quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Como tornar um menino um homem? Não qualquer homem, mas um bom homem

 “E eu te conheço menos, a cada dia.” Dorothea, em Mulheres do século XX, sobre seu filho adolescente, Jamie

Essa me parece uma ótima pergunta. Uma pergunta que talvez tenha sido negligenciada em décadas de feminismo. Mas, claro, falo a partir do meu umbigo, das minhas experiências e percepções, principalmente como professora em sala de aula, em contato com adolescentes. Além daquela pergunta, seria muito importante que ensinássemos os meninos a se questionarem desde cedo a respeito do que é ser um homem. Nós, mulheres, estamos lidando com esses questionamentos há alguns séculos. Talvez por isso, em Mulheres do século XX, quando sente necessidade de buscar ajuda para a tarefa de tornar seu filho adolescente, Jamie, um homem, Dorothea recorra a duas outras mulheres, mais jovens que ela, e bastante escoladas no feminismo dos anos 70.

Desde que eu era adolescente, e olha que tive uma adolescência com muitas limitações numa pequena cidade de Minas Gerais, havia uma preocupação, entre professores, principalmente professoras, em dizer para as meninas que elas poderiam fazer muitas coisas, além de casar. E desde que me mudei para Campinas, durante os anos de faculdade e depois de formada já em sala de aula como professora do ensino médio, essa fala de empoderamento das meninas se tornou muito mais forte e presente no dia a dia escolar e na sociedade de maneira geral. Disseram, e eu disse também, que as meninas poderiam ser o que elas quisessem. Mas faz alguns anos que tenho me perguntado se não falhamos em dar a mesma mensagem para os meninos.

Claro, alguém pode me dizer que os homens sempre puderam tudo. Que num mundo machista, eram as mulheres que precisavam ser estimuladas a assumirem lugares até então proibidos.  Que numa sociedade patriarcal, quem precisava ser capaz de enxergar possibilidades de ser de outras maneiras eram as meninas. Mas não seria a ideia de homem, de masculinidade, tão limitante e opressora para muitos garotos como aquele ideal de mulher o era para as garotas? Na medida em que as meninas empoderadas se tornaram mulheres empoderadas, não estaria havendo um descompasso no mundo entre homens e mulheres? Não seria esse descompasso um dos motivos de vivermos nos últimos dez anos numa sociedade invadida pelo ressentimento masculino, por ataques misóginos e crescentes taxas de feminicídios? Pelo aparecimento de grupos red pills nas profundezas e, por que não, na superfície da internet?

Revendo o excelente filme Mulheres do século XX, de Mike Mills (EUA, 2016, Netflix), me peguei pensando em como é urgente problematizarmos o lugar e a ideia de masculinidade, o que é ser homem, com nossos adolescentes. A linha mestra do filme é o diálogo. As cenas permeadas por diálogos delicados, honestos e por vezes constrangedores, explorando as fragilidades que nos fazem humanos, mostram que esse é o caminho para nos humanizar. Antes de nos tornarmos homens ou mulheres, é fundamental nos tornarmos humanos, familiarizados com tudo que é humano: dúvidas, medos, inseguranças, amor, desejos, frustrações, paixões, prazer, dor.

Onde falta o diálogo, a palavra, sobra violência, sobra o uso da força bruta. Quanto menos somos capazes de nomear o que sentimos, os bons e os maus sentimentos, menos equipados estamos para lidar com nós mesmos e com os outros. Com nossas perdas, com as emoções fortes que tendem a nos tirar do prumo, com os imprevistos, com tudo que escapa ao nosso controle. É preciso que pelo menos tenhamos a palavra, palavras, para nomear e narrar o que nos acontece e, assim, nos sentirmos um pouco que seja, confortável no mundo, confortável em nossa própria pele. Para tornar meninos bons homens – e meninas boas mulheres – é urgente que sejamos capazes de tornar crianças bons humanos adultos: sensíveis, emocionalmente confiantes, conscientes de seus limites, capazes de reconhecer nos outros a mesma humanidade que reconhece, respeita e valoriza em si mesmo, curiosos – pelo mundo e pelos humanos que habitam esse mundo -, empáticos e honestos consigo e com aqueles que estão a sua volta.

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