sábado, 11 de outubro de 2025

Dona Rosinha

Só de me lembrar, sinto um cheiro morno, de vela queimando. O dia todo. Cheiro de hortelã e outras ervas. E sinto o mesmo sufocamento que sentia quando era criança. Teto baixo, as paredes tomadas de quadros de santos, fotos, imagens pelas prateleiras. Era escuro, o quartinho. E aquele cheiro enjoativo. Cheiro que lembrava cemitério. A capelinha do cemitério na qual todo ano a vovó acendia velas no dia de finados. E tinha exatamente aquele cheiro morno e enjoativo, o quartinho da dona Rosinha. 

Imagem do Pixabay

Lembro-me e sinto náusea. Dona Rosinha. Não consigo me lembrar do rosto dela. Não me lembro de mais nada. Só dos quadros de santo, do teto baixo, do cheiro de vela. Ela disse que meu irmão estava com uma perna menor do que a outra. Por isso caia tanto. Coisa de mau olhado. Inveja. Rezou. Benzeu. Mandou botar uma fitinha vermelha na roupa dele. Não sei o que ela, dona Rosinha benzedeira, disse de mim. Não me lembro. 

Não gosto do cheiro de vela. Não gosto de lugar com teto baixo. Não gosto de quadros nas paredes. Mas gosto de chá de hortelã. Lembro-me de que havia uma escada para chegar na casinha dela. Mas não me lembro de mais nada. E já me esqueci de como rezar também. Não faço ideia do que a dona Rosinha rezava. Acho que fui levada lá mais de uma vez. Só não sei pra quê. Ela benzia criança. Só criança. Ainda bem que cresci. Ser criança é tão solitário.

A maioria das pessoas parece se esquecer que foi criança. E romantiza a infância. E faz tudo parecer tão bonito. E diz que é a melhor fase da vida. Esquece que criança não tem autonomia. Vai onde os adultos decidem. Inclusive em casas escuras, de teto baixo, com santos espalhados e cheiro de vela, para serem benzidas. E as crianças não entendem nada. Desconfio que os adultos também não. Crianças, como eu, nesses lugares, sentem medo. Eu sentia. E tem que se comportar.

Li outro dia um poema que dizia que a infância não era um tempo, mas um lugar. Às vezes penso que a minha infância foi um quartinho escuro, como o da dona Rosinha. Abafado, com cheiro enjoativo de vela, cheiro morno, preenchido por palavras confusas, rezas, ladainhas, medos.

Mas não era só isso. Tinha lá fora. Subindo as escadas, tinha a rua, o sol, o vento, o horizonte. Tinha um convite para deixar a infância. Eu fui. E nunca mais soube da dona Rosinha. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Achei lindo e muito triste. Pensava sua infância no sítio, subindo em árvore, mexendo na terra etc, que devia ter sido muito alegre e livre, mas por essa crônica, percebi que não. Bjsss,amiga e bom domingo

Francine Ribeiro disse...

Minha infância foi cheia de coisas bonitas e boas!
Mas toda infância, me parece, é bastante solitária.

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