É clichê se referir à vida como um dom, um presente. Os religiosos completam que é dom de deus, e muitas são as formas que encontram para nomear essa divindade. Os que não acreditam numa divindade, ainda encontram motivos para se admirarem com o mistério da vida, com a sorte de estar vivo. Mesmo diante de dores, desafios, sofrimentos, tragédias, é grande a nossa disposição de nos agarrarmos à vida, de louvarmos os motivos para permanecermos vivos.
Apesar de tudo isso, no dia a dia, estamos muito mais comprometidos em gastar a nossa vida do que em aproveitá-la. Gastamos nossa vida em horas de trabalho, que se traduzem em algum dinheiro, que nos leva a gastar horas fazendo compras de coisas que, muitas vezes, em nada ou muito pouco irão contribuir para que possamos aproveitar melhor a nossa vida. Com a chegada das redes sociais, gastamos nossa preciosa vida ou maquiando e inventando uma vida para ser exposta para os outros ou observando, com curiosidade doentia, a vida alheia. Quantas horas por dia gastamos vendo como os outros são felizes, bonitos, realizados, perfeitos, enfim, gastamos nossa vida consumindo a vida que outros caprichosamente construiram para exibir.
O fato é que esse cenário me tem feito pensar muito sobre o que nos faz realmente viver, aproveitar a vida, e não simplesmente gastá-la dia após dia. Desde que me formei e comecei a trabalhar na minha área, trabalho muito, sempre com empolgação, tendo algumas vezes até exagerado. Mas sempre pensava que era algo que me preenchia, para além de ser meu trabalho, faço algo que enche de prazer, que dá significado à minha vida. No entanto, com as mudanças no último ano, o trabalho dentro de casa (ou morando no trabalho), a impossibilidade de estar de fato junto com alunos e colegas, o trabalho passou a pesar. Mais trabalho, mais desafios, e muito menos prazer, muito menos sentido. E fui sentindo crescer em mim a necessidade de me dedicar a outras coisas. A necessidade de encontrar tempo para fazer algo que pudesse de alguma forma suprir o que eu já não encontrava no trabalho.
Trabalhar é bom. Principalmente quando temos o privilégio de trabalhar com algo que realmente nos preenche, com o qual nos sentimos contribuindo com a sociedade, um trabalho no qual podemos ser criativos, com o qual, ainda que de maneira muito lenta, podemos observar transformações acontecendo em outras vidas por causa do nosso trabalho. Mas nem todo trabalho é assim. A maioria das pessoas não veem a hora de acabar o expediente, para o happy hour, para poder fazer o que realmente gosta ou para fazer nada. Em tempos de pandemia, sequer é possível encontrar os amigos, ir ao cinema. Muitos de nós, privilegiados que somos, trabalhamos de casa, mas já não sabemos onde começa a casa nem onde termina o trabalho.
Pode parecer bobeira, mas tenho pensado na importância de podermos nos dedicar a criar, dar vida,
de certo modo, de exercitar nossa imaginação, de poder variar nossas
atividades, para exercitar diferentes partes de nós, para que possamos
descobrir facetas ocultas, e ter a oportunidade de nos criarmos e
recriarmos através das mais diferentes ocupações. Não gosto da ideia de
vocação, ou dom. Acredito que todos nós temos potencialidades
infinitas latentes que precisam encontrar condições e estímulos para que
venham a florescer. Daí a importância de pensarmos a educação, informal
e formal, como esse lugar de explorar e cultivar as diferentes
dimensões do humano. Não é necessário que todos nós sejamos músicos
profissionais, mas a vida se torna melhor, mais bonita, quando a música
se faz presente nela. Cantar, tocar um instrumento, pintar,
escrever, esculpir, fazer um jardim ou uma horta, construir a sua
própria mesa, tudo isso deveria estar disponível em nossas vidas. E num mesmo dia poderíamos ter a possibilidade de fazer um pouco de cada uma dessas coisas.
Tenho pensando que uma vida é pouco demais para tantas possibilidades que deveríamos ter o direito de experimentar. Não é de agora, essa sensação me acompanha há muito tempo: são tantos os livros que ainda não li, os filmes que ainda não vi, as músicas que ainda não ouvi, os lugares que não visitei, receitas que não fiz...Mas hoje me peguei pensando em como muitas vezes vivemos limitados. Quantos de nós passam a vida sem a oportunidade de explorar diferentes habilidades e capacidades. Quantos seres humanos passam pela vida (são consumidos por ela ou a consomem das maneiras mais indignas), sem terem tido a chance de ter explorado a música, a poesia, ou cuidar de um quintal, plantar sementes e delas cuidar até poder saborear seus frutos, ou tocar um instrumento musical, ou dançar, ou cantar, ou construir um objeto de madeira com as próprias mãos, ou preparar um bolo ou qualquer outra receita com as próprias mãos e depois saboreá-la na companhia de alguém especial, ou escrever um poema, ou quem sabe um romance, aprender a cortar o cabelo, ou a costurar, fazer bordados ou blusas de tricô.
Para pensar em qualidade de vida, em como viver mais e gastar menos a vida com coisa menores, é preciso repensar as prioridades, os signos de vida bem-sucedida, os objetivos que nos colocamos, os modelos que miramos de felicidade e realização. Não é fácil, mas nenhuma escolha é. Escolher viver e aproveitar a vida em vez de simplesmente gastá-la é um desafio, mas é também um convite a darmos o primeiro passo para fazer diferente no microcosmos, na nossa casa, nas relações de amizade e familiares. Abrir espaços para pequenas ações que nos permitam nos sentir mais vivos é um grande desafio. No meu caso, senti necessidade desses espaços. Ainda não estou conseguindo equilibrar esses espaços que me enchem de vida com as obrigações. Mas o primeiro passo foi dado. Cuidar das plantas, mexer com terra, podar, plantar; brincar com instrumentos musicais, cantar, cozinhar mais, escrever, fazer pequenos consertos pela casa, aprender a manusear diferentes ferramentas: martelo, furadeira, enxada, tesouras de jardim, aprender a costurar.
A vida que merece ser vivida, como dizia Sócrates, certamente é aquela que é pensada, refletida, mas que também é sentida, encarnada, materializada em obras que criamos na medida em que nos descobrimos como seres criativos e criadores, capazes de dar sentido a essa grandiosidade que é estar vivo.
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