(Imagem : Divulgação Warner Bros) |
1- A ficção que parece realidade
O filme Coringa (Joker- 2019), dirigido por
Todd Phillips e com a impressionante atuação de Joaquin Phoenix,
é mais um filme que faz a gente sair do cinema sem rumo e mudo. Para quem não
gosta de filmes de super-herói ou desse universo das HQs, ainda vale a pena
considerar ver Coringa. Se você é professor/educador e trabalha com
adolescentes, mais um motivo para vê-lo. Se você se incomoda com a banalização
da violência promovida ultimamente por autoridades públicas, outro bom motivo
para ir ao cinema e conferir Coringa. Mas o meu objetivo não é fazer propaganda
do filme. Então vamos ao que interessa. (Aviso: o texto a seguir contém spoilers!)
Na telona vemos o retrato de um
indivíduo em sofrimento psíquico e emocional, um loser dentro de uma
sociedade totalmente doente e disfuncional. Um palhaço que tenta ganhar
a vida fazendo propaganda para comércios de rua. Há lixo por todos os lados,
barulho, gente andando feito zumbi por uma cidade suja, escura e muito feia. O
protagonista vive num prédio que mais parece um edifício abandonado. Mora com
uma mãe adoentada, frágil, que passa os dias diante da TV assistindo a
programas de humor e noticiários, uma alternância entre o riso provocado por
piadas de qualidade duvidosa e o horror diário da cidade, enquanto espera a
chegada do correio, de alguma resposta do ex-patrão para quem trabalhou no
passado. Ela acredita que aquele bom homem quando souber como ela e o
filho vivem, certamente virá em seu socorro. Entre o cuidado da mãe e o trabalho,
o personagem frequenta sessões de terapia num cômodo claustrofóbico,
com as paredes tomadas por estantes entulhadas de papéis, onde ele consegue um papel
que lhe garante medicamentos de graça. O quadro é desolador. Mas Arthur
Fleck quer ser comediante e numa espécie de diário anota seus rascunhos para um
show de stand-up. A vida, por sua vez, insiste em bater no personagem:
adolescentes roubam sua placa de anúncio, ele tenta recuperá-la e leva uma
surra dos moleques que acabam por quebrar a placa. O chefe chama Arthur e diz
que tem muitas reclamações dos clientes, o dono da loja reclama a placa que ele
perdeu, Arthur tenta se justificar e leva bronca. Os colegas de
trabalho, outros palhaços, riem e zombam de Arthur. Um deles tem a brilhante
ideia de oferecer uma arma ao personagem, para que ele se defenda de
bandidos e moleques que roubam tudo e fazem maldades. Entre muitas coisas ruins
que lhe acontece, Arhtur é mandado embora do emprego e é avisado de que o
programa de saúde que frequentava semanalmente foi cancelado: não teria mais
reunião nem remédios. Na volta para casa, três homens bem vestidos (de terno e
gravata) e bêbados, depois de importunarem uma jovem, partem para cima de
Arthur e mais uma vez ele é espancado.
A cidade tomada pela sujeira -
montanhas de sacos de lixo pelas ruas e muita pichação - e pela miséria é o
cenário perfeito para que a revolta e a violência se alastrem e junto com eles
o ódio aos ricos, uma pequena parcela daquela sociedade decadente que
segue imune a todos os dramas vividos pela massa. Uma elite que vai ao teatro e
ao cinema com suas roupas e chapéus elegantes, confiantes de que desfrutam
daquilo que merecem porque se esforçaram para ter aquela vida. O sonho
de Fleck é participar do famoso programa de humor da TV. Um dia, um vídeo seu,
de um stand-up, vai parar na TV. Mas ele é ridicularizado e humilhado pelo
apresentador. Em meio a tudo isso, cresce o motim na cidade, principalmente
depois que três homens são assassinados no metrô por um sujeito vestido de
palhaço. A cidade está fora de controle. Arruaceiros tomam conta de cada
esquina: roubam, pilham, matam, botam fogo em tudo. E todos vestidos de palhaço.
