Por se tratar de um exercício reflexivo, o texto a seguir não se propõe a trazer respostas definitivas sobre os temas abordados. A ideia é apresentar cenários, problematizar e conceituar alguns termos que estão sendo amplamente utilizados nesse momento, bem como problematizar atitudes e propostas que têm circulado nesse contexto, principalmente na Educação, com a modesta pretensão de contribuir com uma discussão democrática, tão urgente nesse momento, e que fuja das superficialidades.
Gostaria de começar narrando
um episódio que ocorreu em 2004, quando eu estava no primeiro ano da minha
graduação em Filosofia, durante uma aula de História e Filosofia da Educação. O
"professor" responsável pela disciplina era um entusiasta da
tecnologia, passava horas falando de suas experiências nos EUA, no Instituto
Ayrton Senna e no Instituto Microsoft. Criou uma lista de e-mails na qual nós,
alunos de diversas licenciaturas da Unicamp, deveríamos interagir a partir dos
textos disponibilizados pelo "professor". Depois de algumas semanas
de aula, eu, no auge dos meus 19 anos, pergunto: Professor, não entendi o que
estamos fazendo nessas aulas, falando de tecnologia o tempo todo. Aqui, a
maioria vai se formar e trabalhar em escolas públicas que não têm
tecnologia, em que muitas vezes falta carteira, giz, têm vários problemas de infraestrutura. O que vamos fazer?
(foi mais ou menos assim, depois de ter dito que, de História da Educação, não vimos nada e, de Filosofia da Educação,
passávamos longe...). E eis que vem a resposta que, desde então, nunca consegui
esquecer: "ESSAS PESSOAS NÃO FAZEM O MUNDO GIRAR". (A
"aula" virou um caos, alunos se revoltaram, eu tive uma crise nervosa
de riso e o "professor" disse que eu era maluca, mas tudo isso
não vem ao caso). O que importa é que, certamente, vem deste episódio minha
desconfiança com "soluções
tecnológicas para a educação”. Sempre tenho a impressão de que tais soluções se baseiam na premissa de que há uma parcela considerável
da população que "não faz o mundo girar" e que, portanto, não
precisa ser levada em consideração, se queremos manter o "mundo
girando".
A primeira questão aqui a se
fazer é que "mundo" queremos que continue "girando"? Desde
o final de fevereiro, o Brasil entrou no mapa da pandemia do novo coronavírus.
Em março, com o registro da primeira morte por covid-19, instituições de
ensino, juntamente com empresas e muitos outros setores da sociedade
suspenderam atividades presenciais, dando início a um plano de isolamento físico,
a fim de retardar o espalhamento do vírus e, assim, evitar ou postergar o colapso
dos sistemas de saúde do país. Na medida do possível, tiveram início trabalhos remotos e home offices. Não
demorou e, no caso da Educação, a EaD passou a ser louvada como a solução para
tentar retomar as atividades e manter "alguma normalidade". Logo, muitas
pessoas começaram a falar de paliativos até "retornarmos à normalidade".
E temos agora outra pergunta: que "normalidade" é essa à qual queremos
voltar? Seria a mesma
"normalidade" daquele mundo que precisa continuar girando enquanto
milhares permanecem às margens? A mesma "normalidade" que convivia
muito bem com a galopante e vergonhosa desigualdade social do nosso país? A
mesma "normalidade" que gerava milhares de desempregados por dia, ao
mesmo tempo que empurrava outros milhares de trabalhadores para a
informalidade? O "mundo que gira" e que era a nossa
"normalidade" antes da pandemia seria aquele que condenava milhares
de jovens brasileiros à subempregos, a atividades exploratórias em nome da mera
sobrevivência?
