sexta-feira, 23 de julho de 2021

Das vidas possíveis de serem vividas

                                                                                                          

"Nesse corredor
Portas ao redor
Querem escolher, olha só
Uma porta só
Uma porta certa
Uma porta só
Tentam decidir a melhor

Qual é a melhor
Não importa qual
Não é tudo igual
Mas todas dão em algum lugar
E não tem que ser uma única
Todas servem pra sair ou para entrar
É melhor abrir para ventilar
Esse corredor"
Portas, Marisa Monte, Álbum: Portas, 2021.

Quantas vezes nos perguntamos como seria nossa vida, caso tivéssemos feito algo diferente: terminado ou começado um relacionamento; mudado de cidade ou continuado onde sempre esteve; desistido ou insistido num curso; aceitado ou recusado uma oferta de emprego; ido ou não a uma festa; entrado ou não no doutorado; perseverado na aprendizagem de alguma coisa: de violão, de inglês ou alemão. Como estaria nesse momento se tivesse feito diferente do que fiz até agora? Mas não para por aí. Quantos de nós não vamos acumulando arrependimentos ao longo da vida. Um gosto amargo na boca, como se tivéssemos certeza de que estaríamos muito melhor caso tivéssemos seguindo outro caminho. Uma sensação de que seríamos melhores, mais bem-sucedidos (seja o lá o que imaginamos que seria ser bem-sucedido), que poderíamos ter aproveitado melhor "nosso potencial" para qualquer coisa que deixamos para trás. E quantas vezes não desejamos a oportunidade de viver essas outras vidas que parecem tão melhor do que essa que vivemos, com suas rotinas, suas decepções, suas cobranças, nossas limitações, mediocridades e ressentimentos conosco e com os outros. É esse o mote do livro A biblioteca da meia-noite, de Matt Haig. 

Esse livro está longe de poder ser considerado um clássico ou de ter qualidades literárias incomparáveis que o colocariam entre os 10 melhores. Talvez daqui a alguns anos eu não o coloque nem entre os 30 melhores livros que já li. Mas hoje, nesse momento dessa minha vida, era exatamente o livro que eu precisava ler. E ainda bem que nessa vida eu tenho uma amiga que, ao me dar de presente uma assinatura da TAG Livros- Inéditos, me proporcionou essa leitura (Valeu, Aninha!!). Sim, porque dificilmente eu iria chegar a esse livro sozinha. Mas digamos que ele chegou na hora certa. 

Ao mesmo tempo que tenho muitas coisas em comum com a Nora Seed, ela é formada em filosofia, eu também; ela canta, eu também me arrisco; ela gosta de escrever, eu também; ela tem um gato, eu também; ela está na casa dos trinta e pouco, eu também; tem um Dan na vida dela e na minha; há muitas coisas bem diferentes entre nós: ela, embora tenha saído de sua cidade natal, como eu, voltou para ela; não trabalha com filosofia, tem um emprego que em nada parece satisfazê-la; ela sabe nadar, e eu, definitivamente, sou um "martelo sem cabo", como diz meu pai.  

No entanto, há algo no "deslocamento" que Nora vive, na sensação de não pertencimento, na dificuldade de se "encaixar" na sua própria vida, que me é bastante familiar. Que talvez seja algo que todos experimentamos em alguma medida, só pelo fato de sermos humanos, de termos consciência de que estamos existindo e podermos imaginar outras possibilidades de existência diferentes dessa. Mesmo quando acreditamos em destino, quando vivemos descuidadamente sem pensar muito no que estamos vivendo, é possível que compartilhemos uma intuição de que somos responsáveis pelo que nos tornamos a cada escolha que fazemos e o peso dessa consciência, ainda que de forma intuitiva, ainda que sutilmente disfarçada, pode ser grande o suficiente para nos causar um incômodo capaz de nos "deslocar", ainda que momentaneamente. 

