A máquina do ódio, de Patrícia Campos Mello, deveria ser leitura obrigatória para todos os estudantes de jornalismo do país. Mas não é só para futuros jornalistas que a leitura é necessária. Também os profissionais do jornalismo na ativa e todos os cidadãos que se preocupam com o presente e o futuro da democracia deveriam ler. Como professora, estou convencida de que para nós, em especial professores de língua portuguesa, de sociologia e filosofia, o livro de Patrícia é fundamental. Afinal, passou da hora de levarmos a sério a alfabetização digital das novas gerações e discutirmos seriamente nas salas de aula fenômenos como fake news e pós-verdade.
Patrícia nos apresenta diferentes exemplos de como em todo mundo líderes populistas têm feito uso de táticas e estratégias muito parecidas para minar a credibilidade da imprensa tradicional e para viabilizar projetos de censura e controle da mídia tradicional ao mesmo tempo em que atuam de modo bastante similar também nas novas mídias digitais, espalhando fake news e teorias conspiratórias.
Campos Mello joga luz numa prática que, me parece, tem passado
despercebido na cobertura local das sandices do atual presidente: Trump e
outros líderes que, claramente, são inspiração para Bolsonaro, se
apossaram da expressão "fake news" e a usam para se referir a tudo que
contraria suas narrativas. Desse modo, os fatos, quando contrariam os
interesses desses autocratas e são noticiados pela imprensa, são logo
tachados de fake news. A mesma tática tem sido reproduzida por canais de apoiadores desses líderes, como é o caso do Terça Livre e similares no Brasil.
Mais importante do que desvelar as estratégias que Trump, Duterte, Bolsonaro, Orbán e outros têm adotado com relativo sucesso para sufocar o trabalho da imprensa, são as reflexões que a jornalista faz sobre a própria responsabilidade da imprensa para que chegássemos a esse estado de coisas:
"A imprensa precisa fazer uma autocrítica: ela foi um dos fatores que possibilitaram o surgimento dessa era. Primeiro, ao praticar a "falsa equivalência". A mídia tradicional se pauta pela obrigação de sempre ouvir os dois lados e (tentar) ser equilibrada, mas às vezes incorre no que se convencionou chamar de falsa equivalência. O On the Media, programa da National Public Radio americana, deu um bom exemplo: "O presidente Obama afirma que nasceu nos Estados Unidos e, portanto, pode ser presidente do país; seus críticos discordam". Isso é falsa equivalência. O certo seria dizer: "Barack Obama nasceu no Havaí em 1961; o movimento birther nega esse fato".
Ou, para circunscrevermos a nossas fronteiras: "O presidente Jair Bolsonaro afirma que a cloroquina cura pacientes com covid-19. Especialistas divergem". Não, não tem nada de dois lados aqui. O correto seria: "O presidente Jair Bolsonaro afirma que a cloroquina cura pacientes com covid-19. Vários médicos e estudos afirmam que não há dados comprovando a eficácia da cloroquina, e alguns pacientes têm problemas cardíacos por causa do remédio. Não saiam de casa para comprar cloroquina"."
Em outra excelente passagem na qual Patrícia fala da importância e da urgência de autocrítica por parte da imprensa, a autora chama nossa atenção para o fato de que "boa parte da população pegou ojeriza pela categoria [de jornalistas]". Isso segundo ela, em parte, "devido aos inúmeros erros e incompreensões da imprensa em relação à situação de uma massa de pessoas que se viram cada vez mais excluídas pela globalização." Mas apesar disso, nas palavras de Campos Mello, a mídia tradicional continua "a escrever reportagem após reportagem exaltando os méritos da imigração, fronteiras abertas, comércio internacional - sem ao menos levar em conta as queixas legítimas de populações afetadas por esse processo."
A passagem acima me parece uma contribuição muito importante para o atual debate. Como já falou várias vezes Rosana Pinheiro-Machado, é preciso ouvir, exercitar uma escuta sincera das queixas, dos anseios, dos medos de uma parte considerável da população que, ao que tudo indica, tem encontrado na extrema-direita mundo afora um amplificador para suas vozes. Ainda que de maneira distorcida e manipuladora, muitas vezes, foram líderes como Trump, Duterte, Bolsonaro, que souberam ouvir um clamor que, por muitos motivos, vinha sendo ignorado pela mídia tradicional e por parte da classe política.
Em Populismo: uma breve introdução, Simon Tormey nos provoca a pensar sobre o que estaria por trás do sucesso das fake news e da pós-verdade e, ao mesmo tempo, o que estaria por trás do aparecimento de figuras populistas como Duterte, Trump e afins a partir de 2016.
"Nos últimos cinquenta anos, a ideologia dominante tem insistido que mercados abertos, migração transnacional, desregulamentação bancária, privatização de serviços públicos e nova gestão pública são a melhor maneira de organizar nossas sociedades. A crise, no entanto, não só perfurou a bolha financeira, como também perfurou a bolha ideológica dominante. Seguiram-se raiva e descontentamento, encorajando o desprezo pela visão de mundo da elite.
Desse ângulo, o populismo se parece menos com a imposição de uma nova ideologia que com o retorno a valores e opiniões que pareciam ter sido desacreditados esquecidos ou deslocados. O consenso sobre valores e crenças cosmopolitas, transnacionais, "de qualquer lugar", é contestado pelo retorno a crenças nativistas, "de algum lugar" que se concentram em restaurar um senso de identidade e uma cultura comuns. (...) Talvez a faísca para o populismo seja menos a pós-verdade e mais a "verdade do outro", um conjunto de valores, crenças e princípios em desacordo com pontos de vista da elite e do mainstream."
Não sei se porque li os dois livros mais ou menos ao mesmo tempo, mas considero que os dois podem nos ajudar nessa busca por respostas e compreensão de fenômenos contemporâneos, seja no campo do jornalismo, em particular, ou como sociedade de maneira mais ampla. Certamente o fenômeno que se faz sentir pelo mundo, a saber, a ascensão de líderes populistas, tem incontáveis camadas e algumas delas são próprias de cada país, no entanto, parece que de algum modo, há um sentimento de insatisfação, de ressentimento, de revolta e de desprezo por certos valores e crenças que até então vinham sendo tratados como universais pela mídia tradicional, pelas academias, por especialistas diversos e por parte considerável da classe política, o que agora faz com que essas mesmas instituições, profissionais e figuras públicas sejam identificados como inimigos. Enquanto não fizermos um esforço coletivo de escuta sincera dessas "verdades dos outros", sem arrogância, sem a pretensão de sabermos o que eles querem e precisam, talvez não tenhamos sucesso em encontrar estratégias eficazes de combate a Bolsonaros e Trumps sem continuar sendo megafone de caça-cliques e mesmo ajudando a eleger esse tipo de populista (Mello, p.165).
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