"Aquela manhã, pensei de repente em algo que me pareceu insuportável e ao mesmo tempo divertido: nem eu nem Vittoria nem me pai podíamos eliminar nossas raízes comuns e, portanto, acabávamos amando e odiando, dependendo do caso, sempre nós mesmos." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.360).
Tem leituras que nos levam para mundos distintos daquele que habitamos e que, de outro modo, jamais conheceríamos. Outras nos fazem mergulhar em nosso próprio mundo, mas vendo tudo, inclusive a nós mesmos, a partir de pontos de vistas até então ignorados ou que não nos eram acessíveis. E foi isso que A vida mentirosa dos adultos fez comigo. Foi uma leitura, em muitos momentos, psicanalítica, com direito a todo desconforto que se olhar no espelho, principalmente num espelho interno, nos causa.
Elena Ferrante já me havia sido recomendada por algumas amigas que foram arrebatadas pela tetralogia A amiga genial. Estava na minha lista para ler, lista que só faz crescer, numa velocidade muito maior da que consigo ler. Mas foi graças ao Literateia que, finalmente, li Elena Ferrante. Meu contato com ela foi sem mediações, sem informações sobre a autora, sem outras obras para comparar. E o encontro não poderia ter sido melhor.
"É uma cegueira repentina, você não sabe mais manter a distância, acaba colidindo. Só algumas pessoas ou todas, após certo patamar, ficavam cegas de raiva? E éramos mais verdadeiros quando enxergávamos tudo nitidamente ou quando os sentimentos mais robustos e densos - o ódio, o amor - nos cegavam? (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.343).
A vida mentirosa, do título, pode bem ser uma referência à suposta distinção entre as pessoas cultas, bem educadas, intelectuais que habitam a cidade alta, como os pais de Giovanna e os pais de Angela e Ida, e as pessoas sem educação, pobres, feias, da cidade baixa, como Vittoria, Margherita, Corrado e Rosario. Afinal, ao seguirmos os passos de Giovanna e nos aventurarmos pelas ruas cada vez mais mais feias, sujas e mal encaradas da Nápoles do bairro industrial, ao descobrirmos com Giovanna as origens e os membros da família de seu pai, professor de história e filosofia, intelectual sempre imerso em profundas discussões acerca de grandes questões, somos lançados também nas entranhas daquilo que nos faz humanos, encarando desejos, traições, medos, ressentimentos, ciúmes e mesquinharias das mais variadas, todas nuas, despidas de qualquer maquiagem ou retoque, seja o domínio do italiano culto, seja das vestimentas elegantes e finas, das joias, ou das fachadas requintadas dos prédios que superficialmente demarcavam a separação entre aquelas pessoas, entre Andrea e Vittoria, o pai e a tia de Giovanna.
"O que se passava, afinal, no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduzia a animais dentre os menos confiáveis, piores do que os répteis?" (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.169).
A história é narrada por uma adolescente - ou melhor, por uma jovem saindo da adolescência e entrando na vida adulta - que nos conduz pelos anos de sua adolescência. Exatamente quantos anos a narradora tem quando nos conduz pelos fatos que marcaram sua adolescência não é possível precisar, mas certamente temos um olhar retrospectivo, uma tentativa de compreender e dar sentido às experiências vividas; talvez uma tentativa de encontrar a sua própria versão para os fatos: a separação dos pais, a amizade e as traições entre seus pais e os pais de suas amigas, a origem da pulseira que ela ganhou de sua tia Vittoria, a relação conturbada entre seu pai e sua tia.
"Na opinião dele, só quem está sempre com um livro na mão merece habitar a Terra, para ele, se você não estudou, não é ninguém. Ele me dizia: que bailarina,Vittoria, você nem sabe o que é uma bailarina, volte a estudar e cale a boca." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos,Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.68).
As relações entre Andrea e Vittoria podem ser lidas como mais uma de muitas relações conflituosas entre irmãos que, ao escolher caminhos diferentes, abrem verdadeiros abismos entre si. Mas podem também refletir escolhas de uma nação que, a partir de um certo momento, cria para si uma identidade, uma imagem, dentro da qual não cabem aqueles que não aceitaram renegar suas origens, que fazem questão de manter velhas tradições, que por teimosia se negam a se adequar, que não querem abrir mão daquilo que são para se enfiarem dentro de um traje ou de uma máscara que os tornariam aceitáveis.
A vida mentirosa dos adultos é um prato cheio para lidarmos com profundas questões humanas, demasiadamente humanas. Nos gera desconfortos ao insinuar que a autoimagem que vamos construindo de nós ao longo da vida possui rachaduras, pequenas fissuras; que aquilo que os outros veem quando nos olham não é exatamente o que gostaríamos que eles enxergassem. Pior ainda: que essa autoimagem pode ser diretamente modificada pelo outro, alguns outros que, de forma consciente ou não, permitimos que tenham poderes de transformar a maneira como nós mesmos nos enxergamos.
"Tenho o número de telefone dele, vou ligar e dizer: você me acha mesmo bonita? Cuidado com o que você diz, meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia; não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito. Estou cansada de ser exposta às palavras dos outros." (FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos, Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p.392).
A leitura de A vida mentirosa dos adultos teve seus momentos de dores, de vergonha, de medo. Também eu estou cansada de ser exposta às palavras dos outros - outros muito pontuais, com relação aos quais preciso entender/estabelecer qual é o meu lugar, mas não o lugar que eles me levaram a ocupar ao longo dos anos. Mas também é preciso rever minhas palavras em relação a outros que talvez, como Giovanna, tenham suas feições modificadas pelo que eu falo. Entender que a versão que fazemos de nós, mas também as versões que fazemos dos outros, assim como as versões que os outros têm de si mesmos e de nós podem conter verdades e mentiras, ambas honestamente sentidas como verdades, é um grande desafio. Para além das intenções de enganar, as mentiras muitas vezes são as únicas possibilidades de manter uma unidade para o eu que foi forjado ao longo da vida - seja de um indivíduo ou de uma nação. Mas não precisa ser assim, no entanto, a jornada que nos leva a nossa imagem sem máscaras pode ser muito difícil e pode nos levar a rupturas duras e, aos olhos dos outros, incompreensíveis, em busca de uma vida autêntica.
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