(Aviso de spoilers da terceira temporada)
Embora muitos tenham considerado a última temporada a consagração da
série alemã, ela não me convenceu totalmente. Além de não responder
muitas perguntas deixadas pelas temporadas anteriores, a quantidade de
informação nova introduzida na terceira temporada faz com que o ritmo da
série fique comprometido. Infelizmente a última temporada de Dark não tem a mesma qualidade das
duas temporadas anteriores.
Pode-se destacar positivamente as atuações dos atores, que estão muito boas na última temporada. Também a fotografia
e a trilha sonora
são excelentes e mantêm a qualidade que vinham apresentando nas temporadas anteriores. Outro ponto positivo é a estratégia
para marcar a mudança de mundos que funciona muito bem. Os diálogos entre as versões jovem, adulta e velha da Martha do mundo
B
muitas vezes parecem um repeteco dos diálogos entre Jonas e Adam e
entre as versões jovem e adulta de Jonas que vimos na primeira e segunda temporadas. O desfecho de alguns personagens chega a ser
extremamente cruel, como é o
caso de Katharina, que volta para 1986, encontra Ulrich no hospício e,
ao tentar tirá-lo de lá, é morta pelas mãos de sua própria mãe. Com relação ao mundo B, embora ele seja muito semelhante ao mundo A, de
Jonas, encontramos muitas mudanças nas relações entre personagens que
não chegam a ser devidamente exploradas e, portanto, em vários momentos,
alguns desfechos parecem muito superficiais. Um exemplo é a ida do
Ulrich do mundo B para o passado seguindo Helge. Como as coisas não
acontecem exatamente da mesma maneira nos dois mundos, faltam elementos
para dar verossimilhança às sequências que são apresentadas. Além disso, os dois capítulos finais recorrem a informações e elementos novos que foram muito rapidamente apresentados, deixando a sensação de que poderiam ter feito pelos menos um episódio a mais para que essas ideias fossem desenvolvidas a contento. E, apesar da sensação de que muitas referências acabaram perdidas na última temporada, ainda dá pra falar de filosofia, então, vamos ao que interessa.
A última temporada de Dark se inicia com um trecho do filósofo
Arthur Schopenhauer (Finalmente!):
“O homem é livre para fazer o que quer, mas não para querer o que quer”.
Embora tenha sido a primeira citação direta ao filósofo, muitas outras
ideias de Schopenhauer se fizeram presentes nas falas de Adam ao longo da
série,
principalmente a ideia de que a vida é dor, sofrimento, causados por
desejos
que não estariam sob nosso controle. No entanto, o último episódio deixa
uma sensação de que perdemos algo pelo caminho ou simplesmente de que
mudamos totalmente a perspectiva das temporadas anteriores. De
última hora, uma natureza bem mais colorida, cores claras e uma ideia
de felicidade pautada na amizade parecem preencher todo o espaço ocupado
pelo pessimismo existencial de Adam que perpassa as duas temporadas e que continua em boa parte da
terceira temporada, e eis que somos levados a uma espécie de paraíso, como sugere o título do episódio final.
Mas o que seria o paraíso? Um mundo sem Jonas e sem
Martha, afinal a existência dos dois seria um erro, como Claudia revela para Adam. Até aí era algo que poderíamos esperar depois do final da
segunda temporada. O que não parece fazer muito sentido é o paraíso materializado
em meia dúzia aleatória de personagens numa ceia intimista que, na
ausência de Jonas e Martha, teriam uma vida feliz (nesse sentido, podemos observar que são justamente os personagens que tiveram as histórias e desfechos mais trágicos nos dois mundos que aparecem, tirando Woller, com certeza uma piada interna da série...). Teriam os produtores de Dark apostado num final mais palatável ao
grande público? Será que Dark, no fim, não quis ser tão dark assim? Mas
se as duas temporadas, com seu ambiente sombrio, pessimista e com
pitadas de tragédia grega tinham feito tanto sucesso, por que mudar? Ou
será que não mudou? Será que as referências à mitologia, à
religião, à filosofia teriam sido simplesmente jogadas na série? Foram pistas falsas deixadas no caminho para confundir os
espectadores? Ou elas podem nos ajudar a entender o final da série?
