domingo, 23 de outubro de 2022

Fake news, caos informacional e eleição no Brasil de 2022

Com Donald Trump[1], políticos do mundo todo aprenderam a apontar para as notícias publicadas nos jornais que contrariam suas vontades ou colocam seus interesses em risco e gritar: É fake news! E parece que a moda pegou. A atitude, no entanto, não é nenhuma novidade. Acusar seus adversários de mentir, não é um privilégio dos nossos tempos. No entanto, cada vez mais vemos, não só políticos, mas partidários, eleitores, defensores, fãs de um político apontando e gritando contra os adversários: é fake news! Pode ser um twitte, um vídeo, uma declaração do candidato durante um debate. Mas será que tudo é fake news? Afinal, o que é fake news?

Imagem disponível em Pixabay

O jornalista e professor da Escola de Comunicação da USP, Eugênio Bucci, em artigo publicado na coletânea Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas, propõe o seguinte: notícias de jornal, as News em inglês, que são geradas por jornalistas que trabalham para um órgão de imprensa com todos os registros legais, com editores que podem ser acionados caso faltem com a verdade, podem errar, podem conter informações incorretas podem, infelizmente, difundir discurso de ódio e preconceitos, podem até ser mentirosas, mas não são fakes. As fakes, por sua vez, segundo Bucci, constituem outra modalidade de mentira. E sua primeira fraude é justamente falsificar suas condições: apresentam-se como se fossem notícias, simulando a linguagem jornalística, como se tivessem sido produzidas por uma redação profissional. Nas palavras de Bucci: “Elas se fazem passar por jornalismo sem ser jornalismo. São News falsificadas” e sua origem é desconhecida, impossível encontrar o autor, impossível ter com quem reclamar sobre seu conteúdo[2].

O avanço da tecnologia, em especial da internet e sua popularização, principalmente, através das mídias digitais – blogs, sites – e das redes sociais, a partir dos anos 2000, foi acompanhado de pontos positivos, como a democratização do acesso à informação e também criou espaços para o questionamento e a organização contra regimes autoritários e fechados em busca de mais democracia, situação que a Primavera Árabe ilustra muito bem. No entanto, também contribuiu para criar um cenário que estudiosos vêm chamando de desordem informacional, infodemia e que se materializam no espalhamento de fake news e de desinformação, de modo mais amplo, como sendo parte da nova realidade na qual estamos inseridos.

Durante a pandemia da Covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a afirmar que além da pandemia estávamos enfrentando uma infodemia e com isso entendia uma quantidade muito grande de informação circulando sobre o tema, sendo que nem todas provinham de fontes confiáveis, o que estava dificultando o acesso da população às orientações corretas sobre a doença e o vírus[3]. E ao que tudo indica, esse excesso de informação e a proliferação de desinformação não irão desaparecer tão cedo.

Quando falamos de desinformação não estamos falando só de fake news, no sentido delimitado por Bucci. Muitas vezes as fake news são apenas uma parte do que se tem chamado ecossistema da desinformação[4]. Ao falar de desinformação estamos falando de uma variedade muito maior de possibilidades de enganar, confundir e manipular as pessoas, seja a fim de obter lucros políticos ou mesmo econômicos. Como diz Bucci, as notícias fraudulentas, e nós acrescentamos, a desinformação de modo mais amplo, dão lucro, se converteram num negócio obscuro. E tanto as fake news, propriamente falando, como todos os outros exemplos de desinformação – descontextualização ou manipulação de contexto; legendas e manchetes que não confirmam o conteúdo do artigo ou notícia; conteúdos enganosos, que embora não seja mentira, podem levar o leitor a conclusões erradas e até sátiras ou paródias que podem ser tomadas como verdade por um leitor menos atento[5] – estão diretamente conectados à existência das tecnologias digitais da internet que garantem à mentira um volume, uma escala e uma velocidade que não tem precedentes na história da humanidade. 

Mas, se temos a impressão de que estamos inundados por fake news de todos os lados, parece que antes fomos inundados por opiniões, muitas opiniões sobre tudo e qualquer coisa. As redes sociais transformaram cada usuário, cada perfil, num potencial colunista de opinião. E como é de interesse dessas plataformas – Facebook, Instagram, Twitter – que passemos a maior parte do nosso tempo conectados e fornecendo conteúdos para elas, somos todos incentivados a nos manifestar e expressar nossas opiniões sobre qualquer assunto:  a última treta entre participantes de reality show, um novo produto de uma marca, uma declaração de líder religioso, um novo projeto de lei aprovado no Congresso, uma nova vacina, um artigo científico – ou seja, tudo virou questão de opinião. E como observa o cientista político Miguel Lago, “a riqueza do registro da opinião é que, por ser de caráter subjetivo, tudo aí se equivale. Todos são igualmente detentores de opiniões e todos devem ter direito à sua, sem nenhuma prevalência sobre as demais.” Mas qual seria o problema? Aparentemente essa possiblidade de todos manifestarem suas opiniões deveria ser comemorada e considerada uma ampliação das garantias da liberdade de expressão e opinião. Certo? Não é bem assim.

