sexta-feira, 19 de junho de 2020

Ferramentas tecnológicas, metodologias de ensino-aprendizagem e as modalidades presencial e não presencial de ensino



Mais um texto que surge de angústias diante das recentes confusões que insistem em permear os debates sobre os caminhos da educação no contexto da pandemia do coronavírus. Para começar, ao adotar ensino remoto ou ensino não presencial, é preciso que fique bem claro que as instituições estão operando uma mudança de modalidade de ensino. A legislação brasileira hoje reconhece o ensino não presencial como uma modalidade e, para se referir a essa modalidade, correntemente usamos a sigla EaD - Ensino a Distância.

No entanto, as práticas consolidadas de EaD atendem a critérios e requisitos próprios dessa modalidade. Com isso quero dizer que um curso ou disciplina pensados originalmente para ser desenvolvidos na modalidade presencial serão totalmente diferentes de um curso ou disciplina pensados para ser desenvolvidos na modalidade EaD. E isso vai além das ferramentas tecnológicas a serem utilizadas ao longo do curso ou disciplina. Por isso tenho resistência em dizer que, no contexto da pandemia, o que as escolas estão fazendo é EaD. Podemos usar termos como 'ensino remoto' ou 'ensino não presencial', embora eu preferisse que ambas viessem acompanhadas do termo 'emergencial', para deixar bem claro que nossos cursos e disciplinas presenciais não foram pensados para ser EaD e que não faz sentido acreditar que do dia para a noite, como aconteceu em várias instituições e com vários professores, eles viraram EaD. Isso é rebaixar a modalidade EaD e o trabalho de profissionais e instituições sérios que têm se dedicado a essa modalidade. Ao marcar que é 'emergencial', podemos ganhar em clareza sobre o que realmente está acontecendo e o que estamos fazendo ou tentando fazer. 

É bastante possível e, de fato acontece, que, num curso presencial, o professor e os alunos façam uso de ferramentas como computador, notebook e celular para desenvolver atividades, pesquisas ou projetos. Um professor pode levar um vídeo para servir de ponto de partida para uma discussão em aula ou mesmo propor aos alunos que produzam um vídeo sobre um determinado assunto abordado em aula; professores e alunos podem se comunicar através de e-mail ou outras plataformas de comunicação. Mas o papel desempenhado por tais ferramentas num curso presencial e num curso não presencial é bem diferente. Além disso, o uso dessas e de outras ferramentas não pode ser confundido com metodologia de ensino. Não podemos esquecer que os livros, cadernos, lápis, lousa, são ferramentas tecnológicas, no limite, o meu corpo é uma ferramenta importantíssima no processo de ensino-aprendizagem.

Quando falamos de metodologias de ensino - sim, existem muitas e variadas metodologias - estamos pensando no como o processo ensino-aprendizagem será efetivado. Uma aula expositiva, trabalho em grupo, resolução de problemas, aulas invertidas, projetos de pesquisa, debate, estudo do meio, aula dialogada, dramatização, são exemplos de metodologias. Por trás de cada uma delas há muitas concepções importantes e que têm impactos no processo ensino-aprendizagem: epistemológicas (como aprendemos, como o conhecimento é construído); políticos e sociais (qual o papel da escola na sociedade, que aluno estamos formando), éticos (que valores estão sendo priorizados, formados). Desde o final do século XIX, há correntes de educadores que falam de metodologias que seriam "tradicionais" e a elas contrapõem metodologias "novas", "inovadoras", "ativas". São muitos os adjetivos. E, embora haja interferência entre a metodologia adotada e as ferramentas mais adequadas para desenvolver essa metodologia, ferramentas tecnológicas, modernas, inovadoras, não garantem por si só que teremos adotado uma metodologia não tradicional. Para ficar em um exemplo, se, no contexto da pandemia, uma instituição adota o uso de videoaulas gravadas e disponibilizadas para os alunos, esse seria um caso de algo muito tradicional: uma aula expositiva, na qual o professor, detentor do conhecimento, oferece ao aluno, passivo, esse conhecimento.

Ao adotar ensino não presencial emergencial, estamos adotando uma mudança de modalidade. Ainda que, dado o contexto, dificilmente possamos falar de EaD, no sentido que se entende EaD correntemente e respeitando todas as suas especificidades. Com essa mudança, se tivermos as condições para tal, ferramentas tecnológicas como computador, notebook e celular passarão a desempenhar um papel mais preponderante no processo de ensino-aprendizagem. Ao assumir um ensino não presencial emergencial temos que estar cientes de que, devido às condições de alunos e professores, isolados em casa, com demandas e rotinas alteradas pela emergência sanitária causada pelo coronavírus, muitas de nossas concepções metodológicas ou, de modo mais amplo, de educação, estarão comprometidas e até mesmo interditadas. Para ficar em um exemplo: para um professor cuja prática está totalmente marcada por uma concepção dialógica de educação – e isso implica muito mais do que sincronicidade – certamente sua prática estará comprometida. Sem poder ver seus alunos, sem conseguir estabelecer conexão visual com o grupo e o grupo entre si, certamente o diálogo possível será muito limitado - seja ele por chat ou outra ferramenta possível.

O meu ponto nesse texto não é atacar instituições nem profissionais, muito menos demonizar as alternativas que estão sendo construídas para enfrentarmos esse momento de exceção, mas apenas chamar a atenção de professores e demais profissionais da educação para a importância de termos mais clareza sobre os conceitos que adotamos. Pois o uso pouco rigoroso desses conceitos pode afetar diretamente as práticas que serão desenvolvidas ou que serão esperadas nesse contexto de exceção e, principalmente, no contexto pós-pandemia, comprometendo, portanto, o próprio processo de ensino-aprendizagem e os direitos dos alunos que agora queremos preservar.

Essas confusões conceituais podem também favorecer grupos e agentes públicos que tratam a educação como mais um serviço, cujos custos podem ser barateados. Se há instituições sérias que hoje se empenham em promover cursos na modalidade EaD de qualidade, sabemos que há muitas outras que vendem "gato por lebre", que não têm compromisso com os profissionais da educação e que estão de olho apenas em "fatias de mercado" ainda não exploradas. Mesmo no setor público, tanto na esfera Federal - Future-se - como em esferas estaduais - Novo Ensino Médio de São Paulo - encontramos projetos que flertam com a privatização, com "soluções" aligeiradas para os desafios relacionados a qualidade da educação, que apostam em "tecnologia" como se essas, por si só, fossem solucionar os nossos problemas. Por isso, devemos estar atentos às palavras e expressões escolhidas para nomear as práticas desses tempos de exceção e precisamos sempre nos perguntar sobre as possíveis consequências dessas escolhas.

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Agradeço aos amigos que me deram retornos com questionamentos, sugestões, correções e me ajudaram a amadurecer as ideias.


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