segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Cada um que cuide do seu cu! - e isso não deveria ser assunto de governador, prefeito ou presidente da república

Eu tenho dificuldades de começar esse texto. Tentei diversas vezes, mas apaguei. É um misto de desânimo e revolta que toma conta de mim, e que tende a me paralisar. Sinto-me angustiada. Sensação de que as vias do diálogo estão sendo todas apagadas. Há uma gritaria histérica acompanhada de um esforço tremendo para interditar qualquer fala que não concorde com a gritaria. Vou me arriscar a entrar numa seara perigosa, já antevejo os ataques, xingamentos, ou, no mínimo, o olhar de lado como quem diz: "coitadinha, é tão burra" ou talvez acusações de que sou machista, fascista, homofóbica, ultradireita e até, quem sabe, bolsonarista. Respiro fundo. Será que vale a pena?

Na semana passada, o ex-candidato à presidência pelo PDT, Ciro Gomes, deu uma longa entrevista à BBC. A entrevista está disponível no Youtube e também na página do jornal. Dentre as muitas coisas sobre as quais falou - críticas ao PT, ao governo Bolsonaro, reforma da previdência e tributária, Tábata Amaral, defesa da democracia - a que mais rendeu comentários foi uma fala na qual ele cita a filósofa e ex-candidata ao governo do Rio de Janeiro, Márcia Tiburi. O contexto amplo em que a menção à Márcia Tiburi aparece era a relação entre a pauta moralista de Crivella e Bolsonaro (Dória pode ser incluído também) e as pautas identitárias defendidas pela Esquerda ou, mais precisamente, segundo Ciro, pelo PT. Não é a primeira vez que Ciro traz essa questão como algo importante a ser pensado. E também não é a primeira vez que suas palavras são distorcidas ou 'interpretadas' ao sabor das paixões dos intérpretes. Durante a campanha eleitoral ele foi duramente atacado por uma reflexão sobre os resultados do Movimento #Elenão (tanto a fala de Ciro como as respostas a ela podem ser encontrados com algumas googladas). Mas vamos aos fatos ou às falas de Ciro à BBC: 

"(...) A segunda questão é que o Brasil não cabe na esquerda. Sabe? (...) O PT não entendeu nada do novo Brasil neopentecostal, evangélico e como não tem proposta de esquerda, nenhuma, se refugia no identitarismo. Então tem uma imensa afinidade com as teses identitárias, como se a soma de interesses identitários desse um interesse nacional. Isso não existe.
O que acontece é o seguinte: por que o Crivella em pleno século 21 não só é o prefeito do Rio de Janeiro, já deveríamos parar um pouco para pensar - aliás, lá trás com apoio do PT, aliás foi ministro da Dilma -, mas se lança numa cruzada contra um livro? Em plena Bienal do Livro. Você acha que ele é burro? É que ele está desmoralizado como prefeito, nas tarefas de prefeito, ele está desmoralizado. Então o que está fazendo? Está indo para a questão identitária, para mudar a cabeça do povo, do julgamento de uma administração ruinosa para o paladino da defesa, da moral e dos bons costumes.
BBC News Brasil - Algo semelhante ao que o governo Bolsonaro faria?
Gomes - Rigorosamente a mesma matriz. Eles estão todos imitando. Bolsonaro foi orientado pelo [Steve] Bannon, que veio dos Estados Unidos a serviço do Trump, para cooptar o Brasil através da compra do nosso presidente, da Presidência da República.
BBC News Brasil - O senhor acha que o PT faz algo semelhante?
Gomes - Rigorosamente a mesma coisa. Quantos votos teve a candidata a governadora do Rio de Janeiro nas eleições passadas? Você tem ideia? Rio de Janeiro é a maior concentração de artista por metro quadrado, intelectuais, engenheiros, do Brasil. É a sede da Globo, da ABI, enfim, de tudo o que é progressista.
Sabe quantos porcento PT tirou lá? Dois por cento. Porque a Marcia Tiburi, que é uma figura respeitável, queridíssima e tal, faz apologia do cu na televisão. Eu tenho até vergonha de citar e isso não quer dizer que não haja uma grande interessante questão nesta tese da Marcia Tiburi, mas foi o que dominou o debate no Rio de Janeiro. Você quer uma governadora que faz apologia?"

Não vou entrar no mérito do argumento de Ciro sobre o papel das pautas identitárias no cenário político eleitoral, mas entendo que quando ele traz essa questão para discussão, não está negando as justas e necessárias reivindicações de movimentos LGBTQ+ e afins, mas chamando a atenção para o perfil da sociedade brasileira, que é conservador e cada vez mais evangélico, e como o destaque para essa pauta acaba por criar um espaço privilegiado para que seres nefastos como Bolsonaro e Crivella nadem de braçada. Essa é minha leitura das falas de Ciro. Tenho certeza de que muita gente irá discordar de mim, e tudo bem. Podemos discuti-la em outra oportunidade.

Então, vou focar no que virou a panaceia do fim de semana: uma suposta agressão cometida por Ciro Gomes contra Márcia Tiburi. Ou, como li num site, um ataque vil e um discurso cafajeste; outro portal qualificou Márcia Tiburi como vítima de um ataque covarde de Ciro Gomes (algumas googladas podem levar o leitor até as fontes desses comentários). Na citação que fiz acima do trecho da reportagem no qual ela é citada, fiz questão de colar em destaque a fala de Ciro sobre a ex-candidata, mas vou retomá-la por partes.

i)  Porque a Marcia Tiburi, que é uma figura respeitável, queridíssima e tal, faz apologia do cu na televisão. - Fico me perguntando onde estaria a agressão, o ataque vil ou covarde feito por Ciro. Teriam sido os seus 'respeitável' e 'queridíssima' entendidos como uma agressão velada? Estariam sugerindo que ao usar esses adjetivos, Ciro tentaria esconder sua intenção de desqualificar Márcia? Eu realmente gostaria de entender. Aparentemente, o erro cometido por Ciro nessa fala foi o fato de que a apologia de Márcia ao 'cu' não foi feita na televisão, mas sim num evento que, uma vez gravado, passou a circular num vídeo pela internet.
ii) Eu tenho até vergonha de citar - Aqui, poderíamos acusar o Ciro de um moralismo mal disfarçado, ao dizer-se envergonhado de citar a fala de Márcia. Uma fala descabida e com fins eleitoreiros de agradar a parcela conservadora da sociedade. Se essa for a leitura que fazem, eu estaria de acordo. Mas, ainda assim, não vejo como isso poderia ser traduzido como 'ataque vil' ou 'agressão'.
iii)  e isso não quer dizer que não haja uma grande interessante questão nesta tese da Marcia Tiburi - No entanto, nessa outra parte, ele reconhece que haja uma interessante questão na tese dela. Portanto, em nenhum momento Ciro está atacando Márcia ou suas ideias.
iv) mas foi o que dominou o debate no Rio de Janeiro. Você quer uma governadora que faz apologia?" - Finalmente, o ponto que ele gostaria de ilustrar é que, no debate político, foi essa 'polêmica' que prevaleceu. Ciro apresenta fatos. Faz uma análise do que aconteceu no Rio de Janeiro. Coisa que qualquer um de nós poderia fazer e chegar no mesmo resultado: é fato notório que o Rio de Janeiro concentra uma população neopentecostal cada vez mais expressiva, principalmente nas áreas de periferia; diante desse fato, Ciro chama atenção para o potencial impacto que uma fala como a de Márcia Tiburi, na condição de candidata a um cargo executivo, teria num cenário eleitoral. Na verdade, o impacto que teve alcançando apenas 2% dos votos, segundo ele (mas na verdade foram quase 6%, portanto, aqui caberia um puxão de orelha em Ciro).

Honestamente, eu me pergunto, como essa análise, esse juízo de fato emitido por Ciro Gomes pode ser lido como uma agressão ou um ataque vil e covarde? Como essa análise feita por ele sobre a queda de braço que está em curso no país entre pautas identitárias e moralismo de goela (para usar uma expressão de Ciro) pode ser interpretada como demonstração de machismo ou mesmo de insulto em relação à Márcia ou a um grupo específico? Chegaram ao absurdo de dizer que Ciro age como a extrema-direita.

Insulto e ataque para mim foram as inúmeras falas em redes sociais e portais chamando Ciro Gomes de "coronel mimado", de "esquerdo-macho", "extrema-direita". Enfim, não é minha intenção fazer nenhuma defesa apaixonada de Ciro. Infelizmente traços de machismo, racismo e homofobia sobram em quase todos nós, em maior ou menor medida, e entendo que vencê-los é uma batalha diária que exige muito esforço para desconstruir essas ideias que estão encalacradas na sociedade brasileira. Ciro Gomes não é perfeito, nem santo, ele é só mais um ser humano, com suas muitas falhas e defeitos. No entanto, não dá para aceitarmos essa 'guerra amalucada' de desinformação e má-fé. Acho muito válido que se questione a tese de Ciro a respeito do papel das pautas identitárias dentro dos partidos políticos, principalmente os partidos que se dizem de esquerda. Que aqueles que discordam dele, apresentem seus argumentos. Mas criar toda uma comoção em cima de uma suposta agressão ou ataque que não ocorreram, é mais um desserviço para a população que já tem sido bombardeada cotidianamente por tanta desinformação e ódio.

Esse episódio me fez pensar muito sobre a atuação de intelectuais, acadêmicos, filósofos na política partidária. Enquanto filósofa, acadêmica, pesquisadora, Márcia Tiburi tem o direito de formular e expressar as teses que quiser sobre o assunto que quiser, e isso inclui o 'cu'. Mas fico me perguntando como compatibilizar uma fala como a da Márcia Tiburi sobre o 'cu' com a condição de candidata para um cargo no executivo, por exemplo, o cargo de governadora de um estado. O mesmo questionamento vale para a atuação de religiosos na política partidária, bispos, padres e pastores. Dentro de suas igrejas, em seus púlpitos, eles dizem e fazem o que está de acordo com suas crenças e valores. Mas quando disputam um cargo público não devem usar o palanque como se falassem para seus fiéis, no entanto, infelizmente, é isso que tem acontecido. Mas, se consideramos inaceitável que pessoas hoje nos cargos do executivo queiram fiscalizar o 'cu' alheio, também não seria inaceitável alguém no cargo do executivo fazendo apologia a liberação do 'cu' alheio? O compromisso do político, para mim, seria o de garantir que as pessoas possam cada uma cuidar do seu 'cu' sem que o Estado interfira nisso, seja para fiscalizar ou censurar, seja para fazer apologia a liberação do mesmo. 

Enfim, sei que o tema é polêmico, e reconhecer essa polêmica não é interditar o seu debate. No entanto, entendo que há lugares em que esse tema seja cabível e outros que não. Na Universidade, num evento literário, o tema cabe perfeitamente. Num debate eleitoral, para um cargo do executivo, não me parece ser o caso. E posso estar muito enganada, mas entendo que essa é a ideia de Ciro Gomes sobre o assunto. E não estou acusando Márcia Tiburi de ter levado a polêmica para o debate eleitoral, assim como não entendo que Ciro Gomes tenha feito tal acusação. Ele apenas usava o exemplo dela para ilustrar uma tese, a saber, a tese de que as pautas identitárias teriam se tornado a grande bandeira dos partidos de esquerda, e do PT em especial, o que levaria, por outro lado, grupos conservadores a explorarem a pauta moralista, como fizeram durante a última campanha eleitoral os opositores da Márcia Tiburi, e como vem fazendo diuturnamente Bolsonaro, Crivella, Dória e afins.

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