"A porção invisível do iceberg de mulheres silenciadas começa a emergir agora, e tem dimensões colossais. E entre elas há de tudo, heroínas e tiranas, revolucionárias e retrógradas, salvadoras do mundo e assassinas cruéis. E isso é formidável e libertador. O feminismo, ao menos a parte majoritária do feminismo, não reivindica pessoas santas, mas pessoas que possam viver todas as possibilidades do ser, para além da tirania dos estereótipos. Vocês sabem, é aquela história: as meninas boas vão para o céu e as más vão para qualquer lugar. Eu sempre disse que alcançaríamos a verdadeira igualdade social quando conseguirmos ser tão tolas, ineficazes e malvadas como alguns homens o são sem que sejamos recordadas especialmente por isso." (MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, Todavia).
Se eu pudesse dar uma dica de leitura para 2021 para todos os professores do ensino básico - principalmente de matemática e ciências da natureza - certamente seria Nós, mulheres: grandes vidas femininas, de Rosa Montero. Infelizmente, nós, mulheres, passamos boa parte da nossa vida escolar sem nos ver nas grandes descobertas e conquistas da ciência. Sei que hoje as coisas estão mudando, mas ainda hoje meninas que escolhem cursos considerados "masculinos" são tratadas ora com condescendência, ora com desprezo por seus professores, na grande maioria homens. Por isso, caros colegas professores, em 2021 coloquem na sua lista de leitura Nós, mulheres: grandes vidas femininas.
Acredito que começar uma aula de matemática mostrando como mulheres incríveis e inteligentes como as gregas Theano de Crotona e Hipátia, ou a italiana Maria di Novella, ou ainda Maria Gaetana Agnesi, autora do primeiro texto completo de cálculo da história, deram contribuições fundamentais para a matemática poderia ajudar muitas meninas pensarem que a matemática também é para elas! Como Rosa Montero, também me pego pensando: "de onde vem esse absurdo lugar-comum que afirma que as mulheres não dão para números, pois a história está cheia de matemáticas extraordinárias". E o que dizer de Ada Lovelace, que almejava criar a informática, que ela chamava de ciência das operações? Ela é reconhecida hoje como a primeira pessoa a descrever uma linguagem de programação. Quantas das minhas alunas do técnico de informática sabem disso?
Durante os meus anos de ensino básico, física e química também eram redutos masculinos. Mas quantas mulheres estiveram presentes nos primeiros passos da química? Maria, a judia, inventora do banho-maria, mas também do alambique de três bicos, introduziu o uso do vidro nos laboratórios e descobriu o ácido do sal marinho e o ácido acético. Mas tão pouco se sabe sobre ela. O silenciamento e mesmo o apagamento de tantas mulheres nas mais diversas áreas do conhecimento nos legou uma história pela metade. Mulheres como Aglaonike de Tessália, Hipátia, Sophia Brahe, irmã do famoso astrônomo Tycho Brahe, que olharam para o alto, para os planetas, para as estrelas, e foram, ao seu modo, estrelas cujo brilho foi apagado.
Se a vida das mulheres que se aventuraram pela ciência e pela filosofia foi marcada pela apropriação de seus trabalhos, pela falta de reconhecimento de seus esforços, não foi muito diferente com mulheres talentosas nas artes, na música, na literatura. Quantas compositoras, musicistas, escultoras, pintoras, foram relegadas ao papel de amantes ou assistentes de homens que desfrutaram de reconhecimento público enquanto, alguns, foram extremamente cruéis. A história da pianista Alma Mahler é uma dessas histórias de apagamento e crueldade que nos deixam revoltadas. A carta que seu futuro marido, o compositor Gustav Mahler, lhe envia antes do casamento é inqualificável.
"Continuo cismado com essa obsessão que se fixou nessa cabecinha que eu tanto amo, com esse seu desejo de continuar sendo você mesma. Você escreve: Você e minha música. Desculpe, mas temos que discutir isso também! Como você imagina a vida matrimonial de um homem e uma mulher que são, os dois, compositores? Tem alguma ideia de quão ridícula e, com o tempo, degradante que inevitavelmente seria para nós dois uma relação tão competitiva como essa? O que vai acontecer se, justo quando lhe vier a inspiração, você se vir obrigada a cuidar da casa ou de qualquer afazer que se apresente, dado que, como você escreveu, gostaria de me poupar das minudências da vida cotidiana? "
MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, Todavia, p.91-92.
Mas as mulheres que Rosa Montero nos apresenta também podem ser cruéis, assassinas, como Irene de Constantinopla, que cegou o próprio filho, ou Aurora, que matou a própria filha. Outras foram guerreiras, soldados, estrategistas, líderes fortes e respeitadas. A verdade é que ler esse livro é bastante libertador para nós, mulheres. Mas poderia também ser um convite para que os homens pudessem se libertar de preconceitos que muitas vezes também os castigam. Ler sobre mulheres que, mesmo com todas as restrições, dificuldades, limitações, ousaram ser plenamente, que viveram, amaram, lutaram, foram derrotadas, enfrentaram destinos trágicos, que se resignaram, que se afundaram na sombra do que poderiam de fato ter sido, é libertador na medida em que nos relembra que podemos ser muitas, de muitas formas, que podemos conquistar nosso lugar, fazer nossa história, mas acima de tudo, que podemos e devemos nos permitir ser!
Ainda não sei o que farei, mas a minha leitura de Nós, mulheres não se limitará a essa resenha. Ideias já fervilham na minha cabeça! Termino a leitura com uma vontade bem grande de levar essas mulheres e suas histórias para as minhas aulas, de apresentá-las às minhas alunas. E para isso convido meus colegas a lerem o livro e pensarem comigo em como levar essas histórias, com suas lacunas, para as salas de aula, na esperança de que muitas outras mulheres incríveis tenham a oportunidade de sonhar sonhos grandes e de se realizarem, seja mirando o universo e descobrindo mundos ainda não desbravados, seja fazendo arte, descobrindo curas, tornando-se lideranças políticas, escrevendo e nos ajudando a imaginar outras formas de ser, transformando esse mundo num mundo mais justo, mais igualitário, mais diverso e plural. Que nós, mulheres, possamos encontrar possibilidades, alternativas, que não sejamos condenadas a viver vidas dentro das quais não cabemos. Que nós, homens e mulheres, possamos repensar os lugares aos quais estivemos cristalizados e tenhamos coragem de escrever capítulos mais completos daqui para frente da nossa história. Que não seja mais aceitável uma história escrita e protagonizada apenas por metade da humanidade.
Um comentário:
Que honra aprender com essa mulhéee! Vou ler já
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