Cartaz feito por alunas do IFSP-Capivari |
Segundo o presidente da república, os que estiveram nas ruas no dia de hoje, 15 de maio, lutando pela Educação são "idiotas úteis", "massa de manobra" e não sabem nada.
Tenho certeza de que os meus alunos que estiveram nas ruas hoje sabem muitas coisas, não só 7x8 ou a fórmula da água. Inclusive, diferentemente do presidente, eles sabem a importância da Educação. Não qualquer uma, mas uma Educação de qualidade, uma Educação transformadora e humanista que se concretiza numa formação integral e inclusiva. Meus alunos sabem que a Educação pode ser revolucionária quando oferece oportunidades para filhos e filhas de trabalhadores que tiveram pouco acesso à Educação para romperem com o determinismo social. Meus alunos sabem também que de idiotas eles não têm nada. Ao irem para as ruas, para a praça pública, tal qual os cidadãos gregos iam para a Ágora debater os assuntos de interesse público, eles assumem a condição de animal político, assumem a condição de protagonistas do presente e do futuro do país. Idiota, do grego idiotes: homem privado em oposição ao homem de Estado, é exatamente o oposto daquela condição de político. O idiota, no contexto da democracia grega, é aquele que ignora a vida pública, os assuntos públicos e se dedica apenas a assuntos particulares e privados.
Mas o presidente tem razão, há uma "massa" de "idiotas úteis" nesse país. Muito grande por sinal. A quantidade de gente que vive apenas em função de interesses privados, que é incapaz de olhar para além do próprio umbigo, é considerável. Ser idiota, nesse sentido, virou moda. O individualismo transformou-se na toada da vida brasileira. Se não uso transporte público, não me interessa a qualidade nem o valor desse transporte. Se não uso a escola pública, não me interessa a qualidade da educação nela oferecida. Se não uso o serviço público de saúde, não me interessa se falta médico, remédio e se as pessoas morrem em filas de hospitais. Esse individualismo, esse desinteresse pelo bem público, isso sim gera uma massa de idiotas úteis responsáveis por eleger políticos que não respeitam a política, que atacam as instituições republicanas, que abertamente atacam a democracia e flertam com o autoritarismo. A tão propalada "renovação" da política nas últimas eleições trouxe para o cenário político, estadual e nacional, figuras exóticas como Mamãe Falei e Alexandre Frota. Sujeitos que parecem ver na política o caminho para autopromoção, que desconhecem a política, que representam interesses privados e que mobilizaram uma massa atomizada, uma massa de indivíduos, totalmente desprovida de qualquer interesse comum. Uma massa que se alimenta do ódio, do ressentimento, talvez único sentimento que são capazes de compartilhar. De acordo com Hannah Arendt, "a atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa, que, muito antes de atraírem, com muito mais facilidade, os membros sociáveis e não individualistas dos partidos tradicionais, acolheram os completamente desorganizados, os típicos "não alinhados" que, por motivos individualistas, sempre haviam se recusado a reconhecer laços ou obrigações sociais. (...) A principal característica do homem da massa não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais."
Ainda em Origem do Totalitarismo*, Hannah Arendt nos alerta: "potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto". Mas o alerta segue e, no Brasil de 2019, ele se apresenta quase como um grito de desespero:
"tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção. A maioria dos seus membros, portanto, consistia em elementos que nunca antes haviam participado da política. Isso permitiu a introdução de métodos inteiramente novos de propaganda política e a indiferença aos argumentos da oposição: os movimentos, até então colocados fora do sistema de partidos e rejeitados por ele, puderam moldar um grupo que nunca havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais.(...) quando os movimentos totalitários invadiram o Parlamento com o seu desprezo pelo governo parlamentar, pareceram simplesmente contraditórios; mas, na verdade, conseguiram convencer o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país, solapando com isso a dignidade e a confiança dos governos na soberania da maioria. (...)
O que me assusta é que, diante dos nossos olhos, está em curso uma demonização da política, inclusive por parte de políticos eleitos, a ponto do presidente dizer que os jovens nas escolas não devem se interessar por política. Além do mais, a distorção hoje feita pelo presidente ao chamar os estudantes e professores de idiotas por irem às ruas, por fazerem política, no melhor sentido, reforça a demonização da política. Quando o presidente diz que não vai dialogar com o parlamento e chama a construção de consenso de 'velha política', sugerindo que haveria uma 'nova política', mais uma vez confunde a cabeça da população e demoniza a política. Política se faz através de diálogo. Política é a construção de consenso. Política depende da participação do cidadão. Política se faz com cidadãos ativos, que vão pra rua, para as praças, que ocupam os espaços e que lutam por pautas que envolvem o bem comum. A Educação hoje se mostra como a principal pauta comum do povo brasileiro. A Educação Pública de Qualidade fez com que os cidadãos brasileiros ocupassem as ruas hoje por todo o Brasil.
Não, presidente, definitivamente as pessoas que ocuparam as ruas hoje não são idiotas. Mas são úteis e necessários para o país: são professores, pesquisadores, cientistas e, principalmente, estudantes, o futuro desse país. Definitivamente o que vimos hoje foi uma resposta aos idiotas, àqueles que são incapazes de fazer parte e lutar pelos interesses comuns, pelo bem comum, pelo nosso futuro.
*Arendt, Hannah, Origem do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo, Companhia de Bolso, 2012.
Um comentário:
Muito bom texto, a colocação do ser político e do idiota é muito construtiva, importante dizer que todos somos por vezes idiotas e políticos, só que devemos nos vigiar para sermos "mais políticos" e "menos idiotas". Parabéns a você por sua forma de pensar e de sempre acreditar que o mundo pode ser melhor.
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