Pensar nas vidas que poderíamos ter vivido/estar vivendo pode ser bastante perturbador. Pode nos lançar diante de um abismo, uma vez que, ao contemplar aquilo que poderia(amos) ser e comparar com o que é/somos teremos que encarar as escolhas que nos trouxeram onde estamos e isso pode nos colocar diante de um "eu" covarde, egoísta, irresponsável, acomodado... Mas também pode nos mostrar que aquelas outras vidas e, portanto, aquelas versões de nós que aparecem reluzentes, quase perfeitas, têm tantos outros problemas quantos a nossa versão "raiz" e, em diferentes contextos, poderão ser tão covardes, egoístas, medíocres, acomodadas e tudo aquilo que nos incomoda. Por outro lado, imaginar as muitas vidas que poderíamos ter (e quanto maior for a imaginação, quanto mais pudermos explorar essas vidas virtuais) pode acabar nos mostrando que, no fim das contas, essas potencialidades estão lá, na única versão de nós que está atualizada, que existe

Assim como Nora, depois de experimentar tantas vidas possíveis na biblioteca da meia-noite: sendo estrela de Rock, campeã olímpica, professora universitária, depressiva e viciada, cuidadora de cães, mãe, esposa, de repente percebemos que todas essas "portas" estão bem diante de nós. E que cada uma delas terá a sua própria dose de satisfação, alegria, realização, mas também de dor, medo, angústia, fracasso. Mas o melhor é se dar conta da possibilidade de abrir uma porta nova no meio da caminhada. Eu sei, parece autoajuda barata. Eu não estou dizendo que a vida é um mar de rosas e que podemos fazer qualquer escolha e ser feliz para sempre. Na verdade, o ponto é que ou aprendemos a lidar com a dose de frustração, medo, angústia, tristeza, que cada escolha encerra e, ainda assim, conseguimos olhar para o outro lado de tudo isso, ou não importa quantas possibilidades nos sejam dadas de ter a melhor vida, seguiremos apenas nos arrastando com nossas culpas, arrependimentos e medos, vivendo apenas a pior versão de nós. 

E aí entra uma das coisas que gostaria de escrever depois de ter lido esse livro: a literatura é uma maravilhosa biblioteca da meia-noite. Quantas vidas é possível experimentar através de um bom livro? Quantas oportunidades de fazer acerto de contas com nosso "livro de arrependimentos" não temos ao entrar na vida de Noras, Capitus, Vitórias, Bibianas, Anas, Helenas, Hollys? Além de, mais uma vez, exaltar e convidar a todos para viagens literárias, também queria voltar a um mote sobre o qual havia começado a escrever, antes de ler A biblioteca da meia-noite, e que havia ficado no rascunho do blog: Como parar de gastar a vida para passar a aproveitar a vida? E agora compartilho como um fechamento desse texto, pois me parece que agora o sentido dele está completo.  

É clichê se referir à vida como um dom, um presente. Os religiosos completam que é dom de deus, e muitas são as formas que encontram para nomear essa divindade. Os que não acreditam numa divindade, ainda encontram motivos para se admirarem com o mistério da vida, com a sorte de estar vivo. Mesmo diante de dores, desafios, sofrimentos, tragédias, é grande a nossa disposição de nos agarrarmos à vida, de louvarmos os motivos para permanecermos vivos.

Apesar de tudo isso, no dia a dia, estamos muito mais comprometidos em gastar a nossa vida do que em aproveitá-la. Gastamos nossa vida em horas de trabalho, que se traduzem em algum dinheiro, que nos leva a gastar horas fazendo compras de coisas que, muitas vezes, em nada ou muito pouco irão contribuir para que possamos aproveitar melhor a nossa vida. Com a chegada das redes sociais, gastamos nossa preciosa vida ou maquiando e inventando uma vida para ser exposta para os outros ou observando, com curiosidade doentia, a vida alheia. Quantas horas por dia gastamos vendo como os outros são felizes, bonitos, realizados, perfeitos, enfim, gastamos nossa vida consumindo a vida que outros caprichosamente construiram para exibir. 

O fato é que esse cenário me tem feito pensar muito sobre o que nos faz realmente viver, aproveitar a vida, e não simplesmente gastá-la dia após dia. Desde que me formei e comecei a trabalhar na minha área, trabalho muito, sempre com empolgação, tendo algumas vezes até exagerado. Mas sempre pensava que era algo que me preenchia, para além de ser meu trabalho, faço algo que enche de prazer, que dá significado à minha vida. No entanto, com as mudanças no último ano, o trabalho dentro de casa (ou morando no trabalho), a impossibilidade de estar de fato junto com alunos e colegas, o trabalho passou a pesar. Mais trabalho, mais desafios, e muito menos prazer, muito menos sentido. E fui sentindo crescer em mim a necessidade de me dedicar a outras coisas. A necessidade de encontrar tempo para fazer algo que pudesse de alguma forma suprir o que eu já não encontrava no trabalho. 

