Faz alguns
meses eu tive um sonho, que agora, por mais que eu me esforce, não consigo
lembrar detalhes. Mas de manhã, quando acordei, eu tinha uma lembrança vaga. Eu
tinha escrito um livro, e o título do livro era: A rua que não tinha muros. Eu
achei tão poético esse título que anotei na minha lousa branca, no escritório.
E agora, quando escrevo, posso vê-la ainda, está um pouco desbotada, mas está
li. Como eu sou metida a escrevinhadora,
naquele dia eu anotei porque pensei: vai que uma hora dessas surge uma
inspiração e escrevo mesmo um livro...
Não, eu não
estou escrevendo um livro. Mas veio uma inspiração – ou seria uma necessidade
de confissão? Nesse fim de semana encerra-se um dos processos eleitorais mais
conturbados e complicados do período recente da história da Brasil. Mas todos
os nossos problemas têm sua origem há quatro anos, quando um presidenciável,
diante da derrota nas urnas, deu início a um processo de ataque à democracia.
Ao se negar a aceitar os resultados da eleição, o presidenciável talvez não
tivesse ideia de tudo que enfrentaríamos a partir de então. Imagino que o cálculo feito à época foi outro, mas
falhou. O preço que se paga por colocar a democracia em xeque é muito alto. Mas
não pararam por aí. Recontagem de votos feita e o resultado era aquele mesmo.
Foi preciso arranjar outro jeito de mudar o resultado das eleições. Tudo com
ares muito ‘republicano’ e ‘legalista’. Eis que caímos num abismo ainda maior.
Depois de um golpe-jurídico-parlamentar que recebeu amplo apoio da sociedade, da
mídia, do mercado, de partidos políticos, assumiu o vice-conspirador-traidor. E
vieram reformas – na educação, trabalhista, previdenciária (quase...) – e os
resultados prometidos não chegaram. O que vimos foi um aprofundamento da crise econômica
– aumento de desemprego, aumento de violência – amplamente patrocinada por
partidos políticos durante o período pré-golpe, com apoio a pautas bombas chefiadas
pelo presidente da Câmara, com a clara finalidade de desestabilizar a recém
reeleita presidente da república.
Ao mesmo tempo,
vimos um partido ganhar protagonismo no cenário nacional, o partido da toga ou
talvez fosse melhor dizer o partido judiciário. Ministério Público, juízes de
primeira instância, ministros dos mais variados Tribunais, de repente se
arvoraram sobre a Constituição. Assumiram, sem nenhuma falsa modéstia, o traje
de Heróis – ou seria de Justiceiros? Tendo a mídia como principal aliado, nos
lançaram na onda da espetacularização.
Prisões preventivas, conduções coercitivas, depoimentos, julgamentos, tudo
devidamente televisionado. De uma hora para outra, os brasileiros se tornaram
especialistas do direito, o juridiquês
nunca foi tão acessível. Nos pontos de ônibus, nas filas do banco, no almoço de
domingo, as sentenças e condenações ficavam prontas antes mesmo dos
pronunciamentos espetaculares dos juízes. Mas não foi só isso. Também cresceu
aquele sentimento de que todos os políticos são corruptos. As manchetes de
jornais, as chamadas nos telejornais e, finalmente, os comentaristas políticos
de facebook, não cansavam de mostrar que os políticos, bem como os partidos
políticos, seriam a causa de todos os males desse país. O descrédito se generalizou.
São todos iguais. Essa era a sentença final. E multidões foram para as ruas
pedir a saída da presidente. Na verdade, pedir a saída de um partido. Diziam
que depois tirariam os outros. Mas não foi bem assim. Não tiveram a mesma
disposição para dancinhas e passeatas de domingo em família, quando vieram denúncias
contra o vice agora presidente. Quando apareceram vídeos com malas de dinheiro,
com apartamentos cheios de mala de dinheiro. O gigante, que diziam ter acordado,
voltou a dormir em berço esplêndido.
