domingo, 27 de setembro de 2020

Um ministro pastor e a urgência de escaparmos das armadilhas perversas do bolsonarismo

No dia 24 de setembro, Milton Ribeiro, atual ministro da educação, em entrevista ao Estadão, deu vazão ao festival de obscurantismo, preconceito e reacionarismo típicos desse desgoverno. Entre as muitas barbaridades ditas por Milton Ribeiro, foi a fala homofóbica, criminosa é bom lembrar, que logo causou alvoroço nas redes sociais. Entendo a indignação, a revolta, principalmente de membros da comunidade LGBTQI+, mas gostaria de fazer uma reflexão sobre o ocorrido que talvez possa soar como falta de empatia, então peço paciência e que acompanhem o meu raciocínio. 

Pergunto honestamente: qual a surpresa, a novidade, de um pastor conservador que foi escolhido para fazer parte deste governo justamente por ter esse perfil, se manifestar de maneira homofóbica? Já não era previsível uma postura preconceituosa e obscurantista? Já não era de conhecimento de todos que essa era a sua posição sobre o tema? Repito, qual a novidade de sua declaração associando homossexualidade à famílias desajustadas? Foi ofensivo? Por óbvio que sim. Mas é mais do que isso: desde que o STF equiparou atos de homofobia e transfobia ao racismo, trata-se de crime. E é nesse território que a declaração do senhor Milton Ribeiro deveria estar sendo tratada. 

No entanto, a maneira como jornalistas, políticos de oposição e militantes nas redes sociais passaram a dar destaque a essa fala, fez parecer que nada mais havia de problemático na fala do ministro. Além disso, ao jogar todo o foco da entrevista para a declaração homofóbica, pareciam não entender que aquela declaração tinha alvo certo e não éramos exatamente nós - independente de inclinação partidária, que somos comprometidos com uma sociedade mais justas, igualitária e democrática -, mas a base fundamentalista de apoio do bolsonarismo, suscetível aos apelos desse tipo de discurso moralista e criminoso, hipocritamente disfarçado sob uma suposta liberdade religiosa. 

E com isso não estou repetindo o argumento de cortina de fumaça, pois não creio que seja o caso. Essa pauta moralista, obscurantista, fundamentalista é o coração do bolsonarismo. Damares, Ribeiro e tantos outros que hoje compõem este governo estão onde estão justamente por serem homofóbicos, machistas, racistas. Portanto, quando jornalistas, políticos de oposição e militantes das mais variadas causas de minorias reagem de maneira contundente a essas falas - e certamente eu entendo os motivos e razões dessas reações - parece que caímos numa armadilha. Quanto maior for a reação, quanto mais repetimos que essas figuras são homofóbicas, transfóbicas, e tudo que, de fato, são, mais eles conseguem mobilizar suas bases em sua suposta cruzada contra o mal

Na mesma entrevista em que Milton Ribeiro é terrivelmente homofóbico, ele também dá declarações, estas sim surpreendentes, na medida em que atestam contra o próprio ministro, e que deveriam ter sido motivo suficiente para pedirmos o impeachment desse senhor. Segundo o ministro, a desigualdade no contexto escolar, escancarada pela pandemia, não é de responsabilidade do MEC. Também não seria responsabilidade do MEC garantir acesso à milhares de alunos hoje sem internet e equipamentos adequados para seguir no ensino remoto. Além disso, as discussões sobre o retorno às aulas presenciais não seriam tema para o MEC. Insisto: enquanto a declaração homofóbica era o esperado do pastor, escolhido a dedo por representar essa pauta cara ao bolsonarismo, dizer que o ministério que comanda não tem nenhuma responsabilidade com os principais temas relacionados a esse ministério, além de demonstrar total desprezo pela Constituição Federal e pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) parece ser uma confissão de que o ministro não está cumprindo suas funções. 

Infelizmente os pedidos de impeachment que foram encaminhados na sequência da publicação da entrevista não foram por esse caminho, preferiram justificar o pedido no crime de homofobia. Considero um equívoco estratégico que pode custar muito caro. Parece que não entendemos ainda que não estamos lidando com um governo como outros que o precederam em anos recentes. Estamos diante de um governo que espezinha os direitos humanos, que faz apologia a torturadores e ditadores, que despreza a democracia, que não respeita as constituições, que flerta com golpe dia sim e outro também. 