Trabalhar é bom. Principalmente quando temos o privilégio de trabalhar com algo que realmente nos preenche, com o qual nos sentimos contribuindo com a sociedade, um trabalho no qual podemos ser criativos, com o qual, ainda que de maneira muito lenta, podemos observar transformações acontecendo em outras vidas por causa do nosso trabalho. Mas nem todo trabalho é assim. A maioria das pessoas não veem a hora de acabar o expediente, para o happy hour, para poder fazer o que realmente gosta ou para fazer nada. Em tempos de pandemia, sequer é possível encontrar os amigos, ir ao cinema. Muitos de nós, privilegiados que somos, trabalhamos de casa, mas já não sabemos onde começa a casa nem onde termina o trabalho. 

Pode parecer bobeira, mas tenho pensado na importância de podermos nos dedicar a criar, dar vida, de certo modo, de exercitar nossa imaginação, de poder variar nossas atividades, para exercitar diferentes partes de nós, para que possamos descobrir facetas ocultas, e ter a oportunidade de nos criarmos e recriarmos através das mais diferentes ocupações. Não gosto da ideia de vocação, ou dom. Acredito que todos nós temos potencialidades infinitas latentes que precisam encontrar condições e estímulos para que venham a florescer. Daí a importância de pensarmos a educação, informal e formal, como esse lugar de explorar e cultivar as diferentes dimensões do humano. Não é necessário que todos nós sejamos músicos profissionais, mas a vida se torna melhor, mais bonita, quando a música se faz presente nela. Cantar, tocar um instrumento, pintar, escrever, esculpir, fazer um jardim ou uma horta, construir a sua própria mesa, tudo isso deveria estar disponível em nossas vidas. E num mesmo dia poderíamos ter a possibilidade de fazer um pouco de cada uma dessas coisas. 

Tenho pensando que uma vida é pouco demais para tantas possibilidades que deveríamos ter o direito de experimentar. Não é de agora, essa sensação me acompanha há muito tempo: são tantos os livros que ainda não li, os filmes que ainda não vi, as músicas que ainda não ouvi, os lugares que não visitei, receitas que não fiz...Mas hoje me peguei pensando em como muitas vezes vivemos limitados. Quantos de nós passam a vida sem a oportunidade de explorar diferentes habilidades e capacidades. Quantos seres humanos passam pela vida (são consumidos por ela ou a consomem das maneiras mais indignas), sem terem tido a chance de ter explorado a música, a poesia, ou cuidar de um quintal, plantar sementes e delas cuidar até poder saborear seus frutos, ou tocar um instrumento musical, ou dançar, ou cantar, ou construir um objeto de madeira com as próprias mãos, ou preparar um bolo ou qualquer outra receita com as próprias mãos e depois saboreá-la na companhia de alguém especial, ou escrever um poema, ou quem sabe um romance, aprender a cortar o cabelo, ou a costurar, fazer bordados ou blusas de tricô.

Para pensar em qualidade de vida, em como viver mais e gastar menos a vida com coisa menores, é preciso repensar as prioridades, os signos de vida bem-sucedida, os objetivos que nos colocamos, os modelos que miramos de felicidade e realização. Não é fácil, mas nenhuma escolha é. Escolher viver e aproveitar a vida em vez de simplesmente gastá-la é um desafio, mas é também um convite a darmos o primeiro passo para fazer diferente no microcosmos, na nossa casa, nas relações de amizade e familiares. Abrir espaços para pequenas ações que nos permitam nos sentir mais vivos é um grande desafio. No meu caso, senti necessidade desses espaços. Ainda não estou conseguindo equilibrar esses espaços que me enchem de vida com as obrigações. Mas o primeiro passo foi dado. Cuidar das plantas, mexer com terra, podar, plantar; brincar com instrumentos musicais, cantar, cozinhar mais, escrever, fazer pequenos consertos pela casa, aprender a manusear diferentes ferramentas: martelo, furadeira, enxada, tesouras de jardim, aprender a costurar. 

A vida que merece ser vivida, como dizia Sócrates, certamente é aquela que é pensada, refletida, mas que também é sentida, encarnada, materializada em obras que criamos na medida em que nos descobrimos como seres criativos e criadores, capazes de dar sentido a essa grandiosidade que é estar vivo. 

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