Nos últimos anos, principalmente após a pandemia do Covid-19, minhas conversas com amigos e colegas que são professores têm sempre caído nos mesmos tópicos: a maior fragilidade emocional dos estudantes, como eles têm dificuldade de relacionamentos, o aumento de relatos de alunos que passam noite/madrugada em jogos on-line e estão zumbi em sala de aula; a percepção de que cada vez mais eles têm dificuldades de concentração e como o uso de celular em sala atrapalha o rendimento escolar. Junto com tudo isso, ainda tem o espantoso aumento de estudantes com diagnósticos de ansiedade, depressão, TDAH e outros transtornos mentais.
Haidt apresenta gráficos com números alarmantes de aumento de depressão (p.34), ansiedade (p.38), transtornos mentais ( p.37) de maneira geral, além de dados sobre entrada em PS em consequência de automutilação (p.42) e taxa de suicídio em adolescentes e jovens (p.43), capturados por diferentes estudos, a partir de 2010.
"O aumento acelerado do número de suicídios e de casos de automutilação, em conjunto com os estudos baseados em autorrelatos que apontam para um aumento nos índices de ansiedade e depressão, é uma tréplica importante àqueles que se mostram céticos quanto à existência de uma crise de saúde mental. Não digo que o aumento nos índices de ansiedade e depressão não esteja nem um pouco relacionado à maior disposição em relatar essas condições ( o que é uma coisa boa) ou ao fato de alguns adolescentes terem começado a patologizar uma ansiedade e um desconforto normais (o que não é uma coisa boa). Entretanto, o sofrimento autorrelatado e as mudanças de comportamento indicam que houve uma importante alteração na vida dos adolescentes no começo da década de 2010, talvez desde o fim da década anterior." (p.44)
E o que teria acontecido para alterar a vida dos adolescentes e desencadear essas mudanças? Haidt é categórico: "A chegada do smartphone, em 2007, mudou a vida de todos." Nesse ponto, começa a ficar claro um tópico que o autor irá destacar em diferentes partes da obra: muitas vezes se confundem redes sociais e a internet como um todo.
"Eu nunca diria, portanto, que precisamos de escolas sem internet, ou de alunos que dispensem a internet para estudar. São os aparelhos de uso pessoal que os alunos carregam consigo o dia inteiro que oferecem a pior relação custo/benefícios, pois estão repletos de aplicativos pensados para atrair a atenção dos jovens, com notificações constantes que os afastam da aula. Isso é o mais disruptivo em termos de aprendizagem e relacionamentos." (p.288)
Em linhas gerais, a argumentação de Haidt é baseada na constatação de que, nas últimas décadas, os Estados Unidos e outros países ocidentais fizeram duas escolhas contraditórias e erradas, em relação a segurança das crianças, quando, por um lado, i) decidiram que o mundo real é muito perigoso e que as crianças não deveriam explorá-lo sem a supervisão de um adulto e, por outro lado, ii) deixaram as crianças vagar livres na terra de ninguém no mundo virtual, repleto de ameaças.
Haidt chama segurismo o comportamento que passou a ser dominante entre pais dos EUA e de outras partes do mundo, a partir dos anos 1980-1990, e que ensinou as crianças a temer adultos desconhecidos, principalmente homens e acabou privando-as do brincar livre. O autor não desconsidera os riscos que existem no mundo real, mas defende que a reação dos pais acabou sendo paranoica e prejudicial às crianças que perderam em experiências que seriam fundamentais para o seu desenvolvimento e que envolvem, em alguma medida, riscos físicos e emocionais. Esse mesmo segurismo também teria tomado conta das escolas a ponto de algumas delas não deixarem as crianças brincarem de pega-pega sem a supervisão de um adulto, "porque.. e se houver uma disputa? E se alguém for excluído?" Segundo Haidt, "as diretorias parecem estar comprometidas em impedir o tipo de conflito inerente à interação humana, que ensinaria as crianças a lidar com as próprias questões e resolver diferenças, e prepará-las para a vida em uma sociedade democrática."
Mas se o segurismo é um inibidor de experiências, o smartphone também é. Na medida em que crianças e adolescentes começaram a passar muito ou a maior parte do tempo na internet, "os estímulos a seu cérebro em desenvolvimento se tornaram torrentes não diferenciadas, sem classificação ou restrições etárias." Isso porque, enquanto no mundo real os pais estavam muito preocupados com a segurança de seus filhos, o mesmo não acontecia no mundo virtual. Segundo Haidt, "o acesso irrestrito a tudo, em todo lugar, em qualquer idade, se provou desastroso, mesmo que tenha alguns poucos benefícios."
Da infância baseada no brincar à uma infância baseada no celular
É no contexto dessas duas tendências e do surgimento dos smartphones que Haidt considera ter acontecido a mudança da infância baseada no brincar para a infância baseada no celular e que teria permitido a ocorrência do que ele denomina a grande reconfiguração. Segundo ele, "a rápida mudança de celulares básicos para smartphones com internet banda larga e aplicativos de redes sociais criou a infância baseada no celular, que abriu muitos novos caminhos no cérebro da geração Z" ao mesmo tempo que causou quatro prejuízos fundamentais àqueles que passaram a pré-adolescência e a adolescência - considerado um período crítico e sensível de reconfiguração psicológica para as crianças humanas - com smartphones nas mãos e, consequentemente, sob influência das redes sociais, dos jogos on-lines e da pornografia.