Pensando nas perguntas que deixei no final do texto "Como Schopenhauer e Nietzsche podem nos ajudar a entender a série Dark - Parte 1", a saber, "somos livres ou nosso destino já está traçado? Jonas poderá mudar o rumo da sua história ou está condenado a se tornar Adam?", parece que a série optou por dizer sim e não para a segunda questão, mas isso não significa dizer que somos livres... Nesse sentido, a pergunta que formulei no texto "Como Schopenhauer e Nietzsche podem nos ajudar a entender a série Dark - Parte 2", como correção das primeiras questões - Qual o destino de Jonas? - não faria sentido, afinal, não haveria um destino pronto, mas algumas possibilidades de destino. Ou talvez fosse melhor dizer: Jonas vai e não vai se transformar em Adam. Mas, de todo modo, tanto numa possibilidade quanto na outra, há cadeias causais determinadas e um desfecho único para cada uma delas: numa, Jonas é resgatado por uma versão da Martha do mundo B, levado para o mundo dela, mas em seguida assassinado por uma outra versão da Martha B e, portanto, não se torna Adam; na outra, a Martha do mundo B não resgata Jonas, uma versão mais jovem de Jonas é conduzido por Claudia ao pós-apocalipse e ele se transforma em Adam. No entanto, a série nos surpreende com uma terceira possibilidade: Jonas se transforma em Adam, mas uma das versões de Claudia conta para ele que descobriu um jeito de impedir que Jonas e Martha e seus respectivos mundos existam. E então somos apresentados a um terceiro mundo ou mundo originário, no qual o velho Tannhaus, ao construir uma máquina do tempo para tentar impedir as mortes de seus filho, nora e neta, acaba criando os mundos de Jonas e Martha. Portanto, esse seria o nó buscado por Adam e que, uma vez rompido, poderia cessar todo sofrimento de Jonas, Martha e demais personagens.
Uma questão importante é a seguinte: o encontro entre Claudia e Adam no qual ela revela a existência do mundo originário já aconteceu antes? Ou melhor, esse encontro é único ou também irá se repetir? Ao impedir a morte da família de Tannhaus, os mundos de Jonas e Martha serão eliminados e é isso, o fim? Ou estaria esse terceiro mundo conectado aos dois outros de modo que também ele faria parte de um eterno retorno? Afinal, ouvimos tanto que 'o fim é o começo e o começo é o fim' que fica difícil engolir essa de 'paraíso sem Jonas e sem Martha'. A série só permanece fiel às temporadas anteriores se estiver dizendo, de algum modo, que os ciclos não se encerraram. Poderíamos pensar que o mundo originário, também ele sujeito ao eterno retorno, intercalaria ciclos no qual Jonas e Martha salvam o filho do Tannhaus com ciclos no qual o filho do Tannahus morre e, portanto surgem os dois mundos. Talvez a cada 33 anos, o mundo originário volte, sendo que já no ciclo seguinte os dois mundos o substituem novamente - a triquetra então, não estaria relacionada às três épocas (1953 -1986 -2019), mas sim aos três mundos, que estariam infinitamente conectados e sujeitos à repetição. Não domino os conceitos físicos explorados na série, então, pode ser que eu esteja falando besteira. Essa aparição do terceiro mundo me pareceu forçada e pouco explorada, calcanhar de Aquiles da terceira temporada.
Minha hipótese de que não se tratava de uma briga entre o Bem e o Mal, mas um confronto entre duas visões de mundo, uma schopenhauriana e outra nietzschiana, não parece de todo errada. Eva, a versão anciã de Martha B, de fato pode ser entendida como Ariadne e foi ela quem guiou Jonas-Adam a fim de que garantir o eterno retorno de tudo. Enquanto Adam pensava estar agindo para acabar definitivamente com os dois mundos, Eva garantia que as escolhas dele assegurassem que tudo iria acontecer de novo e de novo. No entanto, na série, podemos ver o Sem-Nome, filho de Martha e Jonas, como sendo o Minotauro, o monstro que Jonas-Adam quer destruir, mas que Ariadne-Martha-Eva escolhe salvar. Jonas-Adam seriam ao mesmo tempo Dionísio e Teseu: enquanto Dionísio, Jonas é o par perfeito de Martha; enquanto Teseu, ele a abandona. Na série, Ariadne conduz Teseu pelo labirinto, mas o engana, e embora Adam-Teseu acredite destruir o Minotauro, Eva-Ariadne cuida para que ele esteja salvo, garantindo assim que tudo aconteça como sempre aconteceu. E sendo assim, enquanto Adam-Schopenhauer recusa a dor e o sofrimento e decide botar fim à vontade/desejo que os originava (abre mão de Martha e tenta por fim ao mundo), Eva-Nietzsche aceita a dor e o sofrimento, assim como as alegrias e diz sim à vida dela e do seu filho, aceitando o eterno devir.
