quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Céu aberto

Fecho os olhos e ainda posso ver o bordadinho miúdo de seu vestido. O pano era de qualidade tão baixa quanto a autoestima que ela tinha. Os cabelos enrolados em volta de um coque, começando a branquejar. As rugas no rosto eram acentuadas pela total falta de trato que aquela pele recebia. Tinha os olhos fundos, a boca murcha, as mãos machucadas pela enxada, os pés cascudos denunciando as longas caminhadas de pé no chão que fazia todo dia. Sorria muito pouco. E quando o fazia os olhos entravam em contradição com aquela quase expressão de alegria. Eles choravam. Sem lágrimas e muito pouco expressivos. Da última vez que a vi, o vestido que usava era azul com algumas florzinhas num tom mais escuro e uns pontinhos amarelos desbotados. Ela usava o chinelo que lhe dei e havia solto o cabelo. Os olhos continuavam acinzentados, pouco expressivos, mas dessa vez não chorava. O sorriso que colocou no rosto, lhe caiu bem naquela manhã ensolarada. Eu sabia que ela estava um pouco desapontada. No fundo ela sempre esperou, desde quando cheguei, que eu ficasse ali, que assossegasse meu coração e deixasse o mundo que seguisse seu rumo. Era o jeito que ela mesma dizia nos fins de tarde, quando eu observava o sol sumindo e ouvia passarinhos ao longe cantando a noite que se aproximava.
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Eu estava perdido. Sim, totalmente perdido. Sem mapa na mão, com a mochila nas costas, andando sem saber onde o caminho ia dar. Quando resolvi por os pés na estrada, queria na verdade percorrer os meus caminhos até aqueles 32 anos. Fechei-me para balanço. Dei adeus ao conforto da minha casa, às noticias diárias de economia e política, aos ombros dos meus amigos que tinham me suportado nos últimos meses. Talvez alguns deles julgassem precipitada minha decisão. Ou até mesmo ingratidão depois de todo apoio oferecido. Mas eu sentia que era preciso.
Quando cheguei em Céu aberto, eu só queria um lugar pra descansar. Deitar meu corpo doído de tanto andar. Foram três dias de ônibus. Uma noite num banco de praça de uma cidadezinha que nem lembro o nome. Um dia inteiro caminhando. Cheguei quando o sol estava sumindo e o céu estava avermelhado. Ouvi pela primeira vez aquele canto de passarinho que nunca mais saiu dos meus ouvidos.
Mercedes morava sozinha. Isso explica a recepção espantadiça com que me recebeu. Empunhou o porrete que trazia na mão direita. Olhou com cara de bicho assustado pronto pra atacar. Nunca poderei esquecer aquele olhar. Fui rápido dizendo que não lhe faria mal, que apenas procurava abrigo por uma noite. Que sentia sede e tinhas os pés doídos. Ela falava pouco. Sozinha como vivia, quase mesmo só emitia uns sons estranhos. Disse-lhe meu nome. Não sei se ele inspirou confiança, mas ela baixou o porrete. Examinou-me de cima a baixo. Deu sinal pra ver o que eu trazia na mochila. Logo abri a bolsa e joguei para fora as poucas peças de roupa que carregava e o bloco de notas com as canetas. Não tinha nada que pudesse representar perigo. Naquele momento até mesmo pensei nos riscos que corri nos dias anteriores. Nada tinha que pudesse tornar-se arma, a não ser aquelas palavras amargas e duras rabiscadas no caderno de notas que só poderiam ferir a mim mesmo...
Entrei na casinha simples que estava próxima do portãozinho pelo qual entrei na vida de Mercedes. Talvez nem ela tenha percebido que desde aquele dia não foi apenas a terra e a casa dela que passei a habitar. Foi também seu coração. Eu mesmo só me dei conta disso passado algumas semanas.
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Mercedes levantava cedo. Fazia um café forte que bebia sem nenhum tipo de adoçamento. Punha o chapéu de palha de longas abas na cabeça e adentrava a pequena floresta que começa atrás da casa. Aventurei-me a fazer esse percurso com ela depois de alguns dias. Ela retornava pra casa quando a tarde já dava sinais de cansaço e cedia seu lugar a noite. Ela permanecia num silêncio quase místico. Comunicava-se por sinais. Gesticulava com muita agilidade. E quando tentava falar, parecia temer acordar alguém. Talvez o filho que descansava no fundo do quintal, cujas pedras em circulo e a roseira branca eram o único sinal. Não foi logo que descobri todas essas coisas. Por isso, talvez, eu fui ficando e ficando.