disponível em: https://pixabay.com/pt/ |
No Brasil, temos hoje cerca
de 48 milhões de estudantes e 41% desse total estão nas escolas públicas. Segundos dados do IBGE, cerca de 25% da população brasileira não tinha
acesso à internet em 2018. No afã de mostrar serviço, ainda mais em ano eleitoral
(e, no Brasil, parece que nunca saímos de ano eleitoral),
prefeitos e governadores saíram anunciando EaD - Ensino a distância. Mas
anunciar é fácil, difícil é dar as condições
necessárias para que os alunos possam ter acesso às aulas remotas. Não falta
gente para dizer: ah, mas os alunos têm celular... E muitos quando dizem isso
parecem mesmo acreditar que aí estaria a salvação para todos os nossos
problemas. Vou deixar de lado a questão da internet, porque os pacotes de
dados, quando os alunos os têm,
não
permitem acompanhar aulas síncronas, lives e afins. Mas parece que muita gente, professores
e gestores inclusive, ou ignoram completamente esse fato ou, por conveniência,
fingem ignorá-lo. Vou passar a outro ponto: a tela de um celular seria adequada
para deixarmos alunos expostos por 8 horas diárias, em média, lendo textos e
fazendo exercícios? Isso porque os levantamentos mais rasteiros feitos por
escolas evidenciam que boa parte dos alunos não tem computador em casa. Mas
aquelas famílias que possuem um computador estão nesse momento com pais
trabalhando remotamente, muitas vezes, utilizando o computador e filhos - sim, às vezes mais do
que um - que terão aulas e atividades online para serem realizadas. Mas para
falar de EaD, é preciso também pensar que a acessibilidade não se resume a ter
um aparelho e internet. Haverá nos lares espaço adequado para estudo? Ou
estariam adolescentes assumindo o cuidado de irmãos menores bem como tarefas
domésticas enquanto pais seguem trabalhando? E nos lares onde os pais estão
desempregados, há clima para seguir estudos remotos?
Mas
vamos falar da EaD. Ensino ou Educação a distância? Ah, isso não faz diferença, já posso ouvir algumas vozes e ver algumas caras
tortas. Faz sim! Se, para
prefeitos, governadores e gestores não faz; para nós, professores e educadores deveria fazer.
Normalmente, quando falamos em Educação temos em mente algo bem mais amplo do
que o termo 'ensino' é capaz de abranger. Segundo a nossa Constituição, "A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho"
(Art. 205). Como podemos observar, a Educação não está restrita ao ambiente escolar. Por outro lado, ao ser
descrita em termos de "pleno desenvolvimento da pessoa", Educação não pode ser reduzida a processos de
Ensino-Aprendizagem, diretamente associados a conteúdos e que podem ser medidos
e quantificados de alguma maneira. A filósofa Hannah Arendt nos apresenta uma
diferença entre Educação e Aprendizagem que pode nos ajudar a entender as
limitações de se falar em "ensino a distância", principalmente
pensando na Educação Básica. Segundo a autora, "não se pode educar sem ao
mesmo tempo ensinar; (...). É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender
durante o dia todo sem por isso ser educado" (ARENDT, H., Entre o
passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 2016). Pensar que, através das tecnologias
hoje disponíveis, podemos substituir as
aulas presenciais sem perdas, dando conta de cumprir o nosso compromisso de
Educação, de "pleno desenvolvimento da pessoa" é simplificar uma
discussão complexa e de extrema importância para a sociedade.
Mas, além disso, para que possamos falar em EaD,
conforme a legislação brasileira mais recente* a entende, faz-se necessário
falar em: i) formação do professor para trabalhar nessa modalidade;
ii) adaptação dos cursos presenciais para a modalidade a distância, entendo que
as duas modalidades possuem características específicas em termos de
ferramentas e métodos; iii) preparação dos alunos para a nova modalidade, além, é claro, iv) da infraestrutura material tecnológica
para viabilizar o adequado desenvolvimento de um curso EaD. Para resumir:
qualquer coisa que venha a ser feita neste momento, ainda que mediada por
tecnologia, não pode ser chamada de EaD. Caso contrário, corremos o risco de estarmos rebaixando o
trabalho sério e responsável que Instituições e profissionais de cursos EaD realizam hoje
e contribuindo para um rebaixamento da qualidade do ensino em geral, diante da
possibilidade de que "experiências" desse período de pandemia se
tornem o "novo normal" posteriormente.