Mas quais seriam os prejuízos fundamentais de que fala Haidt? De maneira clara e objetiva esses prejuízos seriam:
1- privação social
2- privação do sono
3- atenção fragmentada
4- vício
Um ponto muito importante defendido por Haidt é que o uso de rede sociais não estaria apenas correlacionado ao aumento de casos de ansiedade, depressão e outros problemas, mas seria causa desses quadros. Para isso, ele traz resultados de diferentes estudos que apontam para essa relação causal. Mas, como nos alerta o autor, meninas e meninos seriam afetados de maneira diferente pelo uso constante dos smartphones. Sendo as meninas as maiores vítimas das redes sociais, enquanto os meninos estariam mais vulneráveis aos jogos on-line e à pornografia. Nesse sentido, o que o autor defende é que, quando segmentamos os dados, temos evidências que sustentam a existência de uma relação causal entre uso de redes sociais e casos de ansiedade, depressão e outros problemas nas meninas. Haidt traz várias razões e, novamente, dados robustos, para sustentar suas afirmações a respeito dessa diferença entre meninas e meninos no uso dos smartphones.
Em linhas gerais, Haidt afirma que i) as meninas são mais sensíveis à comparação visual (o que acontece em plataformas como Instagram, TikTok, Snapchat - as preferidas pelas meninas); ii) o tipo de agressão presente entre as meninas costuma se expressar em tentativas de prejudicar os relacionamentos e a reputação das outras (e as redes sociais oferecem infinitas maneiras de prejudicar os relacionamentos e a reputação das outras); iii) meninas e mulheres compartilham emoções com maior facilidade (numa dinâmica hiperconectada e que as relações foram totalmente transferidas para as redes sociais, aquelas com ansiedade e depressão podem ter influenciado muitas outras a desenvolver ansiedade e depressão); iv) a internet facilita a abordagem e a perseguição de meninas e mulheres por parte dos homens e o mau comportamento sem consequências (ao criarem seus perfis, as adolescentes são seguidas e recebem mensagens de homens mais velhos e também podem ser pressionadas por meninos da escola a compartilhar nudes). Com relação aos meninos, a transferência de suas vidas para o mundo virtual aconteceu um pouco antes, devido a mudanças de ordem cultural e econômica. No entanto, assim como as meninas, os impactos negativos na saúde mental deles se fizeram sentir após a chegada dos smartphones. Embora Haidt seja claro em afirmar que, no caso dos meninos, é mais difícil estabelecer uma relação causal entre os usos do smartphone, seja para jogos on-line ou para acesso à pornografia, e a piora da saúde mental, há evidências de que a infância baseada no celular afastou ainda mais os meninos do mundo real, aumentando o sentimento de solidão entre eles. Se, por um lado, os jogos on-line podem trazer alguns benefícios para meninos e meninas, para um subgrupo de meninos (por volta de 7%) acarretariam uso problemático e mesmo dependência, causando piora da saúde mental e física, problemas familiares e dificuldades em outras áreas da vida.
Ainda há algo que possamos fazer?
O cenário apresentado por Haidt pode parecer bastante desalentador - e para muitos pais e professores tem sido desafiador e fonte de sofrimento. No entanto, segundo o pesquisador, nem tudo está perdido. Mas precisamos agir e logo. De maneira bastante simplificada, apresento a seguir quatro sugestões que o autor aponta como ações imediatas e que podem nos ajudar a combater os efeitos destrutivos que estamos presenciando hoje. Haidt diz que seriam quatro reformas fundamentais:
1-Smartphones só depois de 14 anos
2-Redes sociais só depois dos 16 anos
3-Proibir smartphones nas escolas
4-Oferecer muito mais brincar livre e independente na infância
No livro encontramos cada um desses pontos discutido em detalhes e sugestões específicas de ações que deveriam ser encaminhadas por pais, escolas, governos e empresas de tecnologia a fim de garantir mais segurança para as crianças e adolescentes. Destaco duas sugestões preciosas dadas pelo autor no final do livro: fale e junte-se. É muito importante que todos nós, adultos - pais, professores, profissionais de saúde -, falemos sobre os impactos que essa infância baseada no celular têm causado em nossas crianças e adolescentes. Falar e apoiar as quatro reformas fundamentais, a fim de chamar a atenção de mais e mais pessoas para esses problemas. Para os pais e professores, é importante a ação coletiva, precisamos agir juntos. Diretores, coordenadores pedagógicos, professores, precisamos do apoio dos pais para que possamos ter escolas sem smartphones, para que possamos trazer a atenção dos estudantes - hoje roubada pelas redes sociais e pelos jogos on-line - para os processos de aprendizagem. Não é tarefa simples, mas ainda é possível.