O que é familiar para você? Que palavras, quando você ouve, acionam suas memórias e seus afetos? Escangalhar, na verdade, escangaiá, é uma palavra que me leva para perto da minha avó materna. "menino, não faz isso, você vai escangaiá as minhas flores" - ouço ela dizendo para os netos. "Eita credo, o Bá só sabe escangaiá carro, não tem cuidado", falando do meu tio. E se era para falar dos meus tios, ela ia dizendo: "as criança vão chegar daqui a pouco", as crianças de 40, 50, quase 60 anos...
Mas eu repito a pergunta? O que é familiar para você? Que palavras, quando você ouve, te transportam no tempo, para décadas atrás em um segundo? Que expressões possuem a capacidade de te fazer sentir em casa? Em Léxico familiar, de Natália Ginszburg, depois de algumas dezenas de páginas, você começa a se sentir em casa. E as repetidas expressões dos pais, dos irmãos e dos amigos vãos nos tornando íntimos dos personagens, despertando nossas simpatias e antipatias.
Natalia nos conduz pelas memórias de uma família italiana, de origem judia, num período que vai do entreguerras aos primeiros anos pós segunda guerra. Da infância à vida adulta, somos conduzidos por uma narradora que pouco ou nada nos fala de si. O que sabemos dela é o que os outros dizem. São as palavras e expressões dos outros que, de algum modo, nos colocam no lugar familiar da narradora. O surgimento do fascismo, o regime fascista, a perseguição aos judeus, as prisões de familiares e amigos, são episódios que aparecem na narrativa para nos sintonizar temporalmente, mas que não são explorados amiúde. Afinal, esses fatos marcam justamente os distanciamentos, os momentos vividos na solidão, nos quais a possibilidade de construir algo familiar estava interditada. Também podemos pensar que, sobre esses episódios, o silêncio, o não dito, a ausência de palavras, diz muito mais do que qualquer palavra seria capaz de dizer sobre a violência sofrida, o medo sentido, as vidas interrompidas.
Em alguns momentos, a mesmice do cotidiano pode adquirir um peso insuportável, quando nos faz perceber que a vida segue, mesmo enquanto há uma guerra, enquanto pessoas morrem, enquanto um ditador governa. Em certo momento lemos:
"Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo".
Impossível ler esse trecho sem nos perguntar o que estamos fazendo nós, agora, quando mais de 125 mil brasileiros morreram, no meio de uma pandemia, com um governo claramente autoritário usando a máquina pública para perseguir humorista, jornalista? Que páginas escreveremos sobre nós, nesse momento turbulento da nossa história, quando olharmos para trás? Sim, a vida segue, como grosseiramente disse Bolsonaro, em mais uma demonstração de sua incapacidade de demonstrar qualquer tipo de solidariedade com as milhares de famílias que choram seus mortos. A vida segue, e a banalidade dessa constatação pode pesar muito. E nunca os amigos, a família, os nossos cantos de aconchego foram tão importantes para que possamos suportar esse peso. Uma ligação, uma foto, uma reunião ainda que cada um num lugar, a possibilidade de compartilhar, ser com o outro, eis a grande potência que podemos aprender com Léxico familiar.
O livro de Ginzburg pode nos parecer, num primeiro momento, uma narrativa despretensiosa sobre memórias de uma família italiana de classe média, com suas manias, seus preconceitos, seus privilégios, numa longa reunião de domingo. Mas também pode ser lido como um elogio à amizade e ao afeto, duas formas poderosíssimas de resistência em tempos sombrios.
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