segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Por que ver Bacurau

Bacurau': filme traz reflexão sobre as diversas camadas do Brasil ...


Bacurau é visceral. Saí do cinema sem condições de falar. E ainda estou em choque. O filme não é bom. É sensacional. Mas ao mesmo tempo é assustador, é a coroação do fracasso civilizacional que enfrentamos, pois ele joga na nossa cara que é a violência que dá o tom do nosso cotidiano.
Bacurau é aqui e agora. Quando a realidade se torna distopia, a violência ficcional vira soco no estômago, porque se sabe que ela está fora da tela, e que o sangue que escorre e o corpo que cai abatido tem nome, sobrenome e endereço.
O filme tem uma fotografia muito bonita e uma trilha sonora perfeita. É uma combinação de elementos que vão do realismo à ficção científica, passando pelo suspense e pela ação, num ritmo envolvente e com um enredo muito convincente.
A película choca, mas é mais chocante a indiferença da população brasileira diante do enredo do cotidiano. Mais chocante que a frieza quase sádica dos 'caçadores' de Bacurau é a perversidade e a indiferença de políticos diante do assassinato de crianças como Ágatha Félix. Muito mais violento do que as cenas de Bacurau, é o cotidiano de milhares de brasileiros que vivem sob a mira de armas, numa guerra perdida e obscena que insiste em reproduzir desculpas esfarrapadas para as mortes que causa: era bandido, era suspeito, parecia armado, era um adolescente suspeito, estava no lugar errado, poderia estar armado, foi um engano.
Se o filme dialoga com o hoje do Brasil, é na sua capacidade de propor um outro modo de se viver esse hoje que encontramos sua potência. Um povo numa vila simples onde a igreja local virou um depósito, só pode ser uma utopia. Isso não é retrato do real vivido hoje, inchado e saturado de igrejas, no plural, que atomizam a sociedade e vendem ilusões de salvação no além mundo com base no discurso ilusório e cruel da meritocracia e no sucesso pessoal medido através das doações feitas aos seus pastores sedentos por ostentação. Um povo no qual a figura feminina, a matriarca dona Carmelita, é quem agrega e dá o sentido de comunidade, só pode ser uma utopia, num Brasil em que líderes religiosos insistem em dizer que mulher deve ser governada pelo marido, o cabeça do casamento, um macho. Um lugar marcado pela pobreza e pelo abandono da má política - simbolizada na figura patética do prefeito local - onde a ciência é representada por duas mulheres, Teresa e Domingas, infelizmente ainda é utopia. E basta ler os jornais e acompanhar a decisão do CFM para entender que não se trata de realidade.

Nossa realidade é distópica, tão agudamente distópica que a ficção se torna refúgio, seja no cinema ou na literatura, no teatro ou na música. É pela arte que iremos resistir. Mas não é utopia afirmar que a resistência vem das escolas e dos museus, da história e da memória coletiva. É um convite a caminharmos lado a lado, defendendo a escola pública como espaço do conhecimento, da liberdade, da pluralidade, do questionamento genuíno e fecundo de toda narrativa que se apresente fechada e se imponha de forma autoritária.

Bacurau é arte e é também um protesto. Nem toda obra de arte tem que ser engajada politicamente. Mas Bacurau é, tem lado, acusa sem medo as perversidades e abusos do cotidiano. Não é só por isso que vale a pena assistir. Vale assistir porque é Arte! E além disso, a arte também é indústria, como faz questão de mostrar a equipe do filme no final: a produção de Bacurau gerou 800 empregos. Em tempos sombrios, de obscurantismo e negação da ciência, nos quais "os mitos" são criados para falsificar a realidade e não a fim de compreendê-la, é preciso resistir. É preciso nos unir, compartilhar, dividir, socializar sonhos, dúvidas e medos para nos fortalecer. Façamos Clubes de Leitura ou Clubes de Cinema. Adotemos uma biblioteca pública. Sejamos solidários com causas e organizações com as quais compartilhamos valores. Que a resistência que iremos fazer não precise chegar às armas. Sejamos criativos, façamos Arte!

