sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A cena

Sentada na beira da janela, balançava as pernas e olhava pra longe. Talvez não tão longe assim. Mas parecia não enxergar nada. O gato passava de um lado pro outro. Se alisou na perna da cadeira, abriu a boca em sinal de fome, miou, desistiu. Ela continuava lá, balançando as pernas e olhando sem ver nada.
Não era bonita. Mas também não a chamariam de feia. Ainda que os cabelos estivessem naquela desarrumação rotineira, e estivesse enfiada no velho moleton azul marinho, o olhar, embora um pouco perdido naquele momento, lhe confiava uma beleza serena. O sorriso também era algo que lhe rendia alguns elogios. Não aparentava os anos que tinha, pelo menos, já havia confundido uma dúzia de pessoas. No entanto, talvez fosse meio a meio. As vezes o jeito serelepe, falante e sorridente lhe conferia aquele ar quase infantil. Tinha dias que acordava assim, saltitante, jogando o jogo do contente até com sua sua sombra... Está certo que esses dias de Pollyana há muito que haviam se tornado pouco comum. Alguém que a olhasse agora, talvez lhe desse mais do que seus vinte e poucos anos. Trazia um peso que se traduzia nas rugas na testa e naquele olhar vazio carregado de interrogações.
O gato pulou até seu colo. Ficou dançando de um lado pro outro. Parou e miou. Não teve outra alternativa, botou as unhas de fora..
- Ai! O que foi? que houve?.. está sangrando.. você é doido?
Deu um pulo e botou os pés no chão. O gato saltou também e pôs-se a roçar suas pernas.
- Ah, entendi, você está com fome?? e precisava me atacar?..
Caminhou até a vasilha do gato, pegou o pote de ração, encheu até boca.
O bichano, esfomeado, atacou a comida instantaneamente. Ela lavou o braço. Não foi um machucado grande. Um arranhãozinho leve.
Um chiado que vinha da cozinha lhe chamou atenção. Enquanto caminhava para a cozinha deu um grito e correu.
- Nossa, a água pro café...merda
A vasilha de alumínio dançava no fogão. A água estava quase totalmente evaporada. Tirou a vasilha do fogo, encheu novamente, voltou ao fogo. Sentou-se numa banqueta ao lado do fogão. Fixou os olhos nas chamas azuis que tocavam de leve o fundo da vasilha. Aos poucos as chamas pareciam consumir seus olhos. Ela estava imóvel. A face contorcia, a testa enrugava e desenrugava. Mordeu os lábios levemente e uma lágrima tímida rolou do olho esquerdo. Uma lágrima quente, desceu solitária e lentamente pelo rosto moreno. Outra lágrima brotou, e outra, e agora era do direito e do esquerdo, e todo rosto foi ficando quente e úmido. A água começou a ferver novamente. Ela levantou-se, tomou da vasilha, despejou a água no coador. O cheiro de café aos poucos foi tomando conta da cozinha. O rosto continuava molhado. Ela não secou as lágrimas. Ela fechou os olhos, respirou fundo, foi soltando o ar devagarinho, e abrindo um sorriso do tamanho de todo seu rosto. Se alguém pudesse vê-la agora. Tinha o rosto iluminado. Até seus movimentos de repente ficaram leves. Tudo parecia uma dança. Uma cena de musical. Por certo que ela ouvia uma música enquanto se movia pela cozinha. Pegou uma xícara, botou uma pontinha de açúcar, despejou o café recém passado. Mexeu, retirou a colher, levantou a xícara e a levou à boca. Tudo isso sem perder o ritmo. Tudo isso, como se fosse parte de ópera. Tudo tão bonito. Ah, se alguém pudesse ver tudo isso. Mas ela estava sozinha. A casa estava vazia. Só o gato. Mas ele continua comendo. Ninguém a viu. Ninguém!

Um comentário:

Vanna disse...

Excluindo o gato, isso já aconteceu comigo. Com certeza estava na TPM. rsrs Mas é bom estarmos a sós conosco d vez em quando.
Bjs

Sobre o que se fala

cotidiano Poesia Dicas opinião opiniões política utilidade pública atualidade atualidades Rapidinhas Campinas educação Conto crônica Minas Gerais São Paulo cinema observações Brasil coisas da vida escola Misto música Delfim Moreira divulgação Barão Geraldo Bolsonaro Literatura democracia eleições Filosofia da vida leitura coisas que fazem bem passeios Comilança clã Bolsonaro redes sociais revoltas amigos coronavírus debate público ensino paixão preconceito; atualidades sobre fake news séries Dark Futebol amor coisas de mineiro coisas do mundo internético criança do eu profundo façamos poesia; final de ano; início de ano; cotidiano; pandemia 8 de março Ciência de irmã pra irmã distopia história infância lembranças mulheres política; tecnologia virada cultural Violência; Educação; utilidade pública autoritarismo comunicação consumo consciente desabafo economia fascismo férias impressa manifestação mau humor mentira mágica pós-verdade quarentena racismo estrutural reforma da previdência ser professor (a) sobre a vida música Poesia 15 de outubro 20 de novembro 2021 Anima Mundi EaD Eliane Brum Fora Bolsonaro Itajubá Moro Oscar Passarinho; Poesia; Vida Posto Ipiranga aborto adolescência amizade amor felino animação; assédio sexual autoverdade balbúrdia baleia azul. bolsonarismo cabeça de planilha consciência negra corrupção coti covid-19 crime curta; crônica; curtas; concurso; festival curtas curtas; crônica; da vida; defesa democracia liberal descobrindo o racismo desinformação direitos discurso divulgação; atualidades divulgação; blogs; poesia documentário família filosofia de jardim fim das sacolinhas plásticas frio férias; viagens; da vida; gata guerra de narrativas hipocrisia humor ideologia jornalismo lei de cotas livros minorias morte mídia música Poesia novidades para rir próxima vida racismo institucional rap saudade sentimentos tirinhas universidade utopia verdade verdade factual viagem violência

Amigos do Mineireces