A base extremista de apoio a Bolsonaro já pediu o fechamento do STF em diversas ocasiões. Bolsonaro já disse que devera indicar um juiz terrivelmente evangélico para ocupar a vaga de Celso de Melo, que se aposenta agora no final de outubro. Fico imaginando as consequências de um possível pedido de impeachment do ministro da educação por homofobia passar no STF. Seria a desculpa perfeita para o setor mais obscurantista do governo se radicalizar ainda mais. Gabinete do ódio, teorias conspiratórias e afins cairiam matando sobre o STF. 

Por outro lado, um pedido de impeachment justificado em confissão de que o ministro não está disposto a cumprir o que a legislação educacional e a Constituição Federal o obriga, a saber, coordenar as políticas educacionais, garantir auxílio técnico e financeiro para estados e municípios no enfrentamento da pandemia, garantir condições de acesso e permanência para alunos na escola, não daria espaço para que a base fundamentalista pudesse fazer o seu discurso de perseguição - o ministro-pastor estaria sendo sofrendo impeachment porque desafiou a doutrinação da esquerda marxista gayzista e sei lá mais quanta besteira são capazes de elencar. É só dar uma olhada nos comentários nas redes sociais dos apoiadores radicalizados e fundamentalistas do governo às manchetes que deram destaque à declaração homofóbica do ministro. No meio da confusão, mesmo quando se tentou mostrar o absurdo do ministro da educação se eximir de qualquer responsabilidade com a educação, seus defensores já estavam no modo ataque aos ateus, gayzistas, destruidores da família, perseguidores de cristãos. Não foi por acaso que Bolsonaro saiu com aquela história de cristofobia no discurso da ONU, essa será a frente a ser explorada nas eleições de 2020 e 2022 e figuras como Damares e Milton Ribeiro serão peças chaves dessa cruzada

Certamente nós enfrentamos um dos momentos mais difíceis da política brasileira desde o fim da ditadura civil-militar que teve início com o golpe de 1964. E neste momento, além de escolhermos o lado correto a estar é necessário também saber escolher quais batalhas devemos lutar, sem perder de vista a guerra na qual estamos. Engana-se quem ainda acredita que o governo Bolsonaro age sem uma estratégia. Engana-se quem pensa que a pauta moralista fundamentalista obscurantista é cortina de fumaça. Mas engana-se também quem ainda não entendeu que aceitar as batalhas nos termos que eles colocam é deixá-los jogar em campo favorável. 

Entre todas as mentiras pronunciadas por Bolsonaro no discurso da ONU, uma verdade, por mais que nos desagrade, não pode passar despercebida: a sociedade brasileira é conservadora. O crescimento exponencial do número de pessoas que se declaram evangélicos - das mais variadas denominações evangélicas - não pode ser ignorado por aqueles que buscam uma sociedade mais inclusiva, mais justa, mais igualitária. Ou nos esforçamos para entender o jogo de palavras que hoje é feito pelo bolsonarismo, ou vamos continuar perdendo terreno e perdendo direitos que foram tão difíceis de serem conquistados. Na boca de bolsonaristas, estado laico é sinônimo de estado ateu. Ditadura - principalmente os 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil - é a verdadeira democracia. Povo, é quem  se identifica com o credo bolsonarista. Quem luta contra homofobia é defensor de pedófilo e assim por diante. O grau de perversão da linguagem operado pelo bolsonarismo é proporcional a perversão moral e ideológica que eles pretendem estabelecer na sociedade. É nesse contexto que as reações contra a fala homofóbica do ministro, de jornalistas, políticos de oposição e ativistas, me preocuparam. Mais do que identificar qual de suas declarações foi pior ou mais ultrajante, é questão de sobrevivência identificar qual a melhor estratégia para enfrentarmos o retrocesso que eles representam, sem cairmos nas armadilhas bolsonaristas.

Quanto à declaração criminosa de Milton Ribeiro e tantas outras já feitas por Damares e pelo próprio Bolsonaro, caberia a justiça fazer cumprir nossas leis. Se esse fosse o entendimento de todos, Bolsonaro teria saído preso do Congresso Nacional o dia em que defendeu Brilhante Ustra, um torturador, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mas em falta da justiça, aquele dia mais do que viabilizar a eleição de Bolsonaro, me parece que a garantiu. Muito pouco, desde então, nos restou. E se não ficarmos atentos, em breve nem mesmo as palavras poderão nos socorrer.

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