Cirilo - primeira versão do Carrossel exibida no Brasil em 1991 |
Como a maioria das pessoas nesse país, cresci num ambiente racista. Tanto o ambiente familiar quanto o ambiente expandido. Ouvi tantas 'piadas" sobre cabelo de negro, sobre serviço de preto, ou coisa de preto. Por algum motivo, eu não nunca aceitei isso como normal. Lembro que desde pequena brigava com quem dizia essas coisas. Lembro de ter chorado algumas vezes, quando criança, porque meus tios faziam esse tipo de comentário. E o meu choro era ainda motivo para meus tios dizerem que eu ia casar com um preto, como se isso fosse algo ruim ou engraçado.
Mas na minha memória, meu primeiro contato com o racismo e com o preconceito de classe, ficou registrado de maneira muito forte. Eu tinha uns seis anos. Estava na escolinha. Eu era uma criança chata, não gostava de brincar e na hora do recreio, ficava perto dos adultos, das professoras, no caso, conversando. Num desses dias, a filha de uma professora, que também estudava na escolinha e era um ano mais nova do que eu, chegou do meu lado e disse: "sai de perto da minha mãe, você parece o Cirilo". Eu fiquei muito triste. Eu chorei. Para quem foi criança nos anos 90, sabe que o Cirilo era o menininho negro da novelinha infantil, Carrossel. O menino negro e pobre que era constantemente humilhado pela menininha branca e metida, Maria Joaquina. Quando a filha da professora me disse aquilo, eu sabia que ela queria me xingar, me ofender. Eu não era negra - inclusive o tom de pele da filha da professora não era nada diferente do meu -, mas eu era pobre. E mesmo com seis anos, eu tinha alguma noção de que eu, de algum modo, era parecida com o Cirilo. E aquilo me doeu.
Em vários momentos da minha vida eu me lembrei dessa cena. Certamente eu a fantasiei e a reconstrui de muitos modos. Mas toda vez que eu lembro dela, sinto que desde muito cedo eu entendi que algumas pessoas achavam que a cor de outra pessoa era motivo para ela valer menos, ou para que ela tivesse que sofrer. Lembro que assistindo a novelinha infantil, eu chorei muitas vezes com as maldades da Maria Joaquina. Mas eu também sentia raiva do Cirilo, porque ele sempre dizia: "eu só quis ajudar". Porque diante das respostas mal criadas da menina loira, ele continuava gostando dela, querendo estar perto dela. Lembro do episódio que ele passa uma pasta branca na cara, pra ver se ficava branco. Aquilo era tão cruel. Outra cena que me marcou muito foi a do pai da Maria Joaquina, se não estou enganada, chorando diante do reconhecimento da maldade e do preconceito da filha. A verdade é que com o Carrossel e com a filha da professora me chamando de Cirilo, eu aprendi o que era racismo.
Mesmo sabendo de tudo isso e mesmo me incomodando muito com as falas racistas que sempre fizeram parte do meu mundo, eu levei muito tempo para entender a profundidade do racismo e porque as cotas - para o ensino superior- eram necessárias num país como o nosso. Eu só fui entender de verdade, entender não de maneira racional, mas de maneira afetiva e emocional, quando comecei a dar aula. Quando ouvi uma professora dizendo que um dos meus alunos, que era negro, não passaria de caixa de supermercado, e que não tinha muito o que fazer por ele, 'tadinho'. Foi aí que eu entendi o que era racismo estrutural e institucional. Eu nem conhecia essas expressões. Mas entendi que quando uma criança ou adolescente tem o seu futuro predeterminado por causa da dor da sua pele, ele está numa desvantagem imensa em relação a seu colega que é branco, ainda que esteja ali, na mesma sala de aula, com os mesmos professores.
O racismo no Brasil na maior parte do tempo tem sido velado, tem sido suavizado por comentários carregados ora do tom da 'brincadeira', ora do tom da caridade. O negro no Brasil só cabe em dois papeis: ou é malandro ou é o coitado. Se é malandro, tem que ser preso mesmo, tem que morrer, tem que pagar seja pelo que é tenha feito - por existir? Se é coitado, está lá para que algum branco de bom coração possa fazer sua caridade, sua doação, sua boa ação, do dia ou do ano. Infelizmente, no Brasil de 2019, o racismo está cada dia mais escancarado, e até encontra deputado disposto a quebrar obra de arte que discute o racismo e o genocídio da população negra e deputado pra defender a atitude boçal e criminosa do coleguinha.
Eu descobri o racismo muito cedo. Mas acredito que fiz muito pouco até hoje para combatê-lo. E é uma tarefa que deveria ser abraçada por todos. E começa por não rir de 'piada' sem graça, do tio ou seja lá de quem for. Por não fingir que o racismo não existe, só porque é mais cômodo. Aguçar nosso olhar para ver o racismo que nos cerca diariamente, ou que segrega as pessoas nas grandes cidades todos os dias. Da próxima vez que for a um shopping, procure enxergar as pessoas negras nesse espaço. Da próxima vez que for a um restaurante, se pergunte por que não tem negros sentados ao seu lado ou quando for ao médico ou procurar um advogado. A primeira coisa urgente a ser feita é romper com a nossa cegueira social.
Nesse dia 20 de novembro, convido a todos a olharem e enxergarem o mundo com as cores que ele tem ou não tem em determinados lugares. Mas é preciso cuidado para não ser emburrecido por comentários como o do deputado que disse: ao entrar na favela nós vemos a maioria de negros com armas, e isso é um fato. Para não sairmos acreditando que os negros escolheram estar na favela, escolheram a marginalidade, escolheram ser pobres, escolheram ser faxineiros, porteiros, diaristas, seguranças. Que os negros escolheram que não querem ser médicos, advogados, professores, engenheiros, músicos, poetas, atores, juízes, presidente da república, senador ou deputado. Os fatos estão aí, e precisam ser interpretados. Nunca é tarde para nos perguntarmos por que é assim. Nunca é tarde para reconhecermos o que 300 anos de escravidão fizeram com o povo negro no nosso país. Nunca é tarde para reconhecermos que houve uma política de branqueamento da população e um esforço oficial de apagamento do povo negro e de sua história.
Um comentário:
Parabéns. Ótimo texto. Bom para refletir quem somos.
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