terça-feira, 29 de outubro de 2019

O curioso caso da imprensa brasileira. Ou sobre a seletividade do bom senso quando o assunto é a reforma da previdência.

(...) se a imprensa tiver de se tornar algum dia realmente o "quarto poder", ela precisará ser protegida do poder governamental e da pressão social com zelo ainda maior que o poder judiciário, pois a importantíssima função política de fornecer informações é exercida, em termos estritos, exteriormente ao domínio político; não envolve, ou não deveria envolver nenhuma ação ou decisão. Arendt, Hannah, Verdade e Política, in Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Perspectiva, 2016.

O papel da imprensa é fundamental numa democracia. O jornalista profissional, nessa perspectiva, tem uma responsabilidade imensurável na garantia de um ambiente verdadeiramente democrático e na garantia da "mais essencial liberdade política, o direito à informação não-manipulada dos fatos, sem a qual a liberdade de opinião não passa de uma farsa cruel", como nos diz Arendt em A mentira na política (Perspectiva, 2017). Mas por que lembrar disso? Primeiro porque, infelizmente, por variados motivos, vivemos um período de ataques e tentativas de desmoralização da imprensa por parte de autoridades políticas, no Brasil e mundo afora. Segundo porque a imprensa e os jornalistas me parecem ter uma parcela considerável de responsabilidade pelo descrédito do qual têm sido vítimas. A cobertura feita pela imprensa brasileira sobre a reforma da previdência é um bom exemplo dessa responsabilidade. Não houve debate, foi uma narrativa única de defesa da reforma. Houve aqui e ali alguma tentativa de amenizar a narrativa apocalíptica com a qual o governo ameaçava a população, a fim de empurrar goela abaixo a reforma. Aqueles que se opunham a proposta do governo não tiveram espaço nos grandes meios de comunicação: jornais impressos, TV e revistas. Era como se não tivéssemos opção, era isso ou isso.

No início de ano, quando Paulo Guedes apresentou a PEC 06/2019, chamada, falaciosamente, de Reforma da Previdência, Reinaldo Azevedo foi um dos defensores da tal reforma. Segundo ele, em fevereiro de 2019, "a proposta da reforma da Previdência era boa". E seguia o articulista: "entendo que a reforma da Previdência, escoimados eventuais exageros, é socialmente justa e economicamente "progressista", para quem gosta dessa palavra. E não apenas porque corta mais de quem tem mais, mas porque o déficit previdenciário consome recursos que podem e devem ser aplicados no combate às tais iniquidades." Segundo Azevedo, a proposta era boa, apesar do governo ser ruim e, por isso, terminava seu artigo no seguinte tom: "Temos uma proposta boa de reforma e um governo ruim. Porque ela é boa, não deveria ser desfigurada. Porque ele é ruim, não deve ser poupado."

A tal 'proposta boa e que não deveria ser desfigurada', incluía a capitalização individual sem contribuição patronal, defendida por Paulo Guedes usando como referência a reforma feita no Chile, durante a ditadura militar. Mas durante o primeiro semestre de 2019, não tivemos um jornalista de peso, e com isso me refiro àqueles profissionais que atuam na grande mídia, incluído aí Reinaldo Azevedo, que fizesse uma leitura crítica sobre os efeitos daquela reforma no Chile. Mas eis que o segundo semestre chegou e explode no Chile manifestações cada vez mais duras e violentas, mostrando para todos a insatisfação dos chilenos, aqueles que, segundo Guedes, vivem na Suíça da América Latina.

Só então nossos jornalistas parecem ter acordado do sono profundo de Bela Adormecida que os acometia no semestre anterior. Enquanto dormiam, sonhavam com os indicadores: crescimento do PIB, renda per capita, e era tudo uma maravilha. Quando pareciam que iam acordar, falaram besteira, por má-vontade ou má-fé, tentando colocar no mesmo lugar a proposta do PDT de reforma da previdência e aquela defendida pelo Guedes (Lamentavelmente a deputada Tábata Amaral também tem recorrido a essa falácia de comparar a proposta do PDT com aquela aprovada no Congresso) ou sinalizando que no Chile havia problemas, assim, superficialmente, com meia dúzia de palavras, só para não dizer que não falei, como fez Miriam Leitão. Ainda agora tem jornalista querendo enganar incautos afirmando que na proposta do governo estavam previstos três pilares e não apenas a capitalização pura e simples. Balela! Os três pilares estão previstos na proposta do PDT, defendida por Ciro Gomes e Mauro Benevides, e eram tratados como 'oposição desvairada' quando, no primeiro semestre de 2019, denunciavam as inconsequências do modelo chileno. Ambos pareciam profetas no deserto (no caso, no youtube, nas redes sociais, universidades, sindicatos, enfim, na estrada) uma vez que não tiveram espaço para apresentar a proposta que defendiam nos grandes meios de comunicação. Enquanto isso, todo dia, Jornal Nacional, CBN e todos os outros meios, martelando que sem reforma da previdência o Brasil estaria condenado ao caos.

