"Durante séculos a sociedade encerrou as mulheres, privou-as de sua liberdade e de sentido, conseguiu enlouquecê-las."Monteiro, Rosa, Nós, mulheres: Grandes vidas femininas, Todavia.
Depois de uma longa e histórica sessão do senado argentino, o país vizinho deliberou pelo direito das mulheres de decidir sobre a interrupção voluntária da gestação. A luta das mulheres argentinas certamente se torna exemplo para as demais mulheres da América Latina. Infelizmente o machismo estrutural segue firme e forte no Brasil e muitos homens e mulheres reproduzem falácias sobre o tema. Acusam as mulheres e militantes pelo direito de decisão das mulheres de assassinos, apelam para a sensibilidade religiosa, insistem em culpabilizar a mulher como se a gravidez fosse apenas sua responsabilidade. Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Tratar o aborto pelo viés moralizante - questão de certo ou errado / bem versus mal - não ajuda em nada. É preciso tratá-lo como questão de saúde pública e de justiça. E, muitas vezes, o que é urgente é colocar o debate nos termos corretos, afastando formulações que, seja por ignorância ou má-fé, acabam levando o debate para o caminho errado.
Uma questão muito simples, mas que todos que se posicionam contra o direito das mulheres de decidir ignoram ou fingem ignorar, é que a despenalização e a legalização do aborto, como previstos na Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez recém aprovada na Argentina, não irão obrigar ninguém a abortar. Ao contrário de quem está confortável em impor suas convicções às mulheres - sejam suas convicções religiosas ou simplesmente fruto do machismo que tem prazer em castigar as mulheres - nós, que defendemos o direito de decisão das mulheres, entendemos que as mulheres precisam ser acolhidas e amparadas em suas decisões - seja para seguir com uma gestação, seja para interrompê-la. Nesse sentido, muito interessante observar que a redação final do projeto aprovado na Argentina também "garante assistência plena do Estado às gestantes de baixa renda, do
pré-natal até os 3 anos da criança, fundamental para evitar que a
interrupção da gravidez se dê por falta de perspectiva de sobrevivência
econômica", conforme apontou Ana Prestes, em artigo publicado no portal O Cafezinho. É muito importante entender - e deixar claro - que a luta pelo direito das mulheres de decidir pressupõe outros direitos como o acesso a educação sexual de qualidade, acesso a contraceptivos e, por fim, acesso a um sistema de saúde preparado para acolher as mulheres em suas decisões.
A grande verdade é que, muitas vezes, os mesmos moralistas que condenam o aborto, estão na primeira fila para jogar pedras na mulher que é "mãe solteira", para responsabilizá-la pela má educação de seu filho ou filha. Quando questionados sobre o "aborto" largamente praticado por homens que não assumem suas responsabilidades, uma vez mais são ligeiros em dizer que as mulheres deveriam escolher melhor com quem transam sem camisinha. Defender o direito das mulheres de decidir não é lutar para que as mulheres possam cometer os mesmos erros que os homens (outra desculpa esfarrapada da qual o machismo costuma se valer). As realidades enfrentadas pelas mulheres, inclusive dentro do casamento, com maridos que se recusam a usar camisinha e jogam a responsabilidade da prevenção toda para suas esposas, são tão diversas e complexas. Mas isso não é empecilho para muitos homens e mulheres que, de bom grado, tomam para si a função de juiz e fiscal da vida alheia.
Outra falácia, que tem virado modinha, é homens, ou em geral pessoas contrárias ao direito das mulheres, se escondendo atrás de supostas mulheres de periferia - que seriam contra o aborto - para atacar as feministas, as mulheres de classe média, que são "abortistas". Em primeiro lugar, é bem difícil encontrar por aí mulheres "defensoras do aborto". Isso acontece quando perguntas são formuladas justamente para se criar ou fortalecer essa narrativa. Sempre que alguém lhe perguntar se "você é a favor do aborto" é importante pensar em como irá responder. Caso você entenda que as mulheres devam ter assegurado o direito de decidir levar uma gestação adiante ou não, responda: eu sou a favor do direito das mulheres de decidir. Em segundo lugar, muitas vezes na periferia - onde o número de mulheres vítimas do aborto clandestino, de clínicas irregulares ou de tentativas desesperadas de aborto em casa, é muito grande -, encontramos muitas mulheres que se dizem contra o aborto (como de resto, eu diria, a maioria das mulheres são!), ainda que já o tenham praticado. E não é porque elas são hipócritas. A pressão social e religiosa - o estigma que as mulheres que já fizeram aborto encaram numa sociedade conservadora, machista e hipócrita -
muitas vezes explica porque muitas delas ao serem questionadas sobre o
aborto e o direito das mulheres de decidir se declaram contrárias a eles. Mas
quando perguntadas se já abortaram, essas mesmas mulheres respondem
afirmativamente. Entre aquilo que sentimos ou que nos foi ensinado a pensar que é o certo e a realidade que se impõe há, muitas vezes, um abismo que apenas cada mulher, na sua individualidade, conhece e é capaz de julgar o que lhe convém.
Nós, mulheres, somos diversas, somos diferentes, temos discordâncias, enfrentamos realidades tão distintas e não podemos ser tratadas em bloco, como se as "mulheres classe média" ou "as mulheres da periferia" pensassem e agissem do mesmo jeito apenas porque são "mulheres classe média" ou "mulheres de periferia".
Aos homens e mulheres que se dizem contrários ao aborto, fiquem em paz, ninguém irá obrigá-los a fazer um aborto, ninguém está pedindo que vocês mudem de ideia. Se sua namorada ou você engravidou por descuido - acontece nas melhores famílias - vá em frente, siga com a gestação. Vocês terão seu direito de escolha respeitado. Tudo o que queremos é que também seja garantindo o direito de escolha de outras pessoas que discordam de vocês. Pensem bem qual das posições é autoritária, qual das posições é impositiva, antes de saírem por aí atacando quem luta por direitos. E lembre-se: você concordando ou não, há mulheres fazendo aborto todo dia. A diferença é que algumas delas terão apoio e cuidado e outras não, e por isso podem ter complicações graves de saúde ou morrer.
Imagem divulgada nas redes sociais de @brumelianebrum |
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