Ela, apesar da aparente idade avançada, tinha apenas três anos mais do que eu. Morava ali, naquele isolamento silencioso já há 15 anos. Não fora sempre daquele jeito. Aqueles olhos acinzentados já haviam brilhado um dia. Aquela boca murcha e aquele corpo maltrado já haviam beijado e amado. Mas o amor foi breve. Não pra ela, mas pra ele. Um dia sem mais nem menos foi embora. Arranjou alguém com mais brilho nos olhos, mais perfume nos cabelos, mais beijos e mais amor no corpo. Dele só restou a barriga crescida. O filho que nasceu, durou tão pouco quanto aquele amor errado. Desde então ela viveu só mesmo porque estava viva.
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Eu ainda estava perdido. Acabei mergulhando no silêncio de Mercedes. Na verdade não exatamente no silêncio dela. O silêncio de Mercedes foi só a porta de entrada para meu próprio silêncio. Aos poucos eu parecia mesmo esquecer algumas palavras. Esquecia nomes, esquecia junto com os nomes pessoas, lugares. Sentia um esvaziamento. Mas não me sentia vazio. Era com se eu desocupasse um prédio velho que por muito tempo esteve amontoado com um monte de tranqueira. Depois de jogar fora todos os móveis que não usava há tempos, todos os livros empoeirados, anotações já sem sentido, objetos estranhos e sentimentos sem valor, começava redescobrir os traços do prédio. As cores das paredes. O chão, os sons próprios de cada pedacinho do prédio. Ele nem era tão velho assim...
De repente sentia uma alegria tão grande em ouvir os barulhos na pequena cozinha que denunciavam um novo dia. O cheiro do café de Mercedes era o cheiro de uma parte de mim. As trilhas que percorríamos durante o dia, aos poucos revelavam atalhos de mim mesmo que eu tinha perdido. Eu sorria. Não podia ver meu rosto, mas imaginava meus olhos brilhando. Mercedes não parecia ter sentido grandes mudanças com minha presença. Embora eu só soubesse o que tinha visto desde quando cheguei, parecia que sua rotina em nada havia se alterada. Eu era quase sua sombra.
Numa tarde agradável, enquanto voltávamos para casa, ela iniciou conversa. Sem muito jeito, perguntou quando eu ia partir. Senti uma pontinha de dor. Não havia pensando nisso. Perdi a noção do tempo. Talvez eu estivesse ali já há muitos meses, ou talvez fossem só algumas semanas. Sinalizei com a cabeça negativamente, querendo dizer que não sabia. Acho que ela entendeu que eu não pretendia partir...
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Talvez tenha se passado um mês desde aquela conversa. Cada dia mais eu sentia que meu prédio velho estava em fins de reforma e restauração. Tantas coisas tinham voltado para o lugar. A luz começava entrar naqueles quartos escuros. Eu sentia vontade de cantar. O fiz algumas vezes, mas Mercedes parecia se incomodar. Eu voltei a ter vontade de conversar. Por esse tempo descobri todas as coisas que já contei sobre ela. Mas ela não se animava com minha falação.
Eu percebia que chegava a hora de partir. Eu estava pronto para voltar pro meu lugar. Depois de muitos anos caminhando sem rumo certo, seguindo um caminho que parecia o tempo todo fugir dos meus pés, eu parecia saber exatamente qual era o meu caminho: era caminhar. Céu aberto, como eu carinhosamente apelidei aquele cantinho de mundo, que se tornou o mundo todo de Mercedes, estava pequeno pra mim.
O dia que eu resolvi falar para Mercedes que eu iria partir, ela estava desinquieta. Tentou fugir da conversa. Falou das frutas que acabavam lá no mato. Do ninho de passarinho que ela vigiava por dias e que havia sumido. Mas não teve jeito. Eu disse. Ela derrubou uma lágrima. O tempo parou. Eu quase desisti do meu caminho. Quase decidi entregar-me ao silêncio de Mercedes...
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Naquela manhã ensolarada, ela soltou o coque. Botou o vestido azul, que parecia ser um pedacinho do céu. Ela calçou o chinelo que lhe dei de presente. Tenho certeza que com um esforço que deve ter lhe custado mais uma ou duas lágrimas durante a noite, ela botou também um sorriso na boca. Os olhos não choraram.
Enquanto eu caminhava por aquela mesma estradinha estreita que havia me trazido até Mercedes, ela abanava o braço, eu prendia um soluço, e caminhava para enfim assumir meu caminho.
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Um comentário:

Unknown disse...

Primeira visita. Primeira de muitas!!!

Texto muito emocionante... identifiquei-me muito com ele!!

Beijão, Frã!

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