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Cada um que cuide do seu cu! - e isso não deveria ser assunto de governador, prefeito ou presidente da república

Eu tenho dificuldades de começar esse texto. Tentei diversas vezes, mas apaguei. É um misto de desânimo e revolta que toma conta de mim, e que tende a me paralisar. Sinto-me angustiada. Sensação de que as vias do diálogo estão sendo todas apagadas. Há uma gritaria histérica acompanhada de um esforço tremendo para interditar qualquer fala que não concorde com a gritaria. Vou me arriscar a entrar numa seara perigosa, já antevejo os ataques, xingamentos, ou, no mínimo, o olhar de lado como quem diz: "coitadinha, é tão burra" ou talvez acusações de que sou machista, fascista, homofóbica, ultradireita e até, quem sabe, bolsonarista. Respiro fundo. Será que vale a pena?

Na semana passada, o ex-candidato à presidência pelo PDT, Ciro Gomes, deu uma longa entrevista à BBC. A entrevista está disponível no Youtube e também na página do jornal. Dentre as muitas coisas sobre as quais falou - críticas ao PT, ao governo Bolsonaro, reforma da previdência e tributária, Tábata Amaral, defesa da democracia - a que mais rendeu comentários foi uma fala na qual ele cita a filósofa e ex-candidata ao governo do Rio de Janeiro, Márcia Tiburi. O contexto amplo em que a menção à Márcia Tiburi aparece era a relação entre a pauta moralista de Crivella e Bolsonaro (Dória pode ser incluído também) e as pautas identitárias defendidas pela Esquerda ou, mais precisamente, segundo Ciro, pelo PT. Não é a primeira vez que Ciro traz essa questão como algo importante a ser pensado. E também não é a primeira vez que suas palavras são distorcidas ou 'interpretadas' ao sabor das paixões dos intérpretes. Durante a campanha eleitoral ele foi duramente atacado por uma reflexão sobre os resultados do Movimento #Elenão (tanto a fala de Ciro como as respostas a ela podem ser encontrados com algumas googladas). Mas vamos aos fatos ou às falas de Ciro à BBC: 

"(...) A segunda questão é que o Brasil não cabe na esquerda. Sabe? (...) O PT não entendeu nada do novo Brasil neopentecostal, evangélico e como não tem proposta de esquerda, nenhuma, se refugia no identitarismo. Então tem uma imensa afinidade com as teses identitárias, como se a soma de interesses identitários desse um interesse nacional. Isso não existe.
O que acontece é o seguinte: por que o Crivella em pleno século 21 não só é o prefeito do Rio de Janeiro, já deveríamos parar um pouco para pensar - aliás, lá trás com apoio do PT, aliás foi ministro da Dilma -, mas se lança numa cruzada contra um livro? Em plena Bienal do Livro. Você acha que ele é burro? É que ele está desmoralizado como prefeito, nas tarefas de prefeito, ele está desmoralizado. Então o que está fazendo? Está indo para a questão identitária, para mudar a cabeça do povo, do julgamento de uma administração ruinosa para o paladino da defesa, da moral e dos bons costumes.
BBC News Brasil - Algo semelhante ao que o governo Bolsonaro faria?
Gomes - Rigorosamente a mesma matriz. Eles estão todos imitando. Bolsonaro foi orientado pelo [Steve] Bannon, que veio dos Estados Unidos a serviço do Trump, para cooptar o Brasil através da compra do nosso presidente, da Presidência da República.
BBC News Brasil - O senhor acha que o PT faz algo semelhante?
Gomes - Rigorosamente a mesma coisa. Quantos votos teve a candidata a governadora do Rio de Janeiro nas eleições passadas? Você tem ideia? Rio de Janeiro é a maior concentração de artista por metro quadrado, intelectuais, engenheiros, do Brasil. É a sede da Globo, da ABI, enfim, de tudo o que é progressista.
Sabe quantos porcento PT tirou lá? Dois por cento. Porque a Marcia Tiburi, que é uma figura respeitável, queridíssima e tal, faz apologia do cu na televisão. Eu tenho até vergonha de citar e isso não quer dizer que não haja uma grande interessante questão nesta tese da Marcia Tiburi, mas foi o que dominou o debate no Rio de Janeiro. Você quer uma governadora que faz apologia?"

Não vou entrar no mérito do argumento de Ciro sobre o papel das pautas identitárias no cenário político eleitoral, mas entendo que quando ele traz essa questão para discussão, não está negando as justas e necessárias reivindicações de movimentos LGBTQ+ e afins, mas chamando a atenção para o perfil da sociedade brasileira, que é conservador e cada vez mais evangélico, e como o destaque para essa pauta acaba por criar um espaço privilegiado para que seres nefastos como Bolsonaro e Crivella nadem de braçada. Essa é minha leitura das falas de Ciro. Tenho certeza de que muita gente irá discordar de mim, e tudo bem. Podemos discuti-la em outra oportunidade.

Então, vou focar no que virou a panaceia do fim de semana: uma suposta agressão cometida por Ciro Gomes contra Márcia Tiburi. Ou, como li num site, um ataque vil e um discurso cafajeste; outro portal qualificou Márcia Tiburi como vítima de um ataque covarde de Ciro Gomes (algumas googladas podem levar o leitor até as fontes desses comentários). Na citação que fiz acima do trecho da reportagem no qual ela é citada, fiz questão de colar em destaque a fala de Ciro sobre a ex-candidata, mas vou retomá-la por partes.

i)  Porque a Marcia Tiburi, que é uma figura respeitável, queridíssima e tal, faz apologia do cu na televisão. - Fico me perguntando onde estaria a agressão, o ataque vil ou covarde feito por Ciro. Teriam sido os seus 'respeitável' e 'queridíssima' entendidos como uma agressão velada? Estariam sugerindo que ao usar esses adjetivos, Ciro tentaria esconder sua intenção de desqualificar Márcia? Eu realmente gostaria de entender. Aparentemente, o erro cometido por Ciro nessa fala foi o fato de que a apologia de Márcia ao 'cu' não foi feita na televisão, mas sim num evento que, uma vez gravado, passou a circular num vídeo pela internet.
ii) Eu tenho até vergonha de citar - Aqui, poderíamos acusar o Ciro de um moralismo mal disfarçado, ao dizer-se envergonhado de citar a fala de Márcia. Uma fala descabida e com fins eleitoreiros de agradar a parcela conservadora da sociedade. Se essa for a leitura que fazem, eu estaria de acordo. Mas, ainda assim, não vejo como isso poderia ser traduzido como 'ataque vil' ou 'agressão'.
iii)  e isso não quer dizer que não haja uma grande interessante questão nesta tese da Marcia Tiburi - No entanto, nessa outra parte, ele reconhece que haja uma interessante questão na tese dela. Portanto, em nenhum momento Ciro está atacando Márcia ou suas ideias.
iv) mas foi o que dominou o debate no Rio de Janeiro. Você quer uma governadora que faz apologia?" - Finalmente, o ponto que ele gostaria de ilustrar é que, no debate político, foi essa 'polêmica' que prevaleceu. Ciro apresenta fatos. Faz uma análise do que aconteceu no Rio de Janeiro. Coisa que qualquer um de nós poderia fazer e chegar no mesmo resultado: é fato notório que o Rio de Janeiro concentra uma população neopentecostal cada vez mais expressiva, principalmente nas áreas de periferia; diante desse fato, Ciro chama atenção para o potencial impacto que uma fala como a de Márcia Tiburi, na condição de candidata a um cargo executivo, teria num cenário eleitoral. Na verdade, o impacto que teve alcançando apenas 2% dos votos, segundo ele (mas na verdade foram quase 6%, portanto, aqui caberia um puxão de orelha em Ciro).

Honestamente, eu me pergunto, como essa análise, esse juízo de fato emitido por Ciro Gomes pode ser lido como uma agressão ou um ataque vil e covarde? Como essa análise feita por ele sobre a queda de braço que está em curso no país entre pautas identitárias e moralismo de goela (para usar uma expressão de Ciro) pode ser interpretada como demonstração de machismo ou mesmo de insulto em relação à Márcia ou a um grupo específico? Chegaram ao absurdo de dizer que Ciro age como a extrema-direita.

Insulto e ataque para mim foram as inúmeras falas em redes sociais e portais chamando Ciro Gomes de "coronel mimado", de "esquerdo-macho", "extrema-direita". Enfim, não é minha intenção fazer nenhuma defesa apaixonada de Ciro. Infelizmente traços de machismo, racismo e homofobia sobram em quase todos nós, em maior ou menor medida, e entendo que vencê-los é uma batalha diária que exige muito esforço para desconstruir essas ideias que estão encalacradas na sociedade brasileira. Ciro Gomes não é perfeito, nem santo, ele é só mais um ser humano, com suas muitas falhas e defeitos. No entanto, não dá para aceitarmos essa 'guerra amalucada' de desinformação e má-fé. Acho muito válido que se questione a tese de Ciro a respeito do papel das pautas identitárias dentro dos partidos políticos, principalmente os partidos que se dizem de esquerda. Que aqueles que discordam dele, apresentem seus argumentos. Mas criar toda uma comoção em cima de uma suposta agressão ou ataque que não ocorreram, é mais um desserviço para a população que já tem sido bombardeada cotidianamente por tanta desinformação e ódio.

Esse episódio me fez pensar muito sobre a atuação de intelectuais, acadêmicos, filósofos na política partidária. Enquanto filósofa, acadêmica, pesquisadora, Márcia Tiburi tem o direito de formular e expressar as teses que quiser sobre o assunto que quiser, e isso inclui o 'cu'. Mas fico me perguntando como compatibilizar uma fala como a da Márcia Tiburi sobre o 'cu' com a condição de candidata para um cargo no executivo, por exemplo, o cargo de governadora de um estado. O mesmo questionamento vale para a atuação de religiosos na política partidária, bispos, padres e pastores. Dentro de suas igrejas, em seus púlpitos, eles dizem e fazem o que está de acordo com suas crenças e valores. Mas quando disputam um cargo público não devem usar o palanque como se falassem para seus fiéis, no entanto, infelizmente, é isso que tem acontecido. Mas, se consideramos inaceitável que pessoas hoje nos cargos do executivo queiram fiscalizar o 'cu' alheio, também não seria inaceitável alguém no cargo do executivo fazendo apologia a liberação do 'cu' alheio? O compromisso do político, para mim, seria o de garantir que as pessoas possam cada uma cuidar do seu 'cu' sem que o Estado interfira nisso, seja para fiscalizar ou censurar, seja para fazer apologia a liberação do mesmo. 

Enfim, sei que o tema é polêmico, e reconhecer essa polêmica não é interditar o seu debate. No entanto, entendo que há lugares em que esse tema seja cabível e outros que não. Na Universidade, num evento literário, o tema cabe perfeitamente. Num debate eleitoral, para um cargo do executivo, não me parece ser o caso. E posso estar muito enganada, mas entendo que essa é a ideia de Ciro Gomes sobre o assunto. E não estou acusando Márcia Tiburi de ter levado a polêmica para o debate eleitoral, assim como não entendo que Ciro Gomes tenha feito tal acusação. Ele apenas usava o exemplo dela para ilustrar uma tese, a saber, a tese de que as pautas identitárias teriam se tornado a grande bandeira dos partidos de esquerda, e do PT em especial, o que levaria, por outro lado, grupos conservadores a explorarem a pauta moralista, como fizeram durante a última campanha eleitoral os opositores da Márcia Tiburi, e como vem fazendo diuturnamente Bolsonaro, Crivella, Dória e afins.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Future-se ou Pretere-se?

No Brasil de 2019 muitas coisas "novas" têm nascido velhas. De partidos a candidatos, passando por supostas práticas políticas e projetos inovadores, como a última novidade do governo federal. Depois de um semestre perdido para a Educação, com muita trapalhada ministerial, muito discurso ideológico que pretende rotular de 'ideológico' os outros - todos os que não estão do lado do governo-, programas parados, contingenciamentos e cortes, da educação básica a superior, eis que o MEC apresenta seu primeiro projeto: Future-se. Como me alertou uma amiga, o nome pode ser mais uma prova do arranjo de última hora que se apresenta como a salvação da lavoura, ou melhor, da educação, porque a lavoura está mesmo é envenenada: estaria o projeto do MEC surfando nas ondas do noronhe-se? Não seria de se estranhar, afinal, trata-se de um projeto de um governo eleito pelos memes e pelas fake news via Twitter e WhatsApp.

A abertura da apresentação do Future-se é digna de filme de ficção científica com trilha sonora de filme de herói. Inovação é a palavra de ordem. Quando o ministro Abraham Weintraub pega o microfone ouvimos: liberdade, conhecimento, pesquisa, trabalho, futuro, riqueza, future-se! Assim, palavras soltas, bem a cara da apresentação que se segue e do projeto em si: cheio de palavras e frases de efeito, mas muito vago, com muitas pontas soltas, deixando as questões mais importantes sobre o funcionamento do projeto para o futuro. Na sequência o ministro passa a agradecer aqueles que trabalharam no projeto, inclusive os gurus (sem citar nome específico, mas mandando recado para o seu mestre e guru, com quem aprendeu direitinho como dialogar e argumentar democraticamente...). Quem de fato apresentou o Future-se foi o secretário de educação superior, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, que terminou a apresentação no melhor estilo coach: "Bem, o que eu gostaria de dizer, todos nós temos as nossas amarras, e eu gostaria de falar com os estudantes, a gente tem várias barreiras, no meu caso hoje é minha gravata (enquanto fala, o coach está tirando a gravata diante da plateia que assistia a apresentação), mas a gente tem que pegar essas barreiras e botar no bolso, porque o nosso potencial é gigantesco. A gente precisa acreditar em nós mesmos. Nós somos uma indústria que precisa ter um produto de exportação na indústria do conhecimento." Essa é a cara do MEC de hoje: economista, coach, economista, gurus, economista. Para quem ficou na dúvida, o MEC é o Ministério da Educação e não da Economia (embora o Arnaldo Barbosa, aos 16 minutos e 14 segundos, também esteja um pouco confuso). Mas essa confusão é compreensível e, ao ler as nove páginas do PDF do Future-se, ela pode ser ainda maior, afinal o 'economiquês' rola solto.

Mas vamos aos fatos. O que é o Future-se? É o "Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras" cuja finalidade é "o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios" e divide-se em três eixos: i) Governança, Gestão e Empreendedorismo; ii) Pesquisa e Inovação e iii) Internacionalização. Mas nesse governo, como já estamos aprendendo, as palavras não significam exatamente o que costumeiramente significam. Ou melhor, esse governo opera com a novilíngua.  Por que digo isso? É preciso atenção: a palavra autonomia aparece muitas vezes no documento publicado pelo MEC, bem como na fala de Arnaldo e Weintraub. Insistem em dizer que o Future-se "dará autonomia administrativa, financeira e de gestão" para as Ifes. No entanto, no artigo 207 da Constituição Federal (CF) lemos que: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão." Então, do que está falando o ministro? Que nova autonomia é essa prometida pelo Future-se? O que as Organizações Sociais (OSs) teriam a ver com essa autonomia? Em sua apresentação, Arnaldo, o coach-secretário (ou secretário-coach?), disse que as OSs teriam "foco mais em despesas e gerenciamento, que dão muito trabalho para os reitores, a gente quer que eles foquem onde eles têm vantagem comparativa: que é pesquisa, o ensino e a extensão" (a partir de 11:05). Assim, autonomia administrativa pareceria algo como se livrar da administração, ou melhor, entregar a administração para as OSs. Seria essa a concepção de autonomia do MEC?

Por outro lado, há uma diferença entre "autonomia de gestão financeira", que está prevista na CF, e "autonomia financeira", prevista no Future-se. A primeira garante às Ifes autonomia para gerir o seu orçamento. Esse orçamento, por sua vez, é de responsabilidade do Estado. Ou seja, trata-se de um orçamento público que as Ifes têm autonomia para gerir. Já a segunda, prometida pelo MEC, pode significar justamente o fim da responsabilidade do Estado de garantir o orçamento das Ifes. Essas teriam agora autonomia para buscar o seu orçamento no setor privado, através de parcerias, serviços prestados, fundos imobiliários, etc. É esse ponto que tem feito sindicatos e associações de diretores das Ifes, além de professores e especialistas em geral, manifestarem preocupação com uma privatização das Universidades públicas. O governo e o MEC negam. No entanto, nos últimos meses temos motivos de sobra para não confiar no que é dito por membros desse governo.

Seguindo a leitura do documento (sem formatação e sem número de página), lemos no item 3, "Papel das Organizações Sociais", que, uma vez contratadas, as OSs deverão: i) Apoiar a execução das atividades vinculadas aos 3 eixos do programa; ii) Apoiar a execução de planos de ensino, pesquisa e extensão das Ifes; iii) Realizar o processo de gestão dos recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento e inovação; iv) Auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das Ifes participantes; e v) Exercer outras atividades inerentes às suas finalidades. Logo de cara, saltam aos olhos os itens i e ii. De acordo com eles as OSs não estariam focados em atividades de despesas e gerenciamento, mas desempenhariam atividades também relacionadas à 'execução de planos de ensino, pesquisa e extensão'. Nesse caso, como fica a "autonomia didático-científico" do artigo 207 da CF? No item v, fala-se em "outras atividades inerentes às suas finalidades", no caso a finalidade das OSs. Que atividades seriam essas? Onde estão previstas essas "finalidades"? Afinal, o tópico 3 não fala justamente do papel das OSs? No item iv, fala-se em 'auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das Ifes participantes' do Future-se. Mais uma vez, como fica a "autonomia de gestão financeira e patrimonial" do artigo 207? O que exatamente o MEC entende por autonomia? Entregar todas essas atribuições das Ifes para as OSs? Isso é autonomia ou terceirização? Uma primeira leitura desse projeto leva o leitor a suspeitar que na verdade o Future-se trata de um projeto para retirar a autonomia administrativa, financeira e de gestão das Ifes, ameaçando inclusive a autonomia didático-científica, entregando tudo isso nas mãos de OSs.