Para quem viu na terceira temporada de Dark a revelação de uma "história de amor", eu diria que trata-se de uma história sobre "egoísmo", do quanto cada um está apegado ao seu próprio querer, uma vez que o amor seria só uma grande ilusão, a maior de todas as peças que a 'vontade cega' prega no ser humano. No limite, não há sentido ou razão para os desejos que estão por trás das nossas ações e que, na maioria das vezes, trazem dor e sofrimento muito mais do que satisfação. Em outras palavras, nossas ações, por mais complexas que pareçam, por mais que sejam resultado de muito raciocínio e cálculo, não seriam outra coisa além do nosso esforço para realizar aquilo que queremos. Mas esse querer está, na maior parte do tempo, oculto para nós mesmos, não temos consciência dele, apenas somos movidos pelo querer ou pelo desejo. Jonas queria/desejava Martha, Hannah desejava alguém que não a abandonasse, Ulrich desejava aventuras, Claudia queria que Regina vivesse ou, talvez, Claudia queria viajar no tempo, mas se sentia culpada por ter abandonado a filha e transformou essa culpa numa motivação para seguir viajando no tempo, Eva desejava que seu filho vivesse... Num determinado momento, Jonas, tomando consciência de que seu desejo só gerava mais dor e sofrimento (“A dor é seu navio,o desejo é sua bússola.”, disse Adam na segunda temporada), abre mão desse querer, porque compreende finalmente que só assim estará livre de toda dor e de todo sofrimento.
"O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente renovados para desejar e querer; pelo contrário, aquele que penetra a essência das coisas, que domina o conjunto, chega ao repouso de todo desejo e de todo querer. Dai em diante, a sua vontade desvia-se da vida, repele com susto os gozos que a perpetuam. O homem chega então ao estado de renúncia voluntária, da resignação, da tranquilidade verdadeira, e da ausência absoluta de vontade". Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo.
Quanto à cena final, aquele jantar alegre, colorido e nada a ver com
Dark, tendo a interpretá-la como uma provocação, um lembrete de que a
felicidade seria algo passageiro e ilusório. De que para cada momento de
felicidade haveria dois outros de dor e sofrimento (para cada mundo originário, paraíso, haveria dois mundos de desencontro, dor e sofrimento). Para que aquelas
seis pessoas pudessem estar ali, dúzias de pessoas foram sacrificadas (afinal, como ouvimos no trailer da terceira temporada: "Cada decisão a favor de algo é uma decisão contra outra coisa"). O déjà vu de Hannah, na cena final, é justamente a descrição do cessar da vontade cega e irracional, por trás de cada ação e escolha que levaria a todo tipo de dor e sofrimento experimentado pelos indivíduos, ainda que limitado àqueles que desapareceram com os mundos A e B. Esse seria o verdadeiro paraíso, a não existência, livre de todos os impulsos da vontade, livre, finalmente, de toda dor e todo sofrimento. Só aqueles que não cometeram o maior dos delitos, nascer, não serão castigados...
Afinal, dá para pensar num mundo sem nenhuma dor ou sofrimento? É crível uma existência feliz o tempo todo? Haveria lugar para uma felicidade permanente para esses personagens que restaram em Winden? Ou estaria Winden e seus habitantes condenados a pendular entre esse mundo originário e os outros dois mundos, entre o tédio e o desespero, polos entre os quais, segundo Schopenhauer, a existência humana se alterna? Estaria o paraíso ameaçado? Talvez a
ausência momentânea de luz durante o jantar, na cena final, seja um
lembrete disso: felicidade é, quanto muito, a ausência de dor e
sofrimento, mas isso seria momentâneo. O desaparecimento dos mundos A e B não pode ser considerado um desfecho feliz, uma ruptura com o eterno retorno, mas apenas o início de outro ciclo, interligado com os outros ciclos dos mundos A e B, também ele marcado por dor e sofrimento, ainda que sejam outras dores e outros sofrimentos...
Um comentário:
Gostei do texto, Fran! Concordo que algumas partes da terceira temporada ficaram arrastadas (o repeteco dos diálogos entre as versões jovem, adulta e velha da Martha) e que a introdução de novos elementos só no finalzinho ficou corrida demais!
Considero que sua hipótese do confronto da visão schopenhauriana e outra nietzschiana ficou explícita na oposição Eva e Adam! E, na minha interpretação, o desfecho sugere que os mundos pautados nessas duas visões continuarão existindo e se revezando infinitamente. No mundo que não tem Jonas e Martha o acidente ocorre e eles passam a existir, de modo que o ciclo sempre se reinicia e sempre é quebrado...
Sobre o final, tendo a ficar com sua interpretação de que o desaparecimento dos mundos A e B são só o início de outro ciclo, marcando de novo dor e sofrimento.. Acho que dark continuou sendo dark!
Obrigada pelo texto e pelos elementos filosóficos pra pensar quando eu rever a terceira temporada (pretendo!).
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