Com Donald Trump[1], políticos do mundo todo aprenderam a apontar para as notícias publicadas nos jornais que contrariam suas vontades ou colocam seus interesses em risco e gritar: É fake news! E parece que a moda pegou. A atitude, no entanto, não é nenhuma novidade. Acusar seus adversários de mentir, não é um privilégio dos nossos tempos. No entanto, cada vez mais vemos, não só políticos, mas partidários, eleitores, defensores, fãs de um político apontando e gritando contra os adversários: é fake news! Pode ser um twitte, um vídeo, uma declaração do candidato durante um debate. Mas será que tudo é fake news? Afinal, o que é fake news?
Imagem disponível em Pixabay |
O jornalista e professor da Escola de
Comunicação da USP, Eugênio Bucci, em artigo publicado na coletânea
Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas, propõe o
seguinte: notícias de jornal, as News em inglês, que são geradas por
jornalistas que trabalham para um órgão de imprensa com todos os registros
legais, com editores que podem ser acionados caso faltem com a verdade, podem
errar, podem conter informações incorretas podem, infelizmente, difundir
discurso de ódio e preconceitos, podem até ser mentirosas, mas não são fakes.
As fakes, por sua vez, segundo Bucci, constituem outra modalidade de
mentira. E sua primeira fraude é justamente falsificar suas condições:
apresentam-se como se fossem notícias, simulando a linguagem jornalística, como
se tivessem sido produzidas por uma redação profissional. Nas palavras de
Bucci: “Elas se fazem passar por jornalismo sem ser jornalismo. São News falsificadas”
e sua origem é desconhecida, impossível encontrar o autor, impossível ter com
quem reclamar sobre seu conteúdo[2].
O avanço da tecnologia, em especial
da internet e sua popularização, principalmente, através das mídias digitais –
blogs, sites – e das redes sociais, a partir dos anos 2000, foi acompanhado de
pontos positivos, como a democratização do acesso à informação e também criou
espaços para o questionamento e a organização contra regimes autoritários e
fechados em busca de mais democracia, situação que a Primavera Árabe ilustra
muito bem. No entanto, também contribuiu para criar um cenário que estudiosos
vêm chamando de desordem informacional, infodemia e que se materializam
no espalhamento de fake news e de desinformação, de modo mais amplo,
como sendo parte da nova realidade na qual estamos inseridos.
Durante a pandemia da Covid-19, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a afirmar que além da pandemia
estávamos enfrentando uma infodemia e com isso entendia uma quantidade
muito grande de informação circulando sobre o tema, sendo que nem todas
provinham de fontes confiáveis, o que estava dificultando o acesso da população
às orientações corretas sobre a doença e o vírus[3].
E ao que tudo indica, esse excesso de informação e a proliferação de
desinformação não irão desaparecer tão cedo.
Quando falamos de desinformação não
estamos falando só de fake news, no sentido delimitado por Bucci. Muitas
vezes as fake news são apenas uma parte do que se tem chamado ecossistema
da desinformação[4].
Ao falar de desinformação estamos falando de uma variedade muito maior de
possibilidades de enganar, confundir e manipular as pessoas, seja
a fim de obter lucros políticos ou mesmo econômicos. Como diz Bucci, as
notícias fraudulentas, e nós acrescentamos, a desinformação de modo mais amplo,
dão lucro, se converteram num negócio obscuro. E tanto as fake news, propriamente
falando, como todos os outros exemplos de desinformação – descontextualização
ou manipulação de contexto; legendas e manchetes que não confirmam o conteúdo
do artigo ou notícia; conteúdos enganosos, que embora não seja mentira,
podem levar o leitor a conclusões erradas e até sátiras ou paródias que podem
ser tomadas como verdade por um leitor menos atento[5]
– estão diretamente conectados à existência das tecnologias digitais da
internet que garantem à mentira um volume, uma escala e uma velocidade que não tem
precedentes na história da humanidade.
Mas, se temos a impressão de que
estamos inundados por fake news de todos os lados, parece que antes
fomos inundados por opiniões, muitas opiniões sobre tudo e
qualquer coisa. As redes sociais transformaram cada usuário, cada perfil, num
potencial colunista de opinião. E como é de interesse dessas plataformas –
Facebook, Instagram, Twitter – que passemos a maior parte do nosso tempo
conectados e fornecendo conteúdos para elas, somos todos incentivados a
nos manifestar e expressar nossas opiniões sobre qualquer assunto: a última treta entre participantes de reality
show, um novo produto de uma marca, uma declaração de líder religioso, um
novo projeto de lei aprovado no Congresso, uma nova vacina, um artigo
científico – ou seja, tudo virou questão de opinião. E como observa o cientista
político Miguel Lago, “a riqueza do registro da opinião é
que, por ser de caráter subjetivo, tudo aí se equivale. Todos são igualmente
detentores de opiniões e todos devem ter direito à sua, sem nenhuma prevalência
sobre as demais.” Mas qual seria o problema? Aparentemente essa possiblidade de
todos manifestarem suas opiniões deveria ser comemorada e considerada uma
ampliação das garantias da liberdade de expressão e opinião. Certo? Não é bem
assim.
Se, por um lado, é
muito bom que todos possam manifestar livremente, sem censura ou qualquer outro
tipo de coerção, suas opiniões, por outro, não é verdade que tudo e qualquer
coisa é matéria de opinião. Como esclarece Miguel Lago, essa característica
equalizadora do registro das redes sociais acaba por gerar uma dificuldade de
discernimento dos diferentes registros na esfera pública. Por exemplo, um
estudo científico, produzido e publicado seguindo métodos científicos, não pode
ser rebatido por um tuite opinativo. Para contestar os resultados de um estudo
científico, seria necessário outro estudo científico, seguindo uma metodologia
específica, verificado por outros cientistas. Isso também vale para declarações
emitidas por autoridades ou instituições, elas não deveriam ser entendidas como
meras opiniões[6]. Mas as redes
sociais acabaram por instaurar o “império das opiniões”.
A filósofa Hannah
Arendt, em artigo publicado em 1967, afirma que o apagamento da linha divisória
entre opinião e verdade factual é uma das formas que o mentir pode
assumir. Por verdade factual a autora entende “as verdades vistas e
testemunhadas com os olhos do corpo”. Segundo Arendt, a verdade factual é
política por natureza, uma vez que se relaciona sempre com outras pessoas, diz
respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos e é
estabelecida por testemunhas, dependente da comprovação, a verdade factual
existe apenas na medida em que se fala sobre ela. E a autora é muito clara ao
dizer que “fatos e opiniões, embora possam ser mantidos separados, não são
antagônicos”, ao contrário, são os fatos que informam as opiniões. As opiniões
podem divergir entre si, uma vez que podem ser inspiradas em diferentes
paixões, mas não podem pretender alterar os próprios fatos, pois isso seria
atentar contra a própria liberdade de opinião. Ou, nas palavras da própria
Arendt, “a liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual
seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados.[7]”
O apagamento da
linha divisória entre a verdade factual e a opinião pode ser
observado quando agentes propagadores de mentiras e falsidades
são confrontados e, incapazes de sustentar a verdade de suas afirmações, alegam
tratar-se de sua “opinião” ou de seu “ponto de vista” e apelam para a defesa da
liberdade de expressão, dizendo-se vítima de censura ou perseguição. Num
momento em que tanto se fala de liberdade de opinião e tantas mentiras são
disseminadas em nome da liberdade de opinião, não é demais lembrar que
liberdade de opinião e de expressão não é liberdade para criar seus próprios
fatos.
No mesmo artigo de
1967, Verdade e política, Arendt afirmou que todo mentiroso é um alguém
que quer transformar o mundo: “ele diz o que não é por desejar que as coisas
sejam diferentes daquilo que são”. Na
reta final da disputa eleitoral mais violenta da história recente do país[8] e com
desinformação rolando desenfreadamente, é preciso ficarmos atentos aos
mecanismos de falsificação dos fatos, às estratégias de desinformação, não só
aquelas usadas por nossos adversários, mas para não cairmos nós na tentação de
borrar a linha divisória – tênue e sempre muito delicada, é preciso dizer – que
separa verdade factual da opinião. Ainda que tenhamos fins nobres – salvar
nossa democracia ou evitar a consolidação de um governo autoritário -, não
podemos nos render ao caos da desinformação e ajudar a mergulhar o país numa confusão
e desordem cujo resultado, como já dizia Hannah Arendt, não seria que as
mentiras seriam aceitas no lugar da verdade e a verdade seria difamada como
mentira, mas a destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo
real[9], destruindo
inclusive os meios mentais para discernir verdade de falsidade.
[1]MARIN,
Denise Chrispim; TAVARES, Flavia, Como Trump sequestrou os fatos e os travestiu
de fake news, Revista Época, disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/mundo/noticia/2018/01/como-trump-sequestrou-os-fatos-e-os-travestiu-de-fake-news.html.
[2]
BUCCI, Eugênio, News não são fake – e fake news não são News,
in Pós-verdade e fake News: reflexões sobre a guerra de narrativas, org. Mariana Barbosa, Cobogó, 2019.
[3] Moreira, Larissa Domingues, Infodemia: uma ameaça à saúde
pública global durante e após a pandemia de Covid-19, Arca: Repositório
Institucional da Fio Cruz, disponível em:
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/47082.
[4]VILLEN, Gabriela, O
ecossistema da desinformação, Jornal da Unicamp, disponível em:
https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/08/20/o-ecossistema-da-desinformacao.
[5] BUCCI, Eugênio, Existe democracia sem verdade factual?,
Barueri,SP: Estação das Letras e Cores, 2019, p.13-14. .
[6] STARLING, Heloisa M.; LAGO, Miguel;
BIGNOTTO, Newton. Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise,
São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[7] ARENDT, Hannah, Verdade e política,
in Entre o passado e o futuro, trad. Mauro W. Barbosa, São Paulo: Perspectiva,
2016, p.295.
[8]
ANJOS, Ana Beatriz e outros; Exclusivo: eleição teve ao menos 3 casos de
violência por dia e 6 assassinatos; A pública, disponível em: https://apublica.org/2022/10/exclusivo-eleicao-teve-6-assassinatos-e-ao-menos-3-casos-de-violencia-por-dia/
[9] ARENDT, Hannah, Verdade e política,
in Entre o passado e o futuro, trad. Mauro W. Barbosa, São Paulo: Perspectiva,
2016, p.318.
Um comentário:
Neste contexto em que vemos uma enxurrada de mentiras, notícias fabricadas e fatos distorcidos interferindo na percepção dos fatos, um texto como esse vem no sentido de lançar luz à realidade, estimulando o pensamento crítico e racional. Ótimo texto! Realmente necessário!
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