Além do economiquês que dificulta muito a leitura do texto, o projeto é vago em vários momentos, pedindo que reitores e comunidade acadêmica assinem um cheque em branco. Para exemplificar essa vagueza ou falta de precisão, no item 9, 'Comitê de Gestão', lemos que este "terá sua composição e seu funcionamento definidos em regulamento". Só não sabemos que regulamento, feito por quem, quando. Além disso, quem serão os membros desse Comitê-Gestor que irá acompanhar e supervisionar o Future-se? Um Comitê que, entre outras atribuições, irá "estabelecer as diretrizes das ações no âmbito do Programa" e "Definir o critério para aceitação das certificações, para fins de participação no processo eleitoral dos reitores". São questões de grande relevância para as Ifes e não dá para aceitar assim, no escuro, no aguardo do que será decidido no futuro...

O MEC colocou o projeto em Consulta Pública por quatro semanas, inicialmente seriam apenas três, justamente durante o período de férias, mostrando a disposição para dialogar com a comunidade. A mesma disposição que fez com que reitores e diretores ficassem de fora do grupo de 'inúmeros especialistas' que, segundo o MEC, foram consultados ao longo dos últimos meses. Eu arriscaria dizer que todos esses especialistas são economistas de formação, atuam no mercado financeiro, e sem qualquer experiência com Educação Pública.

Mas o que me chamou mesmo a atenção foi a novidade do Future-se. O pouco que se falou de educação, de fato, está bem alinhado com os discursos do início do século XX, pelo menos uma parte deles. O pano de fundo do discurso do MEC do Future-se não é muito diferente do discurso do MEC da Reforma do Ensino Médio e da versão final da BNCC: vivemos num mundo de transformações, o mercado de trabalho também está em transformação e a escola deve preparar os alunos para esse mercado, de maneira que os alunos sejam capazes de se adaptar a essas mudanças aceleradas. Anísio Teixeira, lá nos anos 30-60, não falaria diferente: "Tudo está a mudar e a se transformar. Não há alvo fixo"(Teixeira, 2000, p.27). Sendo assim, a finalidade da escola seria "preparar cada homem para ser um indivíduo que pense e que se dirija por si, em uma ordem social, intelectual e industrial eminentemente complexa e mutável" (Teixeira, 2000, p.36). Lá se estava encantado com o desenvolvimento industrial, o progresso, e com o mercado de trabalho que  parecia fervilhando, tudo era novidade. Aqui, como lá, fala-se de reinventar o indivíduo, que agora deve ser empreendedor, deve criar suas próprias oportunidades (como se houvesse oportunidades para todos). Pena que em 2019, o que Anísio Teixeira dizia lá no começo do século XX sobre democracia, tolerância e a formação para a cidadania, não seja levado em consideração. Nesse sentido, as ideias de Anísio são futurísticas demais para esse governo.

A verdade é que de educação se fala muito pouco nesse programa, mas sobra o economiquês, sobram os fundos de investimentos imobiliários, sobram as promessas de retorno financeiro para professores-empreendedores, sobram os modelos dos anos 80-90, de inspiração neoliberal, sobram bilhões para os fundos de investimento, sobram economistas. Faltam educadores, faltam propostas sérias para a educação. Ainda que não se fale diretamente, não me parece exagero dizer que esse programa caminhará a passos largos para a privatização das universidades federais. Apesar da abertura futurística, com estética e linguagem jovem, o conteúdo já nasce velho. Estamos apertando os cintos e voltando para o passado, de preferência para algum lugar do passado no qual as universidades eram privilégio de uns poucos.  O Future-se mais parece uma reedição das Corporações de Ofícios. Afinal o presidente e o ministro já disseram que "a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta".  Arte, Filosofia e até mesmo Ciência? Seguindo a lógica de Weintraub, nada disso estará proibido, desde que pago com dinheiro do próprio bolso. Não esqueçamos que para o ministro, bolsa é coisa de vagabundo, por isso ele se orgulha de nunca ter tido bolsa. Que o CNPq esteja ameaçado, não pode ser mera coincidência.

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Para saber mais sobre o assunto:

Chutando a escada

Outras palavras

Publicado em Diário de Engenho

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