Livro para mim é livro, papel, para mim não tem essa de livro digital. O objeto livro é fundamental na experiência da leitura. Desde criança, quando começou minha aventura com a leitura, eu gosto de carregar o livro, de cheirar, de abraçá-lo. Sim, eu posso parecer um tanto esquisita. Mas depois que termino a leitura, principalmente quando eu gosto muito do livro, tenho dificuldade de simplesmente colocá-lo na estante e pegar outro. Eu passo uns dias acariciando o livro lido, relendo alguns trechos de maneira aleatória.
Um dos meus contos favoritos da Clarice Lispector é Felicidade Clandestina. Choro sempre que leio de novo. E já li muitas vezes. (Acabo de me dar conta de que o meu Felicidade Clandestina está emprestado. Se estiver com alguém que, por acaso, estiver lendo esse texto, por favor, cuide direitinho dele.)
"Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante." (Lispector, Clarice, Felicidade Clandestina)
É assim que muitas vezes me sinto com os livros que leio. É como se ao abraçar o livro eu pudesse entrar nele, eu pudesse tocar as personagens, pudesse me tornar um pouco cada uma delas. Nesse momento, estou assim com Eu não sei quem você é, da inglesa Penny Hancock. A história é pesada, mas é envolvente de um jeito que me fez reviver meus melhores dias de adolescente, lendo compulsivamente, levando um monte de bronca da minha mãe porque eu deixava as louças na pia e corria para o quarto ler escondida.
Holly, a protagonista da história, é professora de escrita criativa na Universidade em Londres, mas mora numa vila, próxima à Cambridge. Em seu caminho diário para o trabalho passa por ruas e casas que foram outrora frequentadas por Virginia Woolf, Vanessa Bell e por tantas outras mulheres, escritoras e artistas, o que faz com que Holly sinta como se "a praça abrigasse os espíritos de todas essas escritoras e pioneiras feministas". Numa dessas caminhadas, ela relembra seu marido Archie dizendo: "Você acredita que vai absorver o talento delas por osmose!". Impossível ler essa passagem e não lembrar do que disse Virginia Woolf em Profissões para mulheres, texto publicado em 1942.
"Minha profissão é a literatura; e nessa profissão há bem menos experiências disponíveis para as mulheres que em qualquer outra, com exceção do palco - bem menos, quero dizer que sejam específicas das mulheres. Pois o caminho foi preparado muitos anos atrás - por Fanny Burney, Aphra Behn, por Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot - muitas mulheres famosas e muitas outras, desconhecidas e esquecidas, vieram antes de mim, aplainando a senda e orientando meus passos. Assim, quando chegou a minha vez de escrever, havia pouquíssimos obstáculos materiais no caminho. Escrever era uma ocupação respeitável e inofensiva." (Woolf, Virginia, As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra, p.29).
O tema abordado por Penny Hancock, assim como sua profissão em si, e a profissão de sua personagem principal, são devedores de mulheres como Virginia Woolf. Também ela abriu caminhos para que hoje tantas mulheres possam estar em tantos lugares e possam falar sobre tantas coisas com mais liberdade. Liberdade que nem sempre existiu:
"Pois, como descobri, assim que pus a pena no papel, não se pode resenhar nem mesmo um romance sem que se pense por conta própria, sem que se expresse o que se pensa ser a verdade sobre as relações humanas, a moralidade, o sexo. E todas essas questões, segundo o Anjo da Casa, não podem ser tratadas livre e francamente pelas mulheres; elas devem seduzir, elas devem conciliar, elas devem - para dizê-lo sem meias-palavras - mentir se quiserem ser bem-sucedidas. (Woolf, Virginia, As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra, p.31).
No entanto, como bem exemplifica Holly, ainda hoje as mulheres pagam um preço caro por falar sobre certas questões - relações humanas, moralidade, sexo. Quantas não são as mulheres, professoras, intelectuais, cientistas, artistas, que precisam enfrentar @machistinhas em suas jornadas? Holly sempre esteve envolvida com grupos de discussão sobre direitos das mulheres e sobre a importância de se falar sobre consentimento, orientando e conscientizando mulheres, meninas e adolescentes a denunciarem casos de violência sexual.
Explorar esses temas - assédio, consentimento, estupro -, depois de movimentos como o #MeToo, poderia ser só mais uma história. Mas Penny nos conduz por uma narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e que a cada página nos desafia a duvidar do que parecia absolutamente verdadeiro na página anterior. Depois de ouvir de sua melhor amiga, Jules, que seu filho Saul teria estuprado Saffie, filha de Jules e afilhada de Holly, vemos nossa personagem ser confrontada com tudo que ela acreditava e ensinava durante a sua vida. Saul é um adolescente de 16 anos, problemático - qual não é nessa idade? - com dificuldade de socialização, que não se adaptou à vida pacata da vila para qual ele e a mãe se mudaram depois que o pai de Saul morreu. Saffie é mais nova, 13 anos, bonita, desabrochando para a adolescência, filha de Jules e filha especial de Holly. Mas a reação de Holly não foi a esperada por Jules. Ela, que sempre falou da importância de não duvidar das vítimas, se pergunta por que Saffie teria inventando aquela mentira sobre seu filho.
