quinta-feira, 18 de julho de 2024

A geração ansiosa: uma questão urgente e necessária que precisamos enfrentar como sociedade se realmente nos importamos com nossas crianças e adolescentes

Na virada do milênio, empresas de tecnologia instaladas na Costa Oeste dos Estados Unidos desenvolveram um conjunto de produtos revolucionários que tiravam partido do rápido crescimento da internet. Diante dessas tecnologias, o clima geral era de otimismo; esses produtos tornavam a vida mais fácil, mais divertida e mais produtiva. Alguns favoreciam a aproximação das pessoas e a comunicação entre elas, sugerindo que seriam uma benção para o número cada vez maior de democracias emergentes no mundo. Parecia o despertar de uma nova era, logo depois da queda da Cortina de Ferro. Os fundadores dessas empresas eram aclamados como heróis, gênios, benfeitores mundiais, que, como Prometeu, traziam dádivas dos deuses para a humanidade.
No entanto, a indústria da tecnologia estava transformando não apenas a vida dos adultos, mas também a dos jovens.
(...) As empresas que pretendiam aumentar ao máximo o "engajamento" dos jovens se valendo de estratégias psicológicas se revelaram as maiores transgressoras. Fisgavam as crianças em estágio vulneráveis do desenvolvimento, quando seu cérebro se reconfigurava rapidamente em resposta aos estímulos. As redes sociais, por exemplo, causavam maior dano em meninas, e empresas de jogos on-line e sites de pornografia afetavam com mais contundência os meninos. Ao desenvolver um fluxo sem filtro e em tempo real de conteúdo viciante que entrava pelos olhos e ouvidos das crianças, e ao substituir o aspecto físico na socialização, essas empresas reconfiguraram a infância e transformaram o desenvolvimento humano em uma escala quase inimaginável. O período mais intenso de mudança foi entre 2010 e 2015 (...)
HAIDT, Jonathan, A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais, 2024.

Nos últimos anos, principalmente após a pandemia do Covid-19, minhas conversas com amigos e colegas que são professores têm sempre caído nos mesmos tópicos: a maior fragilidade emocional dos estudantes, como eles têm dificuldade de relacionamentos, o aumento de relatos de alunos que passam noite/madrugada em jogos on-line e estão zumbi em sala de aula; a percepção de que cada vez mais eles têm dificuldades de concentração e como o uso de celular em sala atrapalha o rendimento escolar. Junto com tudo isso, ainda tem o espantoso aumento de estudantes com diagnósticos de ansiedade, depressão, TDAH e outros transtornos mentais. 


Haidt apresenta gráficos com números alarmantes de aumento de depressão (p.34), ansiedade (p.38), transtornos mentais ( p.37) de maneira geral, além de dados sobre entrada em PS em consequência de automutilação (p.42) e taxa de suicídio em adolescentes e jovens (p.43), capturados por diferentes estudos, a partir de 2010.         


    "O aumento acelerado do número de suicídios e de casos de automutilação, em conjunto com os estudos baseados em autorrelatos que apontam para um aumento nos índices de ansiedade e depressão, é uma tréplica importante àqueles que se mostram céticos quanto à existência de uma crise de saúde mental. Não digo que o aumento nos índices de ansiedade e depressão não esteja nem um pouco relacionado à maior disposição em relatar essas condições ( o que é uma coisa boa) ou ao fato de alguns adolescentes terem começado a patologizar uma ansiedade e um desconforto normais (o que não é uma coisa boa). Entretanto, o sofrimento autorrelatado e as mudanças de comportamento indicam que houve uma importante alteração na vida dos adolescentes no começo da década de 2010, talvez desde o fim da década anterior." (p.44)

E o que teria acontecido para alterar a vida dos adolescentes e desencadear essas mudanças?  Haidt é categórico: "A chegada do smartphone, em 2007, mudou a vida de todos." Nesse ponto, começa a ficar claro um tópico que o autor irá destacar em diferentes partes da obra: muitas vezes se confundem redes sociais e a internet como um todo. 