Que
o mundo não será o mesmo depois dessa pandemia, parece uma verdade incontestável,
embora muitos sigam no modo negação. Só que o "novo
normal" já está sendo gerado agora. E se
depender das respostas imediatistas, que seguem os mesmos princípios da
"normalidade pré-pandemia",
não
terá muita novidade. Para o filósofo coreano Byung-Chul Han, vivemos numa
sociedade marcada pela busca do "desempenho", da
"produtividade" ou, talvez diria o "professor" que tive o
desprazer de conhecer, num mundo que precisa se manter girando, e cada vez mais
rápido, de preferência. Para Byung-Chul, a sociedade do século XXI é a sociedade
do desempenho, formadas por sujeitos de desempenho e produção, empresários de
si mesmos. No contexto da pandemia, parece que esses traços da sociedade do
desempenho se acentuam e aceleram. Por um lado, o discurso do empreendedorismo
tem alimentado a ilusão de que cada um é empresário de si mesmo, que o sucesso
depende única e exclusivamente do esforço individual, que os fracassados e perdedores do mundo - talvez aqueles
que não fazem o mundo girar - são totalmente responsáveis pelo lugar que ocupam
na sociedade. Por outro lado, no meio da pandemia, é grande o número de
profissionais, também da educação, preocupados em ser produtivos, em mostrar
desempenho, em ser proativos. Talvez porque, como nos
fala Byung-Chul, a mudança de paradigma para essa sociedade do desempenho já habite
o inconsciente social. Na sociedade do desempenho, explorado e
explorador colapsam no mesmo sujeito; predomina a autoexploração, disfarçada de liberdade, de autonomina. Todo esse processo de
autoexploração é potencializado pelas mídias digitais. E nada melhor do que a
pandemia para tornar isso evidente para todos que queiram ver. "O aparato
digital torna o próprio trabalho móvel. Todos carregam o trabalho consigo como
um depósito de trabalho. Assim não podemos mais escapar do trabalho"
(Byung-Chul Han, No enxame: perspectiva do digital, Petrópolis,RJ: Vozes, 2018). Será esse o "novo
normal" para o qual nos dirigimos? Se antes eram apenas os trabalhadores
por aplicativos - Uber e afins - que na ilusão da liberdade e de serem
empresários de si mesmos - se autoexploravam diariamente, quem poderá estar
salvo dessa dinâmica pós-pandemia? Depois que provarmos que é possível manter a
"normalidade" de casa e, no caso da Educação, que podemos seguir, graças
a redes sociais, zoom, Instagram, WhatsApp, Moodle entre tantos outros, o nosso
processo de Educação ou de Ensino, cumprir nossos Planos de Ensino, alcançar
nossas metas, nos adaptar, nos superar, nos reinventar, quem poderá nos salvar de nós mesmos?
Contrariamente
aos pressupostos otimistas que afirmam que o aparato tecnológico reduz e até supre a distância, o que seria extremamente positivo no caso
da Educação, Byung-Chul afirma que as mídias digitais nos afastam cada vez mais
do outro, ao mesmo tempo que nos
conduz a
um
processo de narcisificação. A
mídia
digital opera na lógica da adição, do acúmulo, não por acaso falamos de "sociedade da
informação". Mas informação não é sinônimo de conhecimento, nem de aprendizagem. Se
por um lado, as ferramentas digitais e tecnológicas facilitam processos de pesquisa, busca, de informação, por outro, ela nos
afasta do real, dos fatos, da temporalidade, nos prendendo num presente eterno.
A percepção do mundo passa a ser plana, perde profundidade, perde-se o outro, e
nos tornamos mais do mesmo. Perde-se a dimensão histórica, do passado, e perde-se a dimensão dos sonhos, de
se pensar /imaginar o futuro.
Quaisquer
que sejam as saídas trilhadas pelas instituições de ensino - principalmente as públicas - nesse momento de
crise gerada pela pandemia do coronavírus, não podem se furtar a refletir sobre qual é o "novo
normal" que queremos construir. Abraçar EaD, sem problematizar os pontos
acima levantados, todos eles, é apostar num mundo que seguirá girando enquanto
milhares estarão sendo deixados de lado, porque, como me disse aquele
"professor", elas estão de fora, não fazem o mundo girar. A questão é se queremos ampliar
ainda mais o número de gente que estará nessa situação, de não fazer o mundo girar, em nome da
produtividade e do desempenho, encantados com as ilusões de liberdade e autonomia que as tecnologias digitais
colocam ao alcance das nossas mãos, ou melhor, dos nossos dedos, bastando deslizar
o dedo pela tela para descartar candidatos, como no Tinder, ou num clique deletar, como no Facebook, amigos indesejáveis.
*****
Para saber mais e pensar melhor
*Legislação da EaD
-Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB)
-Decreto 9.057, de 25 de maio de 2017 (novo marco regulatório para EaD)
-Portaria n.11, de 20 de junho de 2017.
Artigos e podcast
- Como o ensino a distância
pode agravar as desigualdades agora: nexo jornal;
- A educação a distância não é para todos: Café da manhã, podcast da Folha de São Paulo;
- Coronavírus e a "volta às
aulas": Le Monde Diplomatique;
- Ensino a distancia na quarentea esbarra na realidade de alunos e professores: BBC Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário