"Um dia, meu irmão Zezé perguntou a o nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dai retirávamos nosso sustento." (Junior, Itamar Vieira, Torto Arado, p.185).
A resposta do pai aos questionamentos do filho Zezé não poderia ser mais dura nem mais fiel à realidade de tantas famílias de despossuídos nesse país gigante pela própria natureza, onde abunda-se riqueza, mas apenas alguns poucos, desde tempos já esquecidos, podem dela usufruir, eternamente deitados em berço esplêndido: "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento." "Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu".
Somos introduzidos às histórias de Torto Arado por uma cena cortante na sua simbologia: duas irmãs, crianças, movidas pela curiosidade infantil e instigadas pela interdição de mexer nos pertences da avó, se veem, de repente, marcadas pelo sangue que brota de suas bocas, dilaceradas por uma faca. A travessura de criança acaba por condenar uma das irmãs ao silêncio.
Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, filho da velha Donana, é curador e líder dos trabalhadores que vivem na fazenda Água Negra. Homem respeitado por todos; sua casa é sede das brincadeiras do Jarê, mas é também uma espécie de hospital para os males do corpo e da alma. Zeca e Salu, sua esposa, recebem e cuidam dos que chegam em busca de cura. O conhecimento das ervas e a intervenção junto aos encantados vêm de longa data, quando Zeca ainda era jovem e herdou a missão que sua mãe rejeitou.
Embora muitas vezes Zeca Chapéu Grande possa nos parecer acomodado com a situação a que está sujeitado, ao trabalho sem salário, à morada precária, à apropriação por parte do fazendeiro daquilo que sua família produzia para o sustento próprio, pequenas ações, como sua vitória em conseguir que o prefeito construísse uma escola para as crianças de Água Negra e seu desejo de que seus filhos e as demais crianças tivessem uma educação, nos fazem ter esperança numa mudança daquela realidade.
Severo e sua prima Bibiana encarnam as mudanças que, tardiamente, chegam até os moradores de Água Negra. Aos poucos, a consciência da injustiça e da exploração a que estavam submetidos irá ganhar espaço entre as novas gerações, desafiando o sentimento de gratidão que mantinha os mais velhos presos à condição de escravizados mesmo décadas após a abolição. A revolta de Severo e sua formação política são bem construídas e nos falam da importância da ação coletiva, do papel de sindicatos e associações, da valorização e resgate da memória e da história como potência de transformação. Bibiana se torna professora, dá sequência ao sonho de Zeca de levar educação às crianças de Água Negra.
Itamar nos apresenta personagens complexos e explora as contradições que nos constituem como humanos. Sem romantizar o povo negro, nos fala de violência de gênero e da condição das mulheres no trabalho e na casa. As personagens têm seus segredos e, por isso mesmo, não são planas. A profundidade do romance está em sua simplicidade e honestidade ao tirar do silêncio personagens que tiveram suas línguas, suas famílias, sua história, por tanto tempo, decepadas.
Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, é uma leitura daquelas que nos conecta com o Brasil, com os Brasis, principalmente aqueles dos cenários rurais, dos interiores, das gentes simples, sofridas, das gentes que ao longo dos séculos de história desse país permaneceram sem voz e sem vez. Torto Arado é potente na sua denúncia da permanência da escravidão e da exploração do povo negro, mas é também poético ao nos apresentar a riqueza do imaginário místico religioso dos encantados e encantadas do Jarê. É rico na descrição das paisagens do sertão baiano, seus animais, sua vegetação, mas também na descrição das marcas da vida no corpo dos trabalhadores e trabalhadoras que cultivam uma terra cujos possuidores insistem em deixar claro jamais poderá lhes pertencer. A história de Bibiana, Belonísia, Zeca Chapéu Grande, Severo, é a história de uma parte do Brasil que precisa ser contada, precisa ser conhecida, para que possamos, quem sabe, virar a página do racismo e da desigualdade na qual, em 2020, ainda nos encontramos.
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Agradeço a querida Fabiana Tonin que me presenteou com este livro! Na vida, há encontros que também são presentes. Considero o nosso, no ambiente do trabalho, um desses presentes. Como colegas de trabalho partilhamos projetos, angústias e alegrias na construção diária de uma educação pública de qualidade. E para além do trabalho, temos compartilhado muita conversa boa a partir da literatura. Em tempos de distanciamento, de pandemia e de pandemônio, sempre que possível faça-se presente através de um bom livro para aqueles que você ama! Dê livros de presente!
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