"Eu nunca diria, portanto, que precisamos de escolas sem internet, ou de alunos que dispensem a internet para estudar. São os aparelhos de uso pessoal que os alunos carregam consigo o dia inteiro que oferecem a pior relação custo/benefícios, pois estão repletos de aplicativos pensados para atrair a atenção dos jovens, com notificações constantes que os afastam da aula. Isso é o mais disruptivo em termos de aprendizagem e relacionamentos." (p.288)

Em linhas gerais, a argumentação de Haidt é baseada na constatação de que, nas últimas décadas, os Estados Unidos e outros países ocidentais fizeram duas escolhas contraditórias e erradas, em relação a segurança das crianças, quando, por um lado, i) decidiram que o mundo real é muito perigoso e que as crianças não deveriam explorá-lo sem a supervisão de um adulto e, por outro lado, ii) deixaram as crianças vagar livres na terra de ninguém no mundo virtual, repleto de ameaças. 

Haidt chama segurismo o comportamento que passou a ser dominante entre pais dos EUA e de outras partes do mundo, a partir dos anos 1980-1990, e que ensinou as crianças a temer adultos desconhecidos, principalmente homens e acabou privando-as do brincar livre. O autor não desconsidera os riscos que existem no mundo real, mas defende que a reação dos pais acabou sendo paranoica e prejudicial às crianças que perderam em experiências que seriam fundamentais para o seu desenvolvimento e que envolvem, em alguma medida, riscos físicos e emocionais. Esse mesmo segurismo também teria tomado conta das escolas a ponto de algumas delas não deixarem as crianças brincarem de pega-pega sem a supervisão de um adulto, "porque.. e se houver uma disputa? E se alguém for excluído?" Segundo Haidt, "as diretorias parecem estar comprometidas em impedir o tipo de conflito inerente à interação humana, que ensinaria as crianças a lidar com as próprias questões e resolver diferenças, e prepará-las para a vida em uma sociedade democrática."     

Mas se o segurismo é um inibidor de experiências, o smartphone também é. Na medida em que crianças e adolescentes começaram a passar muito ou a maior parte do tempo na internet, "os estímulos a seu cérebro em desenvolvimento se tornaram torrentes não diferenciadas, sem classificação ou restrições etárias." Isso porque, enquanto no mundo real os pais estavam muito preocupados com a segurança de seus filhos, o mesmo não acontecia no mundo virtual. Segundo Haidt, "o acesso irrestrito a tudo, em todo lugar, em qualquer idade, se provou desastroso, mesmo que tenha alguns poucos benefícios."

Da infância baseada no brincar à uma infância baseada no celular

É no contexto dessas duas tendências e do surgimento dos smartphones que Haidt considera ter acontecido a mudança da infância baseada no brincar para a infância baseada no celular e que teria permitido a ocorrência do que ele denomina a grande reconfiguração. Segundo ele, "a rápida mudança de celulares básicos para smartphones com internet banda larga e aplicativos de redes sociais criou a infância baseada no celular, que abriu muitos novos caminhos no cérebro da geração Z" ao mesmo tempo que causou quatro prejuízos fundamentais àqueles que passaram a pré-adolescência e a adolescência - considerado um período crítico e sensível de reconfiguração psicológica para as crianças humanas - com smartphones nas mãos e, consequentemente, sob influência das redes sociais, dos jogos on-lines e da pornografia. 

Mas quais seriam os prejuízos fundamentais de que fala Haidt? De maneira clara e objetiva esses prejuízos seriam: 

1- privação social

2- privação do sono

3- atenção fragmentada

4- vício


Um ponto muito importante defendido por Haidt é que o uso de rede sociais não estaria apenas correlacionado ao aumento de casos de ansiedade, depressão e outros problemas, mas seria causa desses quadros. Para isso, ele traz resultados de diferentes estudos que apontam para essa relação causal. Mas, como nos alerta o autor, meninas e meninos seriam afetados de maneira diferente pelo uso constante dos smartphones. Sendo as meninas as maiores vítimas das redes sociais, enquanto os meninos estariam mais vulneráveis aos jogos on-line e à pornografia. Nesse sentido, o que o autor defende é que, quando segmentamos os dados, temos evidências que sustentam a existência de uma relação causal entre uso de redes sociais e casos de ansiedade, depressão e outros problemas nas meninas. Haidt traz várias razões e, novamente, dados robustos, para sustentar suas afirmações a respeito dessa diferença entre meninas e meninos no uso dos smartphones.