Eu permaneço sentada por um tempo depois de Jules ter saído do meu escritório, lutando para criar algum tipo de sentido para o que ela acabou de me contar. Preciso de vários e vários minutos de silêncio para processar a situação, mas Luma logo aparece na porta e me lembra que preciso estar às três no seminário sobre consentimento. E, antes que eu consiga falar qualquer coisa, antes que eu consiga abrir a minha boca para dizer que não tenho condições de ir, ela me diz que Hanya também anda recebendo tuítes de intimidação, que ela também está sendo chamada de feminázi. Hanya só tem dezenove anos de idade. Não dá. Luma está certa, ela precisa do nosso apoio. (Hancock, Penny, Eu não sei quem você é, p.74).
Daí em diante, o livro vai nos lançando em diferentes labirintos. Os labirintos de cada um dos personagens, nos lembrando dos nossos próprios labirintos. Amizade de longos anos, casamentos, as relações mãe-filha ou mãe-filho, de repente, como num piscar de olhos, as pequenas trincas e fissuras de todas essas relações vão se tornando rachaduras que parecem impossíveis de serem consertadas. A questão central é: o quanto nos conhecemos? Diante de uma situação limite, o quanto estamos preparados para encarar as nossas próprias reações? É justo cobrar dos outros - companheiros, amigos, filhos -, certas atitudes, escolhas, reações, sendo que não estamos seguros sobre as nossas próprias atitudes, escolhas e reações nesses momentos?
Durante a leitura, fiquei várias vezes me perguntando como eu reagiria, o que eu faria, no lugar da Jules, ou no lugar da Holly. Eu teria me saído melhor ou teria cometido os mesmos erros que elas? Ser especialista num assunto e falar sobre ele quando você não é diretamente afetado é uma coisa, mas e quando a situação te puxa para o meio da lama? Como manter a racionalidade? Como manter seus princípios? Podemos até acertar, por instinto, como é o caso de Holly, mas percebemos que somos muito mais frágeis do que imaginávamos e que nossas certezas não são assim tão seguras.
O título do livro ecoa em diferentes momentos da narrativa. É angustiante a sensação de não saber quem é a pessoa com quem dividimos a cama, de não reconhecer uma amiga de longa data, de desconhecer o próprio filho ou filha, mas, certamente, o mais desconcertante é ter que assumir que não temos certeza se sabemos quem somos, que não estamos seguros sobre os nossos desejos mais secretos, ou se temos controle sobre ressentimentos e mágoas que insistimos em dizer que ficaram no passado, mas que na primeira oportunidade escapam de nossas bocas e atingem em cheio as pessoas que amamos.
"Eu olho pra Jules. Minha amizade com ela, que eu considerava o relacionamento mais estável da minha vida, acabou de entrar em um território completamente desconhecido. Porque as amizades não são imutáveis, como um dia eu imaginei, e porque a resposta de Jules para a acusação da sua filha está me revelando uma mulher bem diferente da que eu achava que conhecia. Uma mulher que está perseguindo o seu filho especial como se antes só estivesse esperando pela oportunidade certa. Que, na intimidade, recrimina a forma como eduquei o meu filho. Uma mulher que está mais que preparada para insultar o meu falecido marido." (Hancock, Penny, Eu não sei quem você é, p.202).
Eu não sei quem você é fala sobre aquelas questões que, como Virginia Woolf bem lembrou, as mulheres não poderiam falar sobre: relações humanas, moralidade, sexo. Mas, principalmente, nos fala de amizade entre mulheres, do que sustenta as verdadeiras amizades. Jules e Holly sempre foram muito diferentes. E depois de tudo que tiveram que enfrentar, seria possível seguir sendo amigas? Além das diferenças, para que uma amizade sobreviva ao próprio desenrolar da vida, é preciso aceitar os limites dos outros e, talvez, acima de tudo, nossos próprios limites e falhas. Será que uma amizade é capaz de sobreviver às provações que Holly e Jules enfrentaram?
Agradeço à amiga Ana Zeferino que me proporcionou essa leitura tão envolvente, porque me deu de presente uma assinatura da TAG Inéditos. Que possamos nos encantar e envolver com muitas e muitas histórias ao longo desse ano e que nossa amizade encontre sempre bons motivos e boas desculpas para nos aproximar ainda mais! Como Jules e Holly, somos bastante diferentes, Ana é engenheira, eu aprendiz de filósofa, professora. Mas assim como elas, adoramos tomar café em boa companhia.
Como disse, no início, quando termino de ler um livro, costumo passar alguns dias com ele, curtindo um pouco mais, mudando de lugar pela casa, às vezes apenas deixo do meu lado enquanto penso e faço a digestão do que li, só depois desse ritual, ele encontra seu lugar na minha estante e eu passo para um novo livro. No lugar daquela tortura vivida pela menina do conto Felicidade Clandestina que tanto desejava e tanto esperou para enfim possuir o livro, eu tenho tentando proporcionar às pessoas o prazer de possuir livros. E tem sido uma experiência muito bacana, porque compartilhar livros, dar livros de presente, faz com que coisas muito bacanas aconteçam. Recomendo: dê livros de presente!
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