O tempo
passou, a crise continuou, o desemprego aumentou, o número de endividados
também, os recursos públicos minguaram, o WhatsApp ocupou o lugar que outrora
fora dos canais de TV. A frustração do brasileiro cresceu, ou melhor, foi devidamente alimentada durante
esses últimos três anos. A frustração virou ódio. Ódio a um partido político;
não, a todos os partidos políticos. Ódio a um político; não, a todos. Mas é ano
de eleição novamente. Para alguém se eleger é preciso ser filiado a um partido
político. Mais: alguém que se apresenta para disputar um cargo eletivo, já é
político. Mas eis que surge o outsider, o
não-político, o antipolítico, aquele que vai
acabar com tudo isso que está aí. Surgem candidatos novos que já nascem
velhos, mas ressurgem velhos querendo se passar por novos. Como é o caso de um
deputado, quase 30 anos na política, que fez carreira na política e também levou
os filhos para o mesmo caminho, três filhos também deputados, mas não foi só:
empregou cunhados, ex-mulher, atual mulher, teve funcionária fantasma. Esse
deputado, já velho conhecido da população brasileira, de declarações polêmicas,
de inteligência limitada, de fala confusa e raivosa, preconceituoso, disparador
de ofensas e discursos de ódio, defensor da tortura e da ditadura, fã de torturador,
esse deputado, político velho, que soube bem capitalizar o ódio das pessoas
contra um partido, pode agora ser o novo presidente do Brasil.
De repente é
hora de votar. Dirijo-me à urna com o coração apertado, com os olhos cheios de
lágrimas, com a cabeça doendo e a boca seca. Uma vontade de gritar, de chorar,
de chacoalhar as pessoas que marcham para democraticamente colocar nossa já
combalida democracia ainda mais em risco. Segundo turno: governador e
presidente. Meus votos são votos contra: contra o machismo e o feminicídio, contra
o racismo, contra a homofobia, contra o ódio, contra a tortura, contra a
mentira descarada disseminada nos grupos de família de cidadãos de bem e
cristãos que, saindo da igreja, fazem sinal de armas e repetem que bandido bom é
bandido morto; contra a falácia do outsider,
do antipolítico; contra a
espetacularização da política: de um prefeito
que se fantasiou de cidadão comum, de
trabalhador, enquanto flertava com a supressão de direitos trabalhistas; de
homens desonestos que usam a palavra honestidade como bandeira, mas se escondem
atrás dessa bandeira para praticarem suas imoralidades e corrupções – defendendo
abertamente a sonegação de impostos; recebendo auxílios quando deles poderiam
abrir mão; meus votos foram contra a
violência como solução para a violência, contra os ataques feitos aos direitos
humanos. Mas meus votos foram também a favor:
da democracia, da pluralidade, da liberdade de pensamento e de expressão, do
estado laico, da liberdade de credo; a favor da educação, mas não de qualquer
educação, de uma que seja comprometida com a justiça, com a formação de senso
crítico, que respeita o jovem em formação, que não o trata como propriedade de seus
pais; a favor da possibilidade de que meus alunos e alunas negros sonhem e possam
ter futuro diferente daquele que seus pais tiveram; a favor de todas as famílias,
de todas as formas de amor.
Votei. Não era o segundo turno que eu desejava. Não eram os candidatos que eu queria, os partidos que eu queria. Mas eu fiz minha parte, fiz o que deveria fazer nesse momento. Estou tranquila, em paz, com a consciência de que estou do lado certo. E essa certeza se confirma quando olho ao meu redor e vejo quem são as pessoas que estão do meu lado, lutando por esses mesmos valores. Estamos juntos e juntos seguiremos, de cabeça erguida. Seguiremos para impedir que nossas ruas se fechem em muros, que nossas vidas sejam cercadas por muros, que nossos pensamentos sejam cercados por muros, que nossos afetos sejam cercados por muros. Nem que seja escrevendo muitas poesias, muitas músicas, muitos livros. Seremos resistência em versos e melodias, construindo novas narrativas. Eu quero viver num país sem muros, reais ou simbólicos. Que hoje, juntos, possamos dar início a escrita de um novo capítulo da nossa história: O país que não tinha muros.
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