Se, por um lado, é muito bom que todos possam manifestar livremente, sem censura ou qualquer outro tipo de coerção, suas opiniões, por outro, não é verdade que tudo e qualquer coisa é matéria de opinião. Como esclarece Miguel Lago, essa característica equalizadora do registro das redes sociais acaba por gerar uma dificuldade de discernimento dos diferentes registros na esfera pública. Por exemplo, um estudo científico, produzido e publicado seguindo métodos científicos, não pode ser rebatido por um tuite opinativo. Para contestar os resultados de um estudo científico, seria necessário outro estudo científico, seguindo uma metodologia específica, verificado por outros cientistas. Isso também vale para declarações emitidas por autoridades ou instituições, elas não deveriam ser entendidas como meras opiniões[6]. Mas as redes sociais acabaram por instaurar o “império das opiniões”.

A filósofa Hannah Arendt, em artigo publicado em 1967, afirma que o apagamento da linha divisória entre opinião e verdade factual é uma das formas que o mentir pode assumir. Por verdade factual a autora entende “as verdades vistas e testemunhadas com os olhos do corpo”. Segundo Arendt, a verdade factual é política por natureza, uma vez que se relaciona sempre com outras pessoas, diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos e é estabelecida por testemunhas, dependente da comprovação, a verdade factual existe apenas na medida em que se fala sobre ela. E a autora é muito clara ao dizer que “fatos e opiniões, embora possam ser mantidos separados, não são antagônicos”, ao contrário, são os fatos que informam as opiniões. As opiniões podem divergir entre si, uma vez que podem ser inspiradas em diferentes paixões, mas não podem pretender alterar os próprios fatos, pois isso seria atentar contra a própria liberdade de opinião. Ou, nas palavras da própria Arendt, “a liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados.[7]

O apagamento da linha divisória entre a verdade factual e a opinião pode ser observado quando agentes propagadores de mentiras e falsidades são confrontados e, incapazes de sustentar a verdade de suas afirmações, alegam tratar-se de sua “opinião” ou de seu “ponto de vista” e apelam para a defesa da liberdade de expressão, dizendo-se vítima de censura ou perseguição. Num momento em que tanto se fala de liberdade de opinião e tantas mentiras são disseminadas em nome da liberdade de opinião, não é demais lembrar que liberdade de opinião e de expressão não é liberdade para criar seus próprios fatos.

No mesmo artigo de 1967, Verdade e política, Arendt afirmou que todo mentiroso é um alguém que quer transformar o mundo: “ele diz o que não é por desejar que as coisas sejam diferentes daquilo que são”.  Na reta final da disputa eleitoral mais violenta da história recente do país[8] e com desinformação rolando desenfreadamente, é preciso ficarmos atentos aos mecanismos de falsificação dos fatos, às estratégias de desinformação, não só aquelas usadas por nossos adversários, mas para não cairmos nós na tentação de borrar a linha divisória – tênue e sempre muito delicada, é preciso dizer – que separa verdade factual da opinião. Ainda que tenhamos fins nobres – salvar nossa democracia ou evitar a consolidação de um governo autoritário -, não podemos nos render ao caos da desinformação e ajudar a mergulhar o país numa confusão e desordem cujo resultado, como já dizia Hannah Arendt, não seria que as mentiras seriam aceitas no lugar da verdade e a verdade seria difamada como mentira, mas a destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real[9], destruindo inclusive os meios mentais para discernir verdade de falsidade.



[1]MARIN, Denise Chrispim; TAVARES, Flavia, Como Trump sequestrou os fatos e os travestiu de fake news, Revista Época, disponível em:  https://epoca.oglobo.globo.com/mundo/noticia/2018/01/como-trump-sequestrou-os-fatos-e-os-travestiu-de-fake-news.html.

[2] BUCCI, Eugênio, News não são fake – e fake news não são News, in Pós-verdade e fake News: reflexões sobre a guerra de narrativas, org. Mariana Barbosa, Cobogó, 2019.

[3] Moreira, Larissa Domingues, Infodemia: uma ameaça à saúde pública global durante e após a pandemia de Covid-19, Arca: Repositório Institucional da Fio Cruz, disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/47082.

[4]VILLEN, Gabriela, O ecossistema da desinformação, Jornal da Unicamp, disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/08/20/o-ecossistema-da-desinformacao.

[5] BUCCI, Eugênio, Existe democracia sem verdade factual?, Barueri,SP: Estação das Letras e Cores, 2019, p.13-14. .

[6] STARLING, Heloisa M.; LAGO, Miguel; BIGNOTTO, Newton. Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise, São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

[7] ARENDT, Hannah, Verdade e política, in Entre o passado e o futuro, trad. Mauro W. Barbosa, São Paulo: Perspectiva, 2016, p.295.

[8] ANJOS, Ana Beatriz e outros; Exclusivo: eleição teve ao menos 3 casos de violência por dia e 6 assassinatos; A pública, disponível em: https://apublica.org/2022/10/exclusivo-eleicao-teve-6-assassinatos-e-ao-menos-3-casos-de-violencia-por-dia/

[9] ARENDT, Hannah, Verdade e política, in Entre o passado e o futuro, trad. Mauro W. Barbosa, São Paulo: Perspectiva, 2016, p.318.

Um comentário:

Anônimo disse...

Neste contexto em que vemos uma enxurrada de mentiras, notícias fabricadas e fatos distorcidos interferindo na percepção dos fatos, um texto como esse vem no sentido de lançar luz à realidade, estimulando o pensamento crítico e racional. Ótimo texto! Realmente necessário!

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