Gosto de escrever. Na verdade, esse gosto vem de longa data e esteve ameaçado por um tempo. Quando eu estava na quarta série uma professora insensível, depois de passar uma tarefa - composição escolar, era assim que chamavam - disse em alto e bom som para toda a turma: "nada de ficar enchendo linguiça como a Francine". Pra ser sincera, não lembro exatamente as palavras dela, mas teve o "encher linguiça". Fui vítima de um assédio moral, fiquei traumatizada por um tempo, tinha medo de escrever. Mas aos 14 anos, ganhei um prêmio de redação, primeiro lugar no Estado de Minas Gerais, concurso sobre Tiradentes. Foi um feito e tanto. E eu juro que quando soube que havia ganhado o concurso senti vontade de ir atrás daquela professora azeda da quarta série e dizer:"Tá vendo, pra quem gosta de encher linguiça, acho que desse vez eu enchi direitinho". Na verdade, não sei bem porque essas lembranças me vieram a mente. Minha intenção quando abri o computador era tentar escrever uma crônica. Pois é, gosto de escrever e até acho que algumas vezes consigo resultados interessantes, mas não consigo escrever crônicas. É um trauma.
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Talvez decorrente daquele trauma da minha infância. As composições escolares, pelo menos na quarta série, tinham que ser curtas, assim como as crônicas. Mas a verdade é que eu sou uma enchedora de linguiça profissional! Quando estava na faculdade, um professor nos entregou uma folha de almaço, entregou três perguntas, e a prova era responder as três questões num texto único. E o que ele nos diz antes de começarmos a prova? "Nada de encher linguiça." Entrei em pânico. As malditas perguntas eram sobre Hegel, Fenomenologia do Espírito. E aí me veio à cabeça a professora da quarta série. Bom, consegui não encher linguiça, consegui um 7 ou 8 na matéria, não lembro bem. Claro que os trabalhos da faculdade nada tinham a ver com as crônicas, mas a verdade é que meus trabalhos sempre tinham muitas linhas, muitas páginas. Não sei como consegui escrever algo que prestasse para passar no vestibular com aquele limite de 30 linhas.
Quando criei esse blog me senti tão livre, não tinha limites, poderia
escrever usando quantos caracteres eu quisesse! Quanta emoção. A questão
que ultimamente tenho me colocado, no entanto, é outra: para quem
escrevo? Quem lê textos longos? Ainda mais nestes tempos de Twitter e
WhatsApp... Cada vez mais os textos longos são vistos como "pura
encheção de linguiça". E muitas vezes fico pensando: preciso ser mais
sintética, dizer o que acho que tenho de relevante para dizer em poucos
parágrafos, que caiba numa tela, nada de rolar a tela. A essa altura já
devo ter fracassado novamente. As telas hoje são as do celular, impossível
escrever algo que caiba numa única tela. Tem que ser do tamanho de uma
postagem no Twitter. Sim, esse ano me aventurei nos TT. Cada vez que
tento escrever algo e sou limitada pelo Twitter, volta o trauma: "devo
estar enchendo linguiça". Não, na verdade não penso isso. Penso: "como
podemos falar de algo sério com essa miséria de espaço?" E aí volto para
outros lugares nos quais me sinto mais livre! Depois de escrever uns
oito parágrafos e publicar, aí sim volta o trauma: "quem vai ler? você
mais uma vez encheu linguiça, é por isso que não vou ler até o fim."
Hoje, como professora, vejo muitos alunos tentando malabarismos para atingir o mínimo de linhas: aumentam o tamanho da letra, aumentam o espaço entre as palavras e reclamam, com se estivessem sendo torturados, pedindo para que as quinze linhas possam virar dez ou menos. Sofro. Como isso é possível? De um universo de cerca de 200 alunos, tenho uns quatro que, para a professora da quarta série, fariam parte dos que gostam de encher linguiça. Claro, entendo perfeitamente as reclamações destes quanto àquele absurdo de 30 linhas ou o limite de páginas. Sofri do mesmo mau por anos. Mas faço minha parte, tento ajudá-los a não terem suas ideias tolhidas pelo limite. Digo que os limites também são importante - e acredito mesmo nisso, não é hipocrisia. Normalmente esses poucos sofredores, são leitores, como eu era, e deve ser por isso que, felizmente, estão cheios de ideias...O drama maior, para mim, são os outros, os que não leem, os que brigam pelo mínimo...
Nesse momento (desse texto), penso que mais uma vez fracassei, nada de crônica, nada de texto curto. Mas para aliviar meus traumas, para tentar me consolar, tento me convencer de que errados estão os outros: a professora da quarta série, o professor da faculdade, o Twitter e todos que acham que textos longos são encheção de linguiça. Tendo a acreditar também que se as pessoas empenhassem seu tempo na leitura de textos longos e de boa qualidade - é óbvio que nem todo texto longo é bom - a chance de termos como presidente um maníaco que sugere fazer um churrasco bem quando o país chega a 10 mil mortes no meio de uma pandemia seria quase zero. Foram as mensagens curtas de WhatsApp e afins que contribuíram para normalizar a "curta" inteligência do cidadão que agora é presidente da república. Textos curtos, muitas imagens, apologia à ignorância, reclamação de que nos livros "tem um amontoado de coisas escritas" - seria essa a versão de Bolsonaro para "encher linguiça"? - e temos esse estado de coisas lamentável dos dias de hoje. Sendo assim, acho que devo seguir "enchendo linguiça", quem sabe minhas palavras possam resgatar um ou outro dessa maldição obscurantista que tenta apagar as palavras, calar os jornalistas, reduzir fatos complexos a soluções simplistas, violentar a memória e distorcer os fatos. A maior resistência dos dias de hoje é ler, ler muito, e aqueles que podem, escrever bons textos, registrando os absurdos que agora se tornaram diários, questionando esses absurdos, propondo saídas para esse absurdo.
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