quinta-feira, 25 de junho de 2020

Como Schopenhauer e Nietzsche nos ajudam a entender a série Dark - Parte 2

" Não podemos fugir do nosso destino. Nem eu, nem você."
“A dor é seu navio, o desejo é sua bússola.”
Adam

Em "Como Schopenhauer e Nietzsche nos ajudam a entender a série Dark- Parte 1", finalizei o texto com a pergunta: Jonas poderá mudar o rumo da sua história ou está condenado a se tornar  Adam? Depois de pensar mais um pouco e de ver alguns vídeos, principalmente esse vídeo do canal Montoch, estou bastante inclinada a pensar que não formulei a pergunta correta. E se Adam não for Jonas? Na verdade, quando Adam apareceu e se apresentou como sendo o Jonas mais velho, eu não fiquei convencida. Ao ver a série pela primeira vez, minha intuição dizia que Mikkel/Michael seria o Adam (os dois personagens, Jonas e Michael, têm a marca no pescoço, como o Adam, e isso pode ter sido justamente para nos despistar...). Ao rever as duas temporadas, acabei me resignando com a ideia de que Jonas e Adam seriam a mesma pessoa. No entanto, neste momento tenho muitas dúvidas. Minha intuição me fez perceber, logo no começo da primeira temporada, que Mikkel seria Michael, então, talvez eu devesse confiar mais nela... E, talvez, a pergunta correta seja: Qual o destino de Jonas?

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Jonas e 'Martha' do mundo dois. Imagem de divulgação.

Com o final da segunda temporada e a revelação da existência de um mundo paralelo ou espelhado, de onde vem a "outra" Martha, pode ser que tenhamos na terceira temporada um confronto entre dois mundos, como eu havia sugerido no texto anterior, um mundo schopenhaueriano e outro nietzschiano. No entanto, a personificação desse confronto pode não ser Adam e Noah, como eu havia sugerido, mas Adam e algum personagem do mundo 2, que tenha uma relação com Martha 2, semelhante a que vemos entre Adam e Jonas. Aparentemente a nova Martha assumirá o protagonismo na última temporada e pode ser que ela encarne o espírito nietzschiano em oposição ao Adam-Schopenhauer. Sendo ela responsável por dizer "Sim" à vontade de potência, enquanto Adam busca uma forma de negação definitiva da vontade. Uma das coisas que me faz pensar nessa teoria, Martha-Nietzsche, é o teatro da escola da primeira temporada, no qual Martha interpreta Ariadne num monólogo cheio de simbologia e forte carga emocional. Espero que essa minha hipótese possa fazer algum sentido no final desse texto! Certamente muitas coisas podem mudar com as revelações da terceira temporada e minhas especulações podem se mostrar completamente equivocadas. De todo modo, há vários elementos que já foram exploradas nas duas primeiras temporadas e que pretendo desenvolver nesse segundo texto.

Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vezes e sempre se escoará outra vez, – um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas.”    Nietzsche, Vontade de Potência

Logo que a ideia de repetição e de um tempo circular aparecem na série, quem conhece alguma coisa de Nietzsche, nem que seja só de orelhada, é levado a pensar na doutrina do eterno retorno. Mas, também na filosofia de Schopenhauer, encontramos a ideia de repetição, e de um tempo circular, que parece nos colocar diante de um presente eterno:
"Podemos comparar o tempo a um círculo que gira incessantemente: a metade sempre a descer seria o passado, a outra sempre a subir seria o futuro; porém, acima, o ponto indivisível que toca a tangente seria o presente inextenso; (...) Ou, o tempo é uma torrente irresistível, e o presente é uma rocha contra a qual aquela se quebra, sem no entanto poder arrastá-la" Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, Vol. 1.
Dentro da concepção de mundo de Schopenhauer, o indivíduo é fruto de uma ilusão.Tudo que existe, todos os indivíduos, todos os seres, toda a natureza, são, em essência, uma coisa só, são Vontade. A vontade é o em si do mundo, a verdadeira realidade. Mas a vontade é cega e irracional, é vontade de vida, livre e sem direção, que quando se objetiva num indivíduo, quando é representação, está sujeita ao principio de causalidade, ao espaço e ao tempo, sendo, portanto, determinada. A existência individual é marcada por dor e sofrimento, uma vez que a vontade é puro querer, é sempre uma ausência, é sempre insatisfação e é infinita. A possibilidade de escapar desse sofrimento está associada a possibilidade de negar a vontade. Nessa negação da vontade residiria a liberdade do ser humano, porém não como indivíduo, pois como tal é determinado, dado que é a manifestação objetiva da Vontade. Para Schopenhauer, tal liberdade é possível, momentaneamente, através da contemplação ou fruição da obra de arte ou, definitivamente, através da atitude do asceta ou do santo. Aqui encontramos indícios de que Mikkel/Michael possa ser Adam. Várias vezes vemos Adam diante de um quadro na sede do sic mundus como se estivesse em contemplação. Por outro lado, Michael é um artista e a cena do suicídio se dá justamente no seu ateliê, onde encontramos diferentes pinturas abstratas. Aqui teríamos uma conexão importante entre os dois personagens. Além disso, Mikkel, fã do mágico Houdini, demonstra grande interesse pelo controle do tempo, sendo que sua fala é emblemática na primeira temporada: a questão não é como, mas quando.

Com Schopenhauer vemos uma repetição na espécie, que busca preservar-se eternamente, repetindo o mesmo ciclo, geração após geração, sendo o indivíduo apenas um meio, um instrumento, da espécie, já em Nietzsche, é a vida do indivíduo que pode se repetir uma e um milhão de vezes. Para Nietzsche, a vontade de potência, longe de indicar um princípio metafísico da realidade, é a própria realidade, é o próprio corpo do indivíduo. Nesse sentido, a filosofia nietzschiana é uma filosofia da imanência opondo-se a toda e qualquer forma de transcendência, considerada a fonte do niilismo passivo tão combatido por Nietzsche. O niilismo passivo é a negação da vida em favor do além mundo;  é a fuga na direção do transcendente, da alma, do pós-morte, do paraíso, de um consolo metafísico. O niilismo passivo deve ser vencido, substituído pelo niilismo ativo, com o surgimento do super-homem, fruto da liberdade do indivíduo capaz de afirmar, de dizer Sim, com todas as suas forças, à vontade de potência, tornando-se aquilo que é e disposto a reviver sua vida quantas vezes for preciso.

Em Schopenhauer e em Nietzsche, encontramos um mundo carente de razão, de sentido ou de rumo, um mundo sem finalidade, onde tudo acontece sem que haja um porquê. Diante dessa falta de sentido, e da necessidade de uma vontade cega e irracional, para Schopenhauer só é possível encontrar no mundo dor e sofrimento. E só a negação da vontade pode por fim a esse sofrimento. Nietzsche, por sua vez, defende a possibilidade de superação dessa falta de sentido através de uma existência criadora e afirmativa, afirmativa daquilo que, de forma imperativa se faz presente no mundo, a vontade de potência.

“O mundo antigo voltou para a assombrar como um fantasma que sussurra em um sonho como construir o mundo novo, pedra por pedra. A partir daí, eu sabia que nada mudaria. Que tudo ficaria como antes. As rodas dentadas giram em um círculo. Um destino ligado ao próximo. O fio, vermelho como o sangue, junta todas nossas ações. Ninguém consegue quebrar os nós. Mas eles podem ser cortados. Ele cortou o nosso, com uma lâmina afiada. Porém algo ficou para trás que não pode ser cortado. Uma ligação invisível." (Fala de Martha no monólogo em que interpreta Ariadne)

"Acho que somos um par perfeito. Nunca duvide disso.” (Jonas para Martha)

No mito grego, Ariadne é a guardiã da porta do labirinto onde está preso seu meio-irmão, o mostro Minotauro. Teseu é o herói que irá, com a ajuda de Ariadne, por ele apaixonada, matar o Minotauro. O fio de Ariadne é que permite ao herói encontrar o caminho até o meio do labirinto e, depois de matar o mostro, retornar para fora do labirinto. Após a vitória, Teseu acaba por abandonar Ariadne. Isso ocorreria, em algumas versões do mito, porque o deus Dionísio teria coagido o herói, em sonho, a abandoná-la.

Quando vemos Martha interpretando Ariadne na primeira temporada, somos levados a imaginar Jonas como Teseu, o herói que se aventura no labirinto-caverna. No entanto, na leitura de Nietzsche do mito grego, o casal Dionísio-Ariadne forma o par-perfeito. Dionísio é, para Nietzsche, o deus da alegria trágica que nos convida a afirmação da vida, através da criação da arte, da poesia, música, da dança. Ariadne ao dizer "Sim" a Dionísio, diz "Sim" a afirmação da vida, à vontade de potência.

Assumirá a Martha do mundo dois essa atitude? Será o Jonas do mundo um o seu Dionísio? Mas quem será o Teseu? E o Minotauro a ser derrotado? Antes da terceira temporada, tudo que posso fazer são hipóteses. Minha hipótese é que Adam, que é Mikkel/Michael, é o Minotauro a ser derrotado (mais uma pista sobre a identidade Adam-Mikkel/Micahel pode estar nos nomes: Adão, o primeiro homem, foi feito à imagem e semelhança de Deus; o significado no nome Michael é "quem é como Deus?"). Martha e Jonas seriam, de fato, um par-perfeito. Esse fim "romântico" poderia ser interpretado como uma vitória de Nietzshe sobre Schopenhauer, da afirmação da vida, fruto de uma escolha da Martha do mundo dois. Mas também poderia ser lido como um fim schopenhauriano, no qual o "amor" não seria mais do que uma ilusão criada pela natureza-vontade a fim de garantir sua perpetuação, ou seja, sua eternidade na reprodução da espécie. De todo modo, acredito que na terceira temporada, veremos a confirmação dessa circularidade e dessa repetição, de um destino que, inexoravelmente, deve se cumprir. Mas como isso acontecerá e qual das perspectivas filosóficas irá prevalecer, só saberemos no dia 27 de junho.

Um comentário:

Roberta disse...

Uau!! Sensacional, melhor texto de longe sobre os aspectos filosóficos de Dark que eu já li!
O texto colocou várias questões que não tinham me ocorrido, nunca questionei o Adam - Jonas, mas depois dos elementos que você apontou estou convencida do Michael/Mikkel - Adam ahah
E aquela fala da Martha no monólogo ficou completamente amarrada e contextualizada.
Como leiga na filosofia, posso afirmar que o texto foi uma baita aula pra mim! Obrigada, verei a terceira temporada com outro olhar depois dessa leitura.

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