domingo, 19 de julho de 2020

Dica de leitura: Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem

"O que mais me deixava estupefata não era tanto as palavras que diziam, mas a maneira como as diziam. Parecia que eu não estava lá, em pé, na entrada  da sala. Falavam de mim e ao mesmo tempo me ignoravam. Elas me riscaram do mapa dos humanos. Eu era ausência. Um invisível. Mais invisível que os invisíveis, pois eles ao menos detinham um poder que todos temiam. Tituba, Tituba não tinha mais que a realidade que aquelas mulheres queriam lhe conceder. (...)
Tituba se tornava feia, grosseira, inferior, porque elas assim tinham decidido. Eu saí para o jardim e fiquei ouvindo seus comentários que provavam, enquanto fingiam me ignorar, o quanto tinham me examinado de cima a baixo." (Condé, Maryse, Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem).
 
Maryse Condé em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem, de 1986, nos convida a revisitar um episódio histórico, ocorrido nos EUA, no século XVII, e que já foi contado no cinema e no teatro: as bruxas de Salem. Sob forte influência do puritanismo, um vilarejo se vê diante da condenação de pessoas acusadas de bruxaria, na maioria mulheres. Entre elas estava Tituba, uma mulher negra escravizada, originária de Barbados. No entanto, nada mais sabemos sobre essa mulher. Os registros daquele triste episódio não tinham lugar para a história de uma mulher negra escravizada. E é esse o mote de Condé, em Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem: dar voz a essa mulher invisibilizada, torná-la protagonista de sua própria história, ainda que numa obra de ficção.

O livro de Condé é um exercício de imaginação e de reparação. Nesse sentido, são suas provocações, seu desafio constante à historiografia oficial, seu esforço para trazer questões tão caras à academia em tempos mais recentes, seja na História ou nas Ciências Sociais, que tornam o livro uma leitura muito atual e, portanto, uma leitura necessária em tempos de Black lives matter.

Como literatura, em vários momentos a narrativa carece de verossimilhança. Tituba, como personagem, para além das contradições que nos fazem humanos, em alguns momentos não nos convence - pelo menos não me convenceu. Alguns diálogos soam artificiais, como o diálogo entre Tituba e Hester na prisão. Apesar disso, as temáticas abordadas são riquíssimas e nos desafiam a pensar o ontem e o hoje sem meias palavras. Ao mesmo tempo, a narrativa em primeira pessoa nos brinda muitas vezes com diálogos e descrições extremamente poéticos e bonitos.
"Peguei o hábito de atravessar a floresta a passos largos, pois cansando meu corpo, parecia que eu cansava também meu espírito e assim encontrava um pouco de sono. A neve embranquecia as trilhas e as árvores, com galhos nodosos que pareciam esqueletos. Um dia, ao entrar numa clareira, tive a impressão de chegar a uma prisão onde as paredes de mármore se fechavam ao meu redor. Eu podia ver o céu branco perolado por um buraco estreito acima da minha cabeça, e pareceu que a minha vida terminaria ali, envolvida naquela mortalha cintilante. Então, meu espírito poderia encontrar o caminho para Barbados?"
Em outros momentos, como já na abertura do livro, a denúncia das violências a que os negros e, principalmente, as mulheres negras, foram sujeitados durante o horror da escravização vem numa linguagem direta e potente, que nos acerta como um soco no estômago - palavras de uma participante do Literateia_Clube, do qual tenho o prazer de fazer parte e no qual discutimos o livro no último sábado.
"Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo."
Num primeiro momento, Tituba se recusa a aceitar o título de bruxa, afinal, seus dons eram usados para curar, para cuidar, enquanto aqueles que a acusavam de bruxaria com isso queriam associá-la ao mal, a satanás, ao demônio. É a própria Tituba que assim nos fala: "... nesta sociedade, eles dão à função de "bruxa"  uma conotação errônea. A "bruxa", se vamos mesmo usar essa palavra, corrige as coisas, endireita, consola, cura...".

E é justamente na acepção que Tituba dá ao termo bruxa que ela irá se reivindicar como "Bruxa Negra de Salém". Por um lado, foi na condição de bruxa que Tituba foi, momentaneamente, vista publicamente. Ou seja, foi a acusação de bruxaria que deu a Tituba uma visibilidade que até então lhe era recusada. Mas nem mesmo a condição de bruxa foi capaz de lhe garantir um lugar na História. Agora, na ficção, pelas mãos de Condé, Tituba subverte a fala daquela sociedade que não a reconheceu na sua identidade, que não a compreendeu e que condenou sua arte, não por ela mesma, mas tomando-a sob o signo de um Mal que lhe era estranho. Ao subvertê-la, Tituba assume, já a partir do título, a condução de sua própria narrativa. Trazendo sentidos, significados e um modo de ver e estar no mundo que lhe é próprio e que não estaria mais na dependência daquele outro que lhe negava humanidade. O espelho de Tituba está nos olhos de Condé - ou seria Tituba o espelho no qual Condé pôde ver refletido toda a problemática da mulher negra, não lá no século XVII, mas até os dias de hoje?

Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem é uma leitura que incomoda e só por isso já garante o seu lugar entre as boas leituras que deveriam compor esse tecido essencial que a leitura e a literatura, em especial, nos oferecem como possibilidade de nos humanizar mais e mais.
 

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