Em linhas gerais, Haidt afirma que i) as meninas são mais sensíveis à comparação visual (o que acontece em plataformas como Instagram, TikTok, Snapchat - as preferidas pelas meninas); ii) o tipo de agressão presente entre as meninas costuma se expressar em tentativas de prejudicar os relacionamentos e a reputação das outras (e as redes sociais oferecem infinitas maneiras de prejudicar os relacionamentos e a reputação das outras); iii) meninas e mulheres compartilham emoções com maior facilidade (numa dinâmica hiperconectada e que as relações foram totalmente transferidas para as redes sociais, aquelas com ansiedade e depressão podem ter influenciado muitas outras a desenvolver ansiedade e depressão); iv) a internet facilita a abordagem e a perseguição de meninas e mulheres por parte dos homens e o mau comportamento sem consequências (ao criarem seus perfis, as adolescentes são seguidas e recebem mensagens de homens mais velhos e também podem ser pressionadas por meninos da escola a compartilhar nudes). Com relação aos meninos, a transferência de suas vidas para o mundo virtual aconteceu um pouco antes, devido a mudanças de ordem cultural e econômica. No entanto, assim como as meninas, os impactos negativos na saúde mental deles se fizeram sentir após a chegada dos smartphones. Embora Haidt seja claro em afirmar que, no caso dos meninos, é mais difícil estabelecer uma relação causal entre os usos do smartphone, seja para jogos on-line ou para acesso à pornografia, e a piora da saúde mental, há evidências de que a infância baseada no celular afastou ainda mais os meninos do mundo real, aumentando o sentimento de solidão entre eles. Se, por um lado, os jogos on-line podem trazer alguns benefícios para meninos e meninas, para um subgrupo de meninos (por volta de 7%) acarretariam uso problemático e mesmo dependência, causando piora da saúde mental e física, problemas familiares e dificuldades em outras áreas da vida. 


Ainda há algo que possamos fazer?

O cenário apresentado por Haidt pode parecer bastante desalentador - e para muitos pais e professores tem sido desafiador e fonte de sofrimento. No entanto, segundo o pesquisador, nem tudo está perdido. Mas precisamos agir e logo. De maneira bastante simplificada, apresento a seguir quatro sugestões que o autor aponta como ações imediatas e que podem nos ajudar a combater os efeitos destrutivos que estamos presenciando hoje. Haidt diz que seriam quatro reformas fundamentais: 


1-Smartphones só depois de 14 anos

2-Redes sociais só depois dos 16 anos

3-Proibir smartphones nas escolas

4-Oferecer muito mais brincar livre e independente na infância


No livro encontramos cada um desses pontos discutido em detalhes e sugestões específicas de ações que deveriam ser encaminhadas por pais, escolas, governos e empresas de tecnologia a fim de garantir mais segurança para as crianças e adolescentes. Destaco duas sugestões preciosas dadas pelo autor no final do livro: fale e junte-se. É muito importante que todos nós, adultos - pais, professores, profissionais de saúde -, falemos sobre os impactos que essa infância baseada no celular têm causado em nossas crianças e adolescentes. Falar e apoiar as quatro reformas fundamentais, a fim de chamar a atenção de mais e mais pessoas para esses problemas. Para os pais e professores, é importante a ação coletiva, precisamos agir juntos. Diretores, coordenadores pedagógicos, professores, precisamos do apoio dos pais para que possamos ter escolas sem smartphones, para que possamos trazer a atenção dos estudantes - hoje roubada pelas redes sociais e pelos jogos on-line - para os processos de aprendizagem. Não é tarefa simples, mas ainda é possível. 





Para saber mais:


Revista Gama: "Há uma crise mental e emocional na infância sem precedentes", segundo o pediatra Daniel Becker

Movimento Desconecta (Ações coletivas para o adiamento, redução e controle do acesso a smartphones e redes sociais por crianças e adolescentes.) 

Tendências e Debates (Folha Online) - Banir celular nas escolas já trouxe bons resultados - Daniel Becker e Renan Ferrerinha (secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro)

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