Mas diante do caos no Chile, qual não é a minha surpresa: 'O Chile não é a maravilha que os liberais defendem', manchete no site da CBN, da coluna da Miriam Leitão, em 22/10. Agora a colunista resolveu mostrar quais os problemas que temos no Chile: desigualdade alarmante, serviços como ensino e saúde privatizados e, ora vejam, uma aposentadoria que empobrece a população de idosos, graças a reforma da previdência feita durante a ditadura militar, que introduziu o regime de capitalização individual, sem contribuição patronal, a mesma que era a menina dos olhos do Guedes...

E o que dizer da coluna do Reinaldo Azevedo na Folha no dia 25/10: "Não há mais o que privatizar por lá nem reforma da Previdência a fazer. Já foi feita. Vigora no país, desde 1981, o regime de capitalização, sem contribuição empresarial, o que é uma aberração." Sim, o Reinaldo está falando do Chile, e agora 'a capitalização sem contribuição empresarial é uma aberração'. Mas quando o Guedes apresentou sua proposta, incluindo a capitalização à la Chile, ela era boa, podia até conter eventuais exageros, mas era boa, e não deveria ser desfigurada. Reinaldo chegou a afirmar em seu programa O é da coisa, que 'até onde tinha visto, apoiava na íntegra a reforma da previdência do governo'. Ao falar da capitalização, Azevedo afirma que no Chile esse modelo está dando problemas, aposentadorias muito pequenas, e que era preciso pensar numa solução para que no Brasil isso não acontecesse. Para ele, a capitalização seria optativa, coisa que não era nada clara na proposta do governo. Muito pelo contrário, na página 55 da PEC, tópico 56, falava-se em "novo regime, que substituirá o RGPS". Se a ideia era substituir, não se tratava de algo optativo. É o que lemos na  página 54, tópico 55: "propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS quanto nos RPPS" (Talvez o Reinaldo não tenha lido essas páginas quando declarou seu apoio integral à proposta...). O regime de capitalização apresentado pelo governo era, no limite, um cheque em branco, pois o texto previa uma Lei complementar de iniciativa do poder executivo que iria instituir o novo regime. Tudo que sabíamos sobre o tal novo regime, era que Guedes se orientava pelo modelo chileno. Reinaldo amenizava os problemas que poderiam decorrer da reforma e dizia que 'a sociedade' teria que discutir. Simples assim. O problema era, e ainda é: 'a sociedade'  estava/está bem informada sobre o assunto? Conforme análise que fiz em outro texto, a discussão sobre a PEC 06/2019 esteve desde o início emaranhada em falácias, e uma delas é chamar de Reforma da Previdência o que era uma proposta de Reforma da Seguridade Social.

Pois é, fico feliz em ver que as pessoas, inclusive os jornalistas, podem recuperar o bom senso e o compromisso com os fatos. A imprensa e os profissionais do jornalismo não falham apenas quando manipulam fatos - isso é muito grave! -, mas também quando omitem os fatos. Durante o primeiro semestre, o objetivo da imprensa parecia ser aprovar a reforma da previdência. Para alcançar este fim, valia fechar os olhos para as mazelas que já se faziam presentes no país ali do lado. Quando Guedes publicamente afirmava que o modelo chileno era sua inspiração, não houve compromisso da imprensa e dos jornalistas em se debruçar sobre a realidade do Chile e informar a população brasileira das consequências que aquele modelo idealizado pelo ministro trouxe para os chilenos. Felizmente, a capitalização foi barrada no Congresso. Mas tramita no Senado uma PEC paralela que prevê a volta do sistema de capitalização. Agora, diante das convulsões vividas pelo Chile, restará a Paulo Guedes e sua turma fazer como Queiroz, dar uma sumidinha, fingir que não é com eles. Essa estratégia já é bem conhecida desse governo. Mas é preocupante que a imprensa brasileira também a adote. Informar a população, principalmente sobre temas que têm potencial de impactar diretamente a vida de milhões de pessoas, é tarefa que não pode ser feita de acordo com os humores do mercado ou interesses particulares de grupos. A seletividade do bom senso não pode ser estratégia do bom jornalismo. E, nesse contexto, a mudança no tom adotado essa semana por Miriam Leitão e Reinaldo Azevedo é um exemplo de como a imprensa e os jornalistas estão falhando na sua tarefa fundamental.


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