os outros, e fazer com que um grupo particular se apossasse da máquina do Estado. Foi isso o que finalmente ocorreu na Itália sob o fascismo de Mussolini, que até 1938 não era totalitário, mas apenas uma ditadura nacionalista comum, que havia evoluído logicamente a partir de uma democracia multipartidária. (...) É óbvio que, após muitas décadas de governo multipartidário ineficiente e confuso, a tomada do poder por um só partido pode parecer um alívio, pois garante pelo menos, se bem que por tempo limitado, certa coerência, certa permanência e um pouco menos de contradição." (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.355)
Se essas linhas não são suficientemente claras a respeito dos perigos que corremos nesse momento, talvez as observações feitas por Hannah a respeito dos 'movimentos' que precedem o 'movimento nazista' possam nos ajudar a enxergar a gravidade dos fatos que nos circundam nos últimos anos.
"A invenção decisiva dos movimentos de unificação, portanto, não foi o alegarem estar fora e acima dos sistema partidário, mas sim o fato de se chamarem de "movimentos", sua própria denominação refletindo a profunda desconfiança nos partidos, tão corrente na Europa desde o fim dos século XIX que, nos dias da República de Weimar, "cada novo grupo achava que a melhor maneira de se legitimizar e apelar às massas era insistir em que não era um 'partido', e sim um 'movimento'" (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.349)
Nos anos 2000 surgem diversos grupos que passam a se denominarem 'Movimento alguma coisa' e que, depois de 2013, ganharam destaque no cenário político brasileiro surfando na onda das insatisfações populares: Movimento Viva Brasil, Movimento vem pra rua; Movimento endireita Brasil e, talvez, o mais barulhento de todos o Movimento Brasil Livre, que teve papel fundamental nas manifestações pró-impeachment, em 2016. Esses movimentos de agora têm em comum com aqueles citados por Arendt o fato de "tirar partido do profundo ódio do povo contra essas instituições, que supostamente o representavam" (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.350). Os vídeos, memes e demais intervenções protagonizados, principalmente, pelo MBL, são marcados por um discurso de intolerância e de ódio que tem canalizado as frustrações de uma parcela considerável da população. Não obstante a se apresentarem como um Movimento e criticarem os partidos políticos e a política tradicional, ditos corruptos e criminosos, já nas eleições de 2012, membros desse movimento se filiaram a partidos como PSDB, DEM e PMDB e participaram do pleito, assim como o fazem nas eleições de 2018. Mais uma vez, percebemos semelhanças lá e cá. Segundo Arendt, "também o partido fascista insistiu em que era um movimento. Mas não o era; havia meramente usurpado a expressão 'movimento' para atrair as massas, como se evidenciou logo que se apossou da máquina do Estado (...)" (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.356)
Também é público e notório que o MBL tem cada vez mais se aproximado do candidato à presidência Jair Bolsonaro. A chapa formada pelo capitão reformado, Jair Bolsonaro e pelo general da reserva, Hamilton Mourão, ilustra outra característica em comum do momento político brasileiro com a Itália da primeira metade do século XX: "os fascistas se utilizavam do Exército, com o qual se identificavam, como se haviam identificado com o Estado. Queriam um Estado fascista e um Exército fascista, mas que ainda fosse um Exército e um Estado;" (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.358). As declarações de Mourão não escondem seu espírito antidemocrático, assim como a mais recente declaração de Bolsonaro de que não aceita outro resultado nessa eleição que não sua vitória, são mais do que evidências de que entregar o país na mão dessa chapa significa caminhar em direção a um regime autoritário. Mais uma vez, olhar para o passado parece um exercício fundamental para que os mesmos erros não se repitam:
"O colapso do sistema partidário europeu ocorreu de modo espetacular com a subida de Hitler ao poder. Hoje, muitas vezes esquece-se de que, quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos países europeus já havia adotado alguma forma de ditadura e se afastado do sistema partidário, e que essa revolucionária mudança de governo ocorrera na maioria dos países sem qualquer agitação revolucionária." (Origens do totalitarismo, Campanhia de Bolso, 2012, p.363)
Os caminhos que nos trouxeram a esse atual cenário são tortuosos e acredito que será preciso algumas décadas de distanciamento no tempo para que possamos ter uma compreensão apropriada dos fenômenos. Qualquer tentativa de explicar o que passou no Brasil nos últimos anos pode cair em erros grosseiros, em reducionismos apaixonados. Independente disso, é urgente nos unirmos num esforço conjunto de barrarmos repetições catastróficas do passado. Ao pedir intervenção militar, ao apoiar claramente discursos antidemocráticos e autoritários, uma parcela considerável da população nos empurra para o abismo. Mas ignorar os motivos que essas mesmas pessoas hoje apresentam para fazer essa escolha, pode ser tão perigoso quanto. Reduzir os eleitores do Bolsonaro à machistas, racistas e homofóbicos é um erro que estamos cometendo. É bem verdade que uma parte do seu eleitorado não tem problema em se assumir como machista, racista e homofóbico. Mas não são todos. Há também uma parte considerável de seus eleitores que estão expressando a mais profunda insatisfação com a política, que se sentem excluídos e não representados pela política. São pessoas que temem por seus empregos, que temem por sua segurança, que se sentiram abandonados pela política. Pessoas que estão, desesperadamente, buscando uma mudança. Ora, uma ditadura é uma mudança. Certamente não é a mudança que eu quero. Mas os agentes políticos estão falhando em mostrar para essas pessoas que há opções de mudanças, mudanças que não precisam romper com a democracia.
Temos uma semana para tentar mostrar para uma parte considerável da população brasileira que o pleito não está dividido entre Mudança x Mais do Mesmo; entre Honestidade x Corrupção; entre Cidadão de Bem x Apoiadores de Corruptos. É preciso evidenciar que essas fórmulas são reducionistas e falaciosas. Se não conseguirmos fazer isso, o futuro estará logo ali atrás, e suas consequências tendem a ser bem democratizadas.
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