Pois, um sujeito da elite, Thomas Wayne, que pretendia estrear na política,
apareceu na TV chamando toda aquela multidão de insatisfeitos e revoltados que
de certa maneira, haviam comemorado o assassinato dos três homens de bem
no metrô, de palhaços.
2- A realidade
Foi também através das telas
de TV que um sujeito medíocre e sem graça ganhou notoriedade num programa de humor.
Ele não queria ser comediante, mas os comediantes do programa achavam que daria
uma boa piada o discurso destemperado daquele político sem brilho e rejeitado
pelos próprios colegas. Achavam que seus ataques preconceituosos e sua defesa
descabida da ditadura poderiam ser motivos de risadas (e de pontos de
audiência). Funcionou, muita gente teve notícia de um deputado sem noção,
racista, homofóbico e machista. Mas não acharam graça. Levaram a sério. Acharam
que ele representava bem suas próprias insatisfações. Suas falas grotescas e
violentas encontraram eco numa população sofrida e cansada de sentir feita de
palhaço por uma classe política que finge bons modos, que faz discurso politicamente
correto, mas que não sente nenhum pudor em aceitar suborno, em participar
de esquemas ilícitos, em se sentar na mesa dos poderosos e fazer acordos
indecorosos.
Mas o deputado-comediante era diferente. Ele era sincero, dizia
exatamente o que todos queriam dizer. E foi assim, fazendo sinal de arminha com
as mãos, defendendo o armamento da população, a pena de morte, negando a
história e mentindo descaradamente, que esse sujeito virou presidente. Embora
chamado de mito por seus seguidores, o que pode nos remeter a figura do
herói tal qual nos mitos gregos, o sujeito em questão nada tem de herói. E se
quisermos reduzir o mundo ao maniqueísmo das HQs, certo mesmo seria chamá-lo de
vilão. No entanto, como nos mostra o filme Coringa, a personalidade do vilão
pode ser muito complexa. De modo que, ao contar a história da construção dessa
personalidade de vilão, cai por terra o próprio maniqueísmo herói-vilão.
Diferente do que esbravejava o deputado-comediante, bandido não é uma
condição de nascença. Não se nasce bandido, não se nasce vilão. Mas muitos
fatores podem nos ajudar a entender como alguém se torna um vilão ou um bandido.
E contar essa história, ao contrário das acusações feitas ao filme Coringa, não
é justificar suas ações de vilão, nem retirar sua responsabilidade pelas ações
cometidas. Mas pode ser uma maneira de evitarmos que outros vilões apareçam.
Humanizar o vilão, mostrar a complexidade de ser humano, pode servir
como vacina ou antídoto num mundo sujo e tão propício a espalhar sua
sujeira aos quatro ventos.
3- A realidade que parece
ficção
O deputado-comediante-sem-graça
que virou presidente teve uma infância pobre numa região que, como muitas
outras de seu país, era dominada por uma elite, um coronel ou coisa do
tipo. Ele, quando menino, experimentou esse sentimento de
revolta, tão comum a quem em sua condição se vê diante da fartura de uns
poucos. Não parece fazer sentido, os perrengues diários de muitos versus a
abundância e excessos de uns poucos: casas luxuosas, carros, piscinas, crianças
que podem tomar sorvetes, enquanto se vive numa pequena casa de dois quartos,
com mais cinco irmãos e é preciso trabalhar desde garoto para que a família tenha
como sobreviver. Dá raiva mesmo. Sentimos que é injusto. Essa talvez tenha sido
a primeira e mais profunda experiência do nosso personagem com o sentimento de
'ódio aos ricos'.
O deputado-comediante quando
adolescente assistiu a uma caçada, de mocinhos contra bandido, e desde
então, achou que o mundo era assim, divido entre bons e maus. E ele
decidiu que estaria do lado dos 'bons'. Foi para o exército. A guerra entre
mocinhos e bandidos, heróis e vilões, foi cultivada na sua curta inteligência.
Misturando esse episódio com aquele ´ódio aos ricos' da infância, nosso
personagem escolheu como seu inimigo um dos herdeiros daquela família
poderosa da pequena cidade de sua meninice. E a ditadura que prendeu e matou
seu inimigo, se transformou em sua grande heroína. A ditadura fez justiça
contra aquela família mesquinha de ricos da sua infância pobre.
Mas não era bem no exército que ele queria ficar - talvez lhe faltasse destreza com as armas, embora devote a elas certa fixação fálica, pois mesmo armado, certa vez foi assaltado e levaram sua moto. E foi depois de quase liderar um motim no exército por aumento de soldo e de um plano frustrado de explodir bombas em quartéis do Exército que ele se tornou político.
Se o Exército era o lugar dos
mocinhos, ao se rebelar contra o exército, nosso personagem estaria indo para o
outro lado, o dos bandidos? E foi na condição de político que ele
defendeu bandidos sem nenhuma cerimônia: fez apologia às milícias (e,
hoje sabemos, manteve amizade próxima com milicianos, inclusive empregando
familiares deles no seu gabinete). Diz o ditado que filho de peixe, peixinho
é, e no caso do nosso personagem, os três filhos são políticos e também
empregaram milicianos e familiares em seus gabinetes. Que fique claro, não
acredito que seja uma questão de natureza ou essência. Mas não
duvidamos que o exemplo e o hábito tenham forjado na prole os mesmos maus
comportamentos do progenitor.
Nosso personagem, assim como o
Coringa, talvez tenha uma dificuldade em discernir entre realidade e imaginação.
Pior, talvez tenha sérios problemas em aceitar que a realidade não se submete à
sua imaginação. Essa insubordinação o deixa muito contrariado, e é preciso
atacar a realidade, violentá-la a fim que de que se adeque aos seus desejos.
O que não falta são pessoas
dizendo que nosso personagem, tal qual Arthur Fleck, sofre de algum transtorno
mental. Mas até hoje essas acusações são só boatos. Mas quem se dispõe a
analisar as falas do nosso personagem, rapidamente encontra: sinais claros de
ressentimento; uma insegurança mal disfarçada que aparece na forma de ataques a
tudo e a todos; alguns temas recorrentes em seus discursos e ataques que
revelam possíveis traumas de infância ou baixa autoestima; uma mania de
grandeza e ao mesmo tempo de perseguição, comportamentos tipicamente
paranoicos.
Muito provavelmente nosso
personagem, da mesma maneira que Arthur Fleck, precisou de ajuda e, é bem
provável, também se viu abandonado e sozinho. Não sabemos bem quem foram seus
algozes, mas é possível arriscar que aquela família rica da sua infância
personificou o alvo do seu ódio ao mesmo tempo que figurava como culpada por
sua pobreza e as mazelas que certamente viveu junto de sua família na infância.
Talvez de maneira até inconsciente, seu objetivo sempre tenha sido ocupar o
lugar dos seus inimigos. A sua ganância foi observada durante a passagem pelo
exército. Hoje, na pequena cidade da sua infância, é o seu sobrenome que se
destaca no comércio local. Hoje sua família é a dona da cidade. Chegar à
presidência era tão impossível, que ainda hoje, claramente, nosso personagem
não consegue lidar com a realidade e vive no eterno papel do candidato, no
palanque, fazendo promessas e bravatas, instigando as massas à violência e ao
caos.
Com um palhaço na presidência,
lendo as notícias a gente ri, mas é de puro desespero, de nervoso. Estamos
experimentando a doença de Fleck. Porque o presidente-palhaço continua sem
graça, o país cada dia mais parece aquela cidade feia e suja da telona, a
miséria cresce, o número de desempregados e da violência também, enquanto
partes do país ardem em fogo, tal qual a cena final do filme. E quando o
presidente abre a boca, como seu discurso tresloucado na ONU, o que se ouve é
uma piada de mau gosto. Ninguém ri. Mas é bem possível que o mundo vire as
costas para esse país. E como não se trata de um enredo de HQ, não adianta
esperar um herói para nos salvar. Uma coisa é certa: só o caos é a garantia de
que ele continuará reinando, e por isso também nosso personagem não pode
abandonar seu papel: o de palhaço que